Por Giovanna Bartucci | Para o Valor, do Rio
"Fazer é pensar", afirma Richard
Sennett, um dos mais importantes sociólogos contemporâneos. Seu
trabalho reflete sobre como os sujeitos podem se tornar intérpretes
competentes da própria experiência a despeito dos obstáculos que a
sociedade possa oferecer. Para ele, pensamento e sentimento estão
contidos no processo de fazer, transformando em falsa a divisão entre o
"homem que faz" e o "homem que pensa" - aqui se remete às reflexões da
filósofa alemã Hannah Arendt, de quem foi aluno. Sennett acaba de ter
lançado no Brasil o livro "Juntos: Os Rituais, os Prazeres e a Política
da Cooperação", segundo volume do seu "Projeto Homo Faber", trilogia que
tem no centro a ideia do homem como artífice de si mesmo.
Com mais de 15 livros publicados
sobre como as cidades são organizadas - as relações entre classes
sociais, oportunidades econômicas e relações familiares -, e também
sobre as consequências sociais e emocionais do capitalismo
contemporâneo, as pesquisas de Sennett se voltaram, nos últimos tempos,
para os estudos culturais, estabelecendo um diálogo entre sociologia,
história, antropologia e psicologia social.
Seu "Projeto Homo Faber" defende
a urgência em pesquisar "as habilidades necessárias à vida cotidiana",
ao explorar práticas sociais e materiais - isto é, os objetos, as
ferramentas e as máquinas criadas pelo homem e o modo pelo qual ele
interage com elas - presentes em um mundo globalizado e pleno de
incertezas.
Se em "O Artífice" (Record,
2009), primeiro volume da série, Sennett analisa a artesania, ou seja, o
empenho de fazer bem as coisas materiais, no livro recém-lançado ele
aborda a natureza da cooperação, traça a evolução de seus rituais desde a
Idade Média até a atualidade e detém-se nas razões pelas quais a
cooperação se tornou débil e na maneira pela qual pode ser fortalecida.
"Juntos" foi uma consequência
natural de "O Artífice", já que "a artesania prospera em comunidades com
laços sociais fortes e em organizações que encorajam a cooperação",
afirma o sociólogo, professor da New York University, da London School
of Economics e da Cambridge University - onde é professor-visitante
emérito. Sennett define a cooperação habilidosa como um ofício que tem o
seu fundamento no aprendizado de escutar o outro com atenção e na
capacidade de dialogar, em oposição a debater ou discutir. No entanto,
se na economia contemporânea artesania e cooperação estão ameaçadas e o
desafio de conviver com a diferença - seja racial, étnica, religiosa ou
econômica - é extremo, Sennett entende que a prática da cooperação se
torna fundamental para a prosperidade da sociedade.
Considerando ainda que as
relações e "condições" espaciais têm importância enorme no modo por meio
do qual "estranhos" (ou pessoas diferentes umas das outras) se
relacionam nas grandes cidades, o autor espera que o terceiro volume da
trilogia, ainda em elaboração, possa produzir ideias de valor sobre como
as cidades podem ser mais bem construídas visando a qualidade de vida
das pessoas.
"Eu
me cansei de ser apenas um crítico do capitalismo. É deprimente
escrever somente sobre o que não funciona bem", afirma o sociólogo
É provável que seus escritos
sobre as cidades tenham sido fortemente influenciados por sua
experiência de vida familiar. Nascido em 1º de janeiro de 1943, em
Chicago, o autor morou, dos 3 aos 9 anos, com a mãe, escritora e
destacada assistente social, em Cabrini Green, conjunto habitacional
construído com o objetivo de suprir a escassez de moradia causada pela
Segunda Guerra, mas também de combater a segregação racial.
O relacionamento passivo com o
conjunto habitacional, cuja austeridade arquitetônica, com seus caixotes
baixos e compridos, representava a bandeira modernista do projeto,
deixou marcas na "comunidade mista de negros, brancos pobres, mutilados
[de guerra] e perturbados mentais [que] compunha o objeto do experimento
de inclusão social", escreve o autor no livro "Respeito - A Formação do
Caráter em um Mundo Desigual