No
fim de semana circulou uma notícia escalafobética: um grupo de
advogados vinculado ao Partido dos Trabalhadores (PT) teria a intenção
de tentar impedir, por vias judiciais, o emprego da palavra mensalão nos
órgãos de imprensa. Aqui, no Estado, a informação apareceu no sábado,
dia 4, em reportagem de Débora Bergamasco. Outra nota, esta na Folha de
S. Paulo, no domingo, trouxe um adendo providencial: a direção do PT
afirmou que a iniciativa não foi adotada por nenhuma instância oficial
da legenda. Melhor assim. Seria preocupante se um partido político
acalentasse projetos de cercear o vocabulário das pessoas; agora, que um
agrupamento de indivíduos invista nessa linha, bem, isso de vez em
quando acontece. No futuro próximo, a prevalecer o bom senso nas
instituições, o intento fará parte do anedotário político. No futuro
distante, terá sumido da memória.
Mesmo assim, o episódio merece algumas linhas.
De saída, é preciso reconhecer:
ninguém há de gostar de ser chamado de mensaleiro. Ninguém se orgulha
disso. Mensalão é, indiscutivelmente, um termo que carrega um estigma
pesado, corrosivo, impiedoso, maculando a imagem do PT e do governo Lula
de modo cumulativo e perverso. Embora também exista o mensalão mineiro,
que é tucano da gema, assim como o mensalão do DEM, foi ao PT que a
palavra ficou mais associada. Portanto, é natural que aqueles que ainda
guardam afeto pelo partido queiram livrá-lo desse carimbo que indica
tenebrosas transações, além de caixa 2, corrupção e vergonha.
Reconheçamos, ainda, que os
incomodados têm sido alvo de uma artilharia violenta de 2005 para cá.
Andam machucados, o que é compreensível, e protestam. Falam como se
fossem vítimas de uma forma agigantada de bullying, ainda que não usem o
termo. Consideram injusta e descabida essa pecha que o PT passou a
carregar e, na visão deles, a imprensa é a principal detratora do
partido. Em suas manifestações, os queixosos costumam acusar a grande
imprensa - entendida por eles como se fosse uma unidade, um organismo
coeso - de se valer dessa alcunha diabólica, mensalão, com o fim
teleológico de implodir a reputação dos ícones petistas e tornar
inviável o futuro do próprio partido. Estão pelas tampas.
O interessante, aqui, é que, ao
menos em parte, têm um pouco de razão. Embora a instituição da imprensa
não seja esse todo uno e indivisível que supõem, os reclamantes não
estão de todo errados em seu diagnóstico. De fato, foi na imprensa que a
alcunha maldita fez sua carreira. Desde que foi sapecado por Roberto
Jefferson na acusação que fez contra seus desafetos no governo Lula, o
vocábulo mensalão pegou como carrapato, como um apelido de escola,
desses que são capazes de marcar um adolescente pelo resto de sua vida.
Nesse caso, porém, o estrago não se limitou aos muros da escola, mas se
espalhou pelo mundo nas páginas dos jornais.
Fora isso, eles erram - e erram
feio. Erram, para começar, na identificação dos culpados. Não foram os
jornalistas que inventaram esse termo. Ele nasceu da luta sangrenta
entre os partidos da base governista. Depois, o próprio ex-presidente
Lula, quando terminou seu segundo mandato alardeando que iria provar que
o mensalão tinha sido uma farsa, tomou a iniciativa de pôr mais lenha
na fogueira. Passou recibo, como se diz. A briga prolongou-se e hoje o
tema virou uma grande mania nacional, a ponto de, no início da semana,
ter ultrapassado a novela Avenida Brasil no Google e no Twitter.
Em suma, se essa palavra,
mensalão, ficou na pele do PT como tatuagem, não foi por obra de um
conluio da assim chamada grande imprensa, mas em decorrência da guerra
entre os protagonistas diretos ou indiretos desse grande escândalo,
registrada por veículos jornalísticos os mais diversos, seja em textos
que rechaçam o termo, seja em artigos que o reproduzem sem vacilar.
Acima de tudo, a palavra mensalão ganhou sua validade linguística em
razão dos fatos.
Iniciado o processo do mensalão
no Supremo Tribunal Federal, esses fatos estão evidentes. Mesmo nas
falas de alguns dos advogados dos réus eles foram reconhecidos: algum
tipo de ilícito houve nessa história toda, nem que tenha sido apenas a
farta distribuição de dinheiros não contabilizados entre figurões e
figurinhas que apoiavam o governo no Congresso Nacional. Pois foi a isso
que se acabou chamando de mensalão. É verdade que talvez o mensalão não
tenha sido precisamente mensal. Talvez tenha sido um "bimestralão", ou
um "de-vez-em-quandão", se quisermos ser rigorosos nos intervalos
temporais. Mas que houve um ilícito que resultou em desaguadouros
sazonais de pequenas ou médias fortunas, cuja origem era e continua
sendo suspeitíssima, isso houve.
Neste ponto, vale um aviso aos
vigilantes de linguística: a supressão autoritária de uma palavra, se
fosse possível, não eliminaria os fatos. Acontece que arrancar palavras
do imaginário nacional é impraticável. Sonhar com isso é uma espécie de
delírio totalitário justificado em boas intenções. Sonhar com isso é
desejar para o Brasil uma ordem de trevas, vertebrada por aquelas
truculências imaginadas por George Orwell em 1984, em que a tirania
mudava o sentido dos termos1 e adulterava os acontecimentos históricos.
Para nossa sorte, a língua é
algo que o poder não consegue controlar, não consegue sequer
administrar, por mais que tente e siga tentando. O poder pode até
inventar um idioma, sem dúvida, mas jamais poderá mandar nesse idioma
depois que ele começar a ser falado pelo povo. "Quem cria uma língua a
tem sob domínio enquanto ela não entra em circulação", ensinou Ferdinand
de Saussure. "Mas desde o momento em que ela cumpre sua missão e se
torna posse de todos, foge-lhe ao controle".
Ainda bem que é assim. Na língua que falamos mora a nossa chance de liberdade. E de acabar com todos os mensalões.
FONTE: O ESTADO DE S. PAULO
Eugênio Bucci é filiado ao PT. Foi um dos criadores e o primeiro editor da revista Teoria e Debate, editada pela Fundação Perseu Abramo. Dirigiu a Radiobras (Empresa Brasileira de Comunicação S.A) no primeiro mandato de Lula. Professor da ECA/USP.
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