domingo, 26 de agosto de 2012

Não é por falta de eleições (Jairo Nicolau/entrevista)


O voto no Brasil antecedeu a democracia e conviveu com diversos regimes, inclusive o militar

Wilson Tosta

Para Jairo Nicolau, o Código Eleitoral de 1932 foi um marco

RIO - De volta a um tema que visitara dez anos antes - a história das eleições brasileiras -, o pesquisador Jairo Nicolau, pós-doutor em ciência política e professor titular da disciplina na UFRJ, encontrou um País surpreendentemente parecido em seu passado político com outros que hoje são festejadas democracias. Assim como a Inglaterra, o Brasil tinha eleições já no século 18, quando colonos escolhiam pelo voto vereadores, juízes de paz e procuradores, e, da mesma forma que os EUA, viveu no século 19 pleitos fraudados. Curiosamente, esses mesmos países estavam entre os que inspiraram intelectuais e juristas no desenho legal das instituições brasileiras que foram palco da vida política nacional desde a Independência. Nicolau descobriu ainda um Brasil que, há mais de cem anos, desenvolve “tecnologias” na tentativa de tornar mais confiáveis as disputas. Nosso primeiro título eleitoral nasceu em 1875, quando a República ainda era apenas uma ideia.

“Os legisladores brasileiros sempre foram muito criativos”, diz Nicolau, que está lançando Eleições no Brasil - Do Império aos Dias Atuais, pela editora Zahar, dez anos depois de História do Voto no Brasil, um livro de bolso pela mesma editora, com a mesma temática, porém mais limitado.

Alguns pontos se destacam na investigação mais recente de Jairo Nicolau sobre as eleições. Um é que, ao mesmo tempo que o País atravessou muitas vezes períodos de instabilidade política, as eleições repetiram-se com regularidade razoável - ainda que sua validade, como instrumento de representação, fosse muitas vezes questionável. Outro é que alguns sistemas eleitorais duraram períodos relativamente longos por aqui.

O voto censitário (que exigia que o cidadão, para votar, tivesse um certo nível de renda) marcou todo o Império brasileiro (de 1824 a 1889); a votação indireta para Câmara e Senado foi abolida apenas em 1881; e diversos tipos de eleição distrital foram usados durante a monarquia do Brasil. O voto distrital, inclusive, entrou pela República e só deu lugar ao proporcional em 1932, depois que a Revolução de 1930 mandou a República Velha para os livros de história.

Então as eleições no Brasil vieram antes da democracia? Segundo Nicolau, sim, mas isso não é exclusividade brasileira. O mesmo ocorreu em outros países hoje vistos como democracias modelo. Muito antes da queda do regime militar, em 1985, assinala, o Brasil já tinha uma exuberante variedade de instituições eleitorais. Elas existiam até sob a ditadura instaurada em 1964, que, mesmo com limitações, bipartidarismo imposto, falta de liberdades democráticas e legislação autoritária, realizou eleições com regularidade, embora para um Congresso Nacional sem poderes efetivos e constrangido pela força. Em 190 anos de vida independente, apenas durante 9 - de 1937 a 1945, no Estado Novo - o País ficou formalmente sem pleitos eleitorais. Uma peculiaridade brasileira, assim como o surpreendente aumento de participação eleitoral precisamente no mais duro período de fechamento da política nacional: a ditadura militar.

As pessoas olham para as eleições hoje, com voto obrigatório, partidos organizados, TREs, registro prévio de candidatos, campanha eleitoral regulamentada, e acham que sempre foi assim. No entanto, em termos históricos, esses são fenômenos relativamente recentes, não?

Naturalizamos nossas instituições eleitorais. Mas cada uma delas tem uma história particular. O Brasil tem uma das mais duradouras experiências de eleições do mundo, comparável às de importantes países. Mas a prática eleitoral nos nossos dias é muito diferente da de décadas atrás. Por exemplo, em meados do século 19 nenhum país tinha adotado o voto secreto e o alistamento prévio de eleitores, apenas homens da elite tinham o direito de voto e as fraudes ocorriam em larga escala.

O Brasil parece ter sido pioneiro em, digamos, tecnologia eleitoral - o primeiro título eleitoral brasileiro é de 1875. Aqui, inovamos ou imitamos?

Os legisladores brasileiros sempre foram muito criativos com a “tecnologia” eleitoral. Não tenho informações sobre o uso de documentos de identificação eleitoral em outros países, mas o título de eleitor brasileiro talvez seja um dos primeiros do mundo. As medidas para garantir o sigilo do voto, primeiro o envelope oficial e depois a cédula única, foram decisões importantes. Recentemente, o Brasil se tornou provavelmente o primeiro país a ter um controle eletrônico do processo de votação, em um ciclo que começa no alistamento, chega à votação na urna eletrônica e termina com a apuração.

Seu livro começa nas eleições da Colônia. Esses pleitos eram importantes?

