O voto no Brasil antecedeu a democracia e conviveu com diversos regimes, inclusive o militar
Wilson Tosta
Para Jairo Nicolau, o Código Eleitoral de 1932 foi um marco
RIO - De volta a um tema que
visitara dez anos antes - a história das eleições brasileiras -, o
pesquisador Jairo Nicolau, pós-doutor em ciência política e professor
titular da disciplina na UFRJ, encontrou um País surpreendentemente
parecido em seu passado político com outros que hoje são festejadas
democracias. Assim como a Inglaterra, o Brasil tinha eleições já no
século 18, quando colonos escolhiam pelo voto vereadores, juízes de paz e
procuradores, e, da mesma forma que os EUA, viveu no século 19 pleitos
fraudados. Curiosamente, esses mesmos países estavam entre os que
inspiraram intelectuais e juristas no desenho legal das instituições
brasileiras que foram palco da vida política nacional desde a
Independência. Nicolau descobriu ainda um Brasil que, há mais de cem
anos, desenvolve “tecnologias” na tentativa de tornar mais confiáveis as
disputas. Nosso primeiro título eleitoral nasceu em 1875, quando a
República ainda era apenas uma ideia.
“Os legisladores
brasileiros sempre foram muito criativos”, diz Nicolau, que está
lançando Eleições no Brasil - Do Império aos Dias Atuais, pela editora
Zahar, dez anos depois de História do Voto no Brasil, um livro de bolso
pela mesma editora, com a mesma temática, porém mais limitado.
Alguns pontos se destacam
na investigação mais recente de Jairo Nicolau sobre as eleições. Um é
que, ao mesmo tempo que o País atravessou muitas vezes períodos de
instabilidade política, as eleições repetiram-se com regularidade
razoável - ainda que sua validade, como instrumento de representação,
fosse muitas vezes questionável. Outro é que alguns sistemas eleitorais
duraram períodos relativamente longos por aqui.
O voto censitário (que
exigia que o cidadão, para votar, tivesse um certo nível de renda)
marcou todo o Império brasileiro (de 1824 a 1889); a votação indireta
para Câmara e Senado foi abolida apenas em 1881; e diversos tipos de
eleição distrital foram usados durante a monarquia do Brasil. O voto
distrital, inclusive, entrou pela República e só deu lugar ao
proporcional em 1932, depois que a Revolução de 1930 mandou a República
Velha para os livros de história.
Então as eleições no
Brasil vieram antes da democracia? Segundo Nicolau, sim, mas isso não é
exclusividade brasileira. O mesmo ocorreu em outros países hoje vistos
como democracias modelo. Muito antes da queda do regime militar, em
1985, assinala, o Brasil já tinha uma exuberante variedade de
instituições eleitorais. Elas existiam até sob a ditadura instaurada em
1964, que, mesmo com limitações, bipartidarismo imposto, falta de
liberdades democráticas e legislação autoritária, realizou eleições com
regularidade, embora para um Congresso Nacional sem poderes efetivos e
constrangido pela força. Em 190 anos de vida independente, apenas
durante 9 - de 1937 a 1945, no Estado Novo - o País ficou formalmente
sem pleitos eleitorais. Uma peculiaridade brasileira, assim como o
surpreendente aumento de participação eleitoral precisamente no mais
duro período de fechamento da política nacional: a ditadura militar.
As pessoas olham para as
eleições hoje, com voto obrigatório, partidos organizados, TREs,
registro prévio de candidatos, campanha eleitoral regulamentada, e acham
que sempre foi assim. No entanto, em termos históricos, esses são
fenômenos relativamente recentes, não?
Naturalizamos nossas
instituições eleitorais. Mas cada uma delas tem uma história particular.
O Brasil tem uma das mais duradouras experiências de eleições do mundo,
comparável às de importantes países. Mas a prática eleitoral nos nossos
dias é muito diferente da de décadas atrás. Por exemplo, em meados do
século 19 nenhum país tinha adotado o voto secreto e o alistamento
prévio de eleitores, apenas homens da elite tinham o direito de voto e
as fraudes ocorriam em larga escala.
