O
finado Dr. Marx, em um de seus mais inspirados momentos, descreveu e
analisou, na célebre oitava seção do primeiro livro de seu O Capital, o
que denominou como o processo de "acumulação primitiva de capital".
Páginas luminosas; não faria mal as ler quinzenalmente. Com efeito,
qualquer que seja o juízo que se faça, hoje, a respeito das benesses ou
desgraças do capitalismo, o bom senso recomenda reconhecer que a coisa
começou pessimamente. Estivessem vigentes, naquela altura, os institutos
jurídicos que hoje vigoram nos países por assim dizer democráticos - e
capitalistas -, o capitalismo não teria nascido do modo como nasceu. Ou,
simplesmente, não teria nascido, posto que barrado algures, em algum
STF.
O cenário da acumulação
primitiva, tal como hoje é fartamente sabido, exibiu intensa associação
entre maximização de ganhos, uso da violência e destituição de uma série
de vítimas sociais. O atributo "primitivo" não se deve tanto ao fato
óbvio de que isso se deu nos primórdios do capitalismo. O termo pode
revelar, ainda, uma forte dissociação entre apetite maximizador e aquilo
que, graças a Norbert Elias, podemos designar como "processo
civilizador". Tal dissociação esteve presente tanto nos primórdios do
capitalismo europeu quanto na contemporânea pujança do capitalismo à
brasileira. Somos, por cá e em grande medida, contemporâneos dessa
dissociação; os operadores da modernidade são, vez por outra, agentes do
primitivismo.
O emblemático personagem que ora
reside em presídio vizinho a Brasília, e que dá nome a uma CPI, é um
operador exemplar desse apetite infrene dos pioneiros do capital. O
drama que protagoniza tem como enredo central o trânsito de dinheiro
obtido em circuitos ilegais para o âmbito da, digamos, economia legal.
Quer por sua materialização em bens e serviços - por exemplo, mansões e
serviços de decoração - ou por sua transformação em "investimento
produtivo", configura-se o circuito de uma acumulação que, mais do que
"primitiva", aproxima-se do que Max Weber, em dia iluminado, denominou
"capitalismo de pilhagem".
Tal processo de acumulação, no
entanto, não se limita à lavagem de dinheiro ou ao trânsito de numerário
ilegal acumulado para o âmbito da economia legal. Parte considerável,
ao que tudo indica, tem como origem recursos públicos, o que não deve
surpreender. Se voltarmos ao Dr. Marx, devemos recordar que a toda
infraestrutura corresponde uma superestrutura política e jurídica. Em
contextos nos quais o estado de direito está implantado de modo mais
consistente, tal relação não faz lá muito sentido, mas nesta parte do
mundo temo que ainda faça. Faz, ao menos, para os circuitos ilegais. A
economia ilegal não prescinde de seus operadores não econômicos,
incrustados nos assim chamados Poderes da República.
Vejam só, no Rio de Janeiro,
para as eleições deste ano, cerca de 600 policiais e bombeiros
inscreveram-se como candidatos a vereador. É forte, para dizer o mínimo,
a presença de policiais e bombeiros entre milicianos que infestam as
periferias cariocas, e a maioria desses candidatos tem vínculos com
áreas tomadas por milícias. O que é isso, senão a tentativa de captura
de espaços legais, por parte dos circuitos de pilhagem? O significado
sociológico do mandado senatorial de um dos campeões da direita
brasileira, posto a serviço do personagem que habita o presídio da
Papuda, não tem sentido distinto.
A glamourosa companheira desse
notável operador do capitalismo de pilhagem brasileiro deu significativa
contribuição ao quadro aqui composto. A tentativa malograda de
intimidação de um juiz, com base em ameaça de chantagem, revela um modo
preciso de operação, fundado na hipótese - felizmente errada - de que o
que conta na vida, para valer, são as ofertas que não podem ser
recusadas. Essa lógica tem, necessariamente, implicações penais. Ou
seja, seus operadores e agentes são, em termos técnicos rigorosos,
"criminosos". Mas não nos iludamos, há mais coisas entre o céu e a terra
do que o código penal: há sociologia na coisa, sociologia pesada.
O bom barão de Montesquieu, nos
idos do século 18, falava da atividade de ganhar dinheiro como "paixão
calma", proporcionada pelo "doce comércio". Com ela, as interações
humanas progressivamente deixariam de ser belicosas. Uma doce
complementaridade somada à percepção de que precisamos uns dos outros
deveria, segundo o barão, orientar nossos interesses privados. Nada de
semelhante parece estar presente no campo das relações entre, digamos, a
atividade de ganhar dinheiro - ou de acumular - e o âmbito da
legalidade no Brasil. As relações são, no mínimo, incertas.
A musa da pilhagem, na tentativa
de chantagem ao juiz, é o avesso da "paixão calma". Ao contrário, ela
pretende ensinar ao País que ganhar dinheiro exige agressividade e pouca
- se alguma - atenção a formalidades. É curioso como, entre nós,
"empresários agressivos" passam por personagens virtuosos. A meu juízo,
trata-se da única ocupação à qual o atributo "agressivo" soa como
adjetivo elogioso. Assim não dá.
* Renato Lessa - é professor
titular de teoria política da Universidade Federal Fluminense,
pesquisador associado do Instituto de Ciências Sociais da Universidade
de Lisboa, presidente do Instituto Ciência Hoje.
FONTE: O ESTADO DE S. PAULO / ALIÁS
Nenhum comentário:
Postar um comentário