Desde o século 16 a coroa portuguesa criou um sistema de eleições para cargos em âmbito municipal. As regras vigoravam tanto em Portugal como nas colônias. Fiquei impressionado com a sofisticação das regras eleitorais. Encontrei alguns estudos de caso que mostram que havia eleições regulares. Mas gostaria de ter achado mais pesquisas sobre o tema para ter segurança de dizer que as eleições realmente eram uma rotina da governança colonial.

Como eram as eleições no Império?

De 1825 até o fim do Império, em 1889, foram mais de seis décadas de eleições. Um fato que chama a atenção é a regularidade dos pleitos no período. Para dar um exemplo: houve 27 eleições para a Assembleia Legislativa da Província do Rio de Janeiro. A legislação eleitoral foi muito alterada nessas seis décadas e não creio que seja possível tratá-la como um bloco monolítico. Os relatos mostram que as fraudes foram amplamente utilizadas, mas a partir da década de 1880 elas diminuíram, graças à criação do título de eleitor e à administração do pleito pelo Judiciário.

Pode-se fazer um paralelo do Brasil da época com outros países?

O Brasil tem uma das mais ricas experiências eleitorais do século 19. As fraudes eleitorais não eram uma singularidade do País. Muitos estudos mostram que eram uma prática generalizada na Europa, nos Estados Unidos e em outros países latino-americanos.

É interessante notar que, ao longo do Império e da República Velha, mais de cem anos, o País teve voto distrital. A que podemos atribuir isso?

O que chamamos sistema eleitoral majoritário distrital foi o primeiro a ser adotado nas eleições para o Parlamento dos países europeus. O sistema proporcional é uma invenção do final do século 19 e foi adotado pela primeira vez na Bélgica, em 1899. Um dos temas centrais do debate sobre a reforma eleitoral feito no Império e na Primeira República foi a ampliação da representação das minorias, entendido na época como os grupos não dominantes das elites estaduais. Só no século 20 se descobriu que a melhor forma de fazer isso seria por intermédio da representação proporcional.

Podemos dizer que somente após a Revolução de 30 as eleições no País ganharam mais seriedade ou isso é uma simplificação?

O grande marco da história eleitoral do Brasil é o Código Eleitoral de 1932, que aliás faz 80 anos. Ele criou a Justiça Eleitoral, ampliou o direito de voto para as mulheres, introduziu regras para o sigilo do voto e adotou a representação proporcional. As duas eleições da década de 1930 (1933 e 1934) são consideradas pelos atores da época como eleições limpas e competitivas, embora ainda com reduzido número de eleitores.

Seu livro levanta alguns dados curiosos. Um, mais conhecido, é que o País teve, por um período curto, representação classista, deputados eleitos por categorias profissionais, ao lado de representantes gerais. Outro é que chegou a ser possível o registro de candidaturas de grupos de eleitores e candidaturas avulsas. Como essas instituições funcionaram?

O governo provisório de 1930 inventou um sistema representativo que combinava um Legislativo tradicional - deputados eleitos pela população - com uma parte de representantes eleitos pelos sindicatos, de trabalhadores e patronais. Curiosamente, a representação corporativa não foi proposta pelo grupo de juristas que criou o Código de 1932. Essa era uma reivindicação do Clube 3 de Outubro, que apoiava Getúlio Vargas, e foi adotada sem nenhuma discussão pública. Nos anos 1930 ainda não estava tão claro que os partidos teriam o monopólio da representação como aconteceria depois. Nas eleições de 1933 e 1934 concorreram partidos, ligas, associações e candidatos avulsos. Mas no cômputo geral os candidatos avulsos não foram tão bem-sucedidos.

Quando o voto proporcional entra em cena no Brasil?

Uma primeira versão de voto proporcional foi adotado em 1932. Mas nesse caso ainda em combinação com um sistema majoritário. A representação proporcional de lista (modelo ainda em vigor) começou a ser utilizada em 1945. A defesa da representação proporcional não foi uma causa de partidos ou movimentos sociais, mas praticamente de um único homem: Joaquim de Assis Brasil, um político gaúcho. Durante toda a Primeira República, ele defendeu quase solitariamente a representação proporcional. Coube a ele a presidência da comissão responsável por elaborar o Código de 1932. O que facilitou a escolha por esse sistema.

Houve algum motivo especial para adoção do voto proporcional em 45?

Na realidade, ele foi criado como uma mudança no sistema misto inventado em 1932. O sistema era tão complexo - havia a opção de o eleitor votar em mais de um nome - que causou enorme confusão. Em alguns Estados a apuração dos votos demorou semanas. Quando o País se redemocratizou, em 1945, foi feita a proposta de votar em um único nome, com votos contabilizados apenas para os partidos. Os legisladores não copiaram esse modelo de nenhum outro país. Até porque, entre os casos que consegui estudar, ele não estava em vigor em nenhum lugar do mundo.

Onde mais podemos encontrá-lo?

Outros países chegaram ao voto proporcional por caminhos próprios. Depois os estudiosos passaram a chamá-lo de lista aberta. A Itália utilizou um sistema muito parecido entre 1945 e 1992; o Chile, entre 1958 e 1973. Outro país que utiliza a lista aberta há muitos anos é a Finlândia. Entre as novas democracias, o Peru, a Polônia e a Letônia usam.