O Brasil parece ter sido
pioneiro em, digamos, tecnologia eleitoral - o primeiro título eleitoral
brasileiro é de 1875. Aqui, inovamos ou imitamos?
Os legisladores brasileiros
sempre foram muito criativos com a “tecnologia” eleitoral. Não tenho
informações sobre o uso de documentos de identificação eleitoral em
outros países, mas o título de eleitor brasileiro talvez seja um dos
primeiros do mundo. As medidas para garantir o sigilo do voto, primeiro o
envelope oficial e depois a cédula única, foram decisões importantes.
Recentemente, o Brasil se tornou provavelmente o primeiro país a ter um
controle eletrônico do processo de votação, em um ciclo que começa no
alistamento, chega à votação na urna eletrônica e termina com a
apuração.
Seu livro começa nas eleições da Colônia. Esses pleitos eram importantes?
Desde o século 16 a coroa
portuguesa criou um sistema de eleições para cargos em âmbito municipal.
As regras vigoravam tanto em Portugal como nas colônias. Fiquei
impressionado com a sofisticação das regras eleitorais. Encontrei alguns
estudos de caso que mostram que havia eleições regulares. Mas gostaria
de ter achado mais pesquisas sobre o tema para ter segurança de dizer
que as eleições realmente eram uma rotina da governança colonial.
Como eram as eleições no Império?
De 1825 até o fim do Império, em
1889, foram mais de seis décadas de eleições. Um fato que chama a
atenção é a regularidade dos pleitos no período. Para dar um exemplo:
houve 27 eleições para a Assembleia Legislativa da Província do Rio de
Janeiro. A legislação eleitoral foi muito alterada nessas seis décadas e
não creio que seja possível tratá-la como um bloco monolítico. Os
relatos mostram que as fraudes foram amplamente utilizadas, mas a partir
da década de 1880 elas diminuíram, graças à criação do título de
eleitor e à administração do pleito pelo Judiciário.
Pode-se fazer um paralelo do Brasil da época com outros países?
O Brasil tem uma das mais ricas
experiências eleitorais do século 19. As fraudes eleitorais não eram uma
singularidade do País. Muitos estudos mostram que eram uma prática
generalizada na Europa, nos Estados Unidos e em outros países
latino-americanos.
É interessante notar que, ao
longo do Império e da República Velha, mais de cem anos, o País teve
voto distrital. A que podemos atribuir isso?
O que chamamos sistema eleitoral
majoritário distrital foi o primeiro a ser adotado nas eleições para o
Parlamento dos países europeus. O sistema proporcional é uma invenção do
final do século 19 e foi adotado pela primeira vez na Bélgica, em 1899.
Um dos temas centrais do debate sobre a reforma eleitoral feito no
Império e na Primeira República foi a ampliação da representação das
minorias, entendido na época como os grupos não dominantes das elites
estaduais. Só no século 20 se descobriu que a melhor forma de fazer isso
seria por intermédio da representação proporcional.
Podemos dizer que somente após a Revolução de 30 as eleições no País ganharam mais seriedade ou isso é uma simplificação?
O grande marco da história
eleitoral do Brasil é o Código Eleitoral de 1932, que aliás faz 80 anos.
Ele criou a Justiça Eleitoral, ampliou o direito de voto para as
mulheres, introduziu regras para o sigilo do voto e adotou a
representação proporcional. As duas eleições da década de 1930 (1933 e
1934) são consideradas pelos atores da época como eleições limpas e
competitivas, embora ainda com reduzido número de eleitores.
Seu livro levanta alguns
dados curiosos. Um, mais conhecido, é que o País teve, por um período
curto, representação classista, deputados eleitos por categorias
profissionais, ao lado de representantes gerais. Outro é que chegou a
ser possível o registro de candidaturas de grupos de eleitores e
candidaturas avulsas. Como essas instituições funcionaram?