O regime militar brasileiro teve, entre suas peculiaridades, eleições para cargos de pouco poder. Por que essa obsessão?

O regime militar manteve eleições para o Congresso, ainda que com muitas restrições, para as câmaras municipais e para prefeitos da maioria das cidades, com exceção das capitais e cidades consideradas de segurança nacional. A suspensão plena foi da eleição para presidente e governadores. Creio que a “invenção” do bipartidarismo, em 1966, com forte domínio de um partido governista, a Arena, deu segurança para que os dirigentes militares mantivessem o calendário eleitoral. Pesquisando o material da época, não lembro de encontrar personagens relevantes defendendo a organização de um sistema político completamente sem eleições.

Seu livro também aponta um dado intrigante: o aumento na participação eleitoral durante a ditadura, apesar da redução de opções. Por que isso?

Os dirigentes militares alteraram profundamente o processo eleitoral, com medidas que iam das cassações e uso da violência até alterações oportunistas das regras para favorecer a Arena, mas não fizeram nada para mudar o processo de alistamento eleitoral. As regras vindas da República de 1946 se mantiveram: cidadãos alfabetizados que completassem 18 anos eram obrigados a se alistar. O crescimento do eleitorado deve-se em larga medida ao crescente contingente de adultos alfabetizados no País. Não vejo muitos sinais de que o eleitorado tenha crescido como fruto da mobilização política. Para o cidadão, o que conta é o medo das punições decorrentes do fato de ele não tirar o título.

Em 2010, tínhamos 95% da população adulta alistada como eleitora, e 78% dos eleitores votaram, mantendo-se perto da média de anos anteriores. Isso não é contraditório com os discursos de “desilusão com a política”? Afinal, desiludida ou não, a maioria vota. Como explicar essa contradição?

Esses números são estimativas com bases em projeções que fiz. Na verdade, não sabemos ao certo quantos adultos não estão inscritos como eleitores atualmente. Uma parte deles, como eleitores com mais de 70 anos e analfabetos, tem o direito de fazê-lo. Outros podem ter se autoexcluído por motivos políticos. Somente uma nova pesquisa sobre participação política poderia dar um quadro completo dos eventuais excluídos do processo eleitoral brasileiro. Com relação ao comparecimento eleitoral, os números são estáveis: cerca de 80% dos inscritos comparecem para votar. Entre os 20% que não comparecem, em torno da metade justifica seu voto. Não há nenhum sinal de que qualquer desilusão política se traduza em aumento da abstenção. Sem contar que os votos em branco e nulos caíram na última década.

O sistema proporcional de lista aberta tem 50 anos e sofreu apenas duas alterações. Uma delas mudou a fórmula de calcular as cadeiras, excluindo os votos em branco do quociente eleitoral. Outra foi a volta das coligações proporcionais. As duas mudanças beneficiaram partidos pequenos, entre eles algumas máquinas nanicas, voltadas para práticas pouco republicanas, como a venda de apoio parlamentar em troca de cargos, verbas e outros favores. Por que essas mudanças ocorreram? A volta das coligações veio com o fim do regime militar, mas a exclusão dos em branco ocorreu já em 1994...

A contagem dos votos em branco no cálculo eleitoral vinha desde de 1945 e realmente prejudicava os pequenos partidos. Seu fim foi aprovado no Congresso com o apoio dos grandes partidos, que perderam com a nova regra. É difícil entender as razões. Talvez o fato de que o que conta para cada partido seja o seu tamanho nos Estados. Uma legenda pode ser grande nacionalmente e pequena em um determinado Estado. Nesse caso, teria todo o interesse em aprovar a medida. Quanto às coligações para cargos proporcionais, elas existiram na República de 1946 e voltaram com a redemocratização, em 1986. Elas geram distorções graves e deveriam ser abolidas. A comissão de reforma presidida pelo deputado Henrique Fontana (PT-RS) propôs, em 2011, abolir as coligações. Mas a proposta não avançou.

Se olharmos a história brasileira, veremos pouco mais de 40 anos de eleições com um grau razoável de confiabilidade, de 1946 a 64 e após o fim do regime, sobretudo a partir de 1986. É praticamente um quarto do período que o senhor pesquisou, de quase 200 anos. Podemos dizer que no Brasil eleições e democracia, na maior parte do tempo, não caminharam juntas?

Na história, as eleições antecedem a democracia. O caso clássico é o da Inglaterra, que, embora escolha os membros da Casa dos Comuns pelo voto desde o século 18, só organizou um sistema democrático moderno, com sufrágio feminino, no início do século 20. No Brasil não foi diferente, as eleições também antecederam à democracia. O que tento mostrar é a riqueza das instituições eleitorais no País antes de consolidarmos um regime plenamente democrático, a partir de 1985. O que chama a atenção no caso brasileiro é que as eleições conviveram com diversas formas de regime político, inclusive o regime militar. Vale a pena lembrar que elas só foram formalmente suspensas durante o Estado Novo, de 1937 a 1945.

FONTE: ALIÁS / O ESTADO DE S. PAULO

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