O governo provisório de 1930
inventou um sistema representativo que combinava um Legislativo
tradicional - deputados eleitos pela população - com uma parte de
representantes eleitos pelos sindicatos, de trabalhadores e patronais.
Curiosamente, a representação corporativa não foi proposta pelo grupo de
juristas que criou o Código de 1932. Essa era uma reivindicação do
Clube 3 de Outubro, que apoiava Getúlio Vargas, e foi adotada sem
nenhuma discussão pública. Nos anos 1930 ainda não estava tão claro que
os partidos teriam o monopólio da representação como aconteceria depois.
Nas eleições de 1933 e 1934 concorreram partidos, ligas, associações e
candidatos avulsos. Mas no cômputo geral os candidatos avulsos não foram
tão bem-sucedidos.
Quando o voto proporcional entra em cena no Brasil?
Uma primeira versão de voto
proporcional foi adotado em 1932. Mas nesse caso ainda em combinação com
um sistema majoritário. A representação proporcional de lista (modelo
ainda em vigor) começou a ser utilizada em 1945. A defesa da
representação proporcional não foi uma causa de partidos ou movimentos
sociais, mas praticamente de um único homem: Joaquim de Assis Brasil, um
político gaúcho. Durante toda a Primeira República, ele defendeu quase
solitariamente a representação proporcional. Coube a ele a presidência
da comissão responsável por elaborar o Código de 1932. O que facilitou a
escolha por esse sistema.
Houve algum motivo especial para adoção do voto proporcional em 45?
Na realidade, ele foi criado
como uma mudança no sistema misto inventado em 1932. O sistema era tão
complexo - havia a opção de o eleitor votar em mais de um nome - que
causou enorme confusão. Em alguns Estados a apuração dos votos demorou
semanas. Quando o País se redemocratizou, em 1945, foi feita a proposta
de votar em um único nome, com votos contabilizados apenas para os
partidos. Os legisladores não copiaram esse modelo de nenhum outro país.
Até porque, entre os casos que consegui estudar, ele não estava em
vigor em nenhum lugar do mundo.
Onde mais podemos encontrá-lo?
Outros países chegaram ao voto
proporcional por caminhos próprios. Depois os estudiosos passaram a
chamá-lo de lista aberta. A Itália utilizou um sistema muito parecido
entre 1945 e 1992; o Chile, entre 1958 e 1973. Outro país que utiliza a
lista aberta há muitos anos é a Finlândia. Entre as novas democracias, o
Peru, a Polônia e a Letônia usam.
O regime militar brasileiro teve, entre suas peculiaridades, eleições para cargos de pouco poder. Por que essa obsessão?
O regime militar manteve
eleições para o Congresso, ainda que com muitas restrições, para as
câmaras municipais e para prefeitos da maioria das cidades, com exceção
das capitais e cidades consideradas de segurança nacional. A suspensão
plena foi da eleição para presidente e governadores. Creio que a
“invenção” do bipartidarismo, em 1966, com forte domínio de um partido
governista, a Arena, deu segurança para que os dirigentes militares
mantivessem o calendário eleitoral. Pesquisando o material da época, não
lembro de encontrar personagens relevantes defendendo a organização de
um sistema político completamente sem eleições.
Seu livro também aponta um
dado intrigante: o aumento na participação eleitoral durante a ditadura,
apesar da redução de opções. Por que isso?
Os dirigentes militares
alteraram profundamente o processo eleitoral, com medidas que iam das
cassações e uso da violência até alterações oportunistas das regras para
favorecer a Arena, mas não fizeram nada para mudar o processo de
alistamento eleitoral. As regras vindas da República de 1946 se
mantiveram: cidadãos alfabetizados que completassem 18 anos eram
obrigados a se alistar. O crescimento do eleitorado deve-se em larga
medida ao crescente contingente de adultos alfabetizados no País. Não
vejo muitos sinais de que o eleitorado tenha crescido como fruto da
mobilização política. Para o cidadão, o que conta é o medo das punições
decorrentes do fato de ele não tirar o título.
Em 2010, tínhamos 95% da
população adulta alistada como eleitora, e 78% dos eleitores votaram,
mantendo-se perto da média de anos anteriores. Isso não é contraditório
com os discursos de “desilusão com a política”? Afinal, desiludida ou
não, a maioria vota. Como explicar essa contradição?
Esses números são estimativas
com bases em projeções que fiz. Na verdade, não sabemos ao certo quantos
adultos não estão inscritos como eleitores atualmente. Uma parte deles,
como eleitores com mais de 70 anos e analfabetos, tem o direito de
fazê-lo. Outros podem ter se autoexcluído por motivos políticos. Somente
uma nova pesquisa sobre participação política poderia dar um quadro
completo dos eventuais excluídos do processo eleitoral brasileiro. Com
relação ao comparecimento eleitoral, os números são estáveis: cerca de
80% dos inscritos comparecem para votar. Entre os 20% que não
comparecem, em torno da metade justifica seu voto. Não há nenhum sinal
de que qualquer desilusão política se traduza em aumento da abstenção.
Sem contar que os votos em branco e nulos caíram na última década.
O sistema proporcional de
lista aberta tem 50 anos e sofreu apenas duas alterações. Uma delas
mudou a fórmula de calcular as cadeiras, excluindo os votos em branco do
quociente eleitoral. Outra foi a volta das coligações proporcionais. As
duas mudanças beneficiaram partidos pequenos, entre eles algumas
máquinas nanicas, voltadas para práticas pouco republicanas, como a
venda de apoio parlamentar em troca de cargos, verbas e outros favores.
Por que essas mudanças ocorreram? A volta das coligações veio com o fim
do regime militar, mas a exclusão dos em branco ocorreu já em 1994...
A contagem dos votos em branco
no cálculo eleitoral vinha desde de 1945 e realmente prejudicava os
pequenos partidos. Seu fim foi aprovado no Congresso com o apoio dos
grandes partidos, que perderam com a nova regra. É difícil entender as
razões. Talvez o fato de que o que conta para cada partido seja o seu
tamanho nos Estados. Uma legenda pode ser grande nacionalmente e pequena
em um determinado Estado. Nesse caso, teria todo o interesse em aprovar
a medida. Quanto às coligações para cargos proporcionais, elas
existiram na República de 1946 e voltaram com a redemocratização, em
1986. Elas geram distorções graves e deveriam ser abolidas. A comissão
de reforma presidida pelo deputado Henrique Fontana (PT-RS) propôs, em
2011, abolir as coligações. Mas a proposta não avançou.
Se olharmos a história
brasileira, veremos pouco mais de 40 anos de eleições com um grau
razoável de confiabilidade, de 1946 a 64 e após o fim do regime,
sobretudo a partir de 1986. É praticamente um quarto do período que o
senhor pesquisou, de quase 200 anos. Podemos dizer que no Brasil
eleições e democracia, na maior parte do tempo, não caminharam juntas?
Na história, as eleições
antecedem a democracia. O caso clássico é o da Inglaterra, que, embora
escolha os membros da Casa dos Comuns pelo voto desde o século 18, só
organizou um sistema democrático moderno, com sufrágio feminino, no
início do século 20. No Brasil não foi diferente, as eleições também
antecederam à democracia. O que tento mostrar é a riqueza das
instituições eleitorais no País antes de consolidarmos um regime
plenamente democrático, a partir de 1985. O que chama a atenção no caso
brasileiro é que as eleições conviveram com diversas formas de regime
político, inclusive o regime militar. Vale a pena lembrar que elas só
foram formalmente suspensas durante o Estado Novo, de 1937 a 1945.
FONTE: ALIÁS / O ESTADO DE S. PAULO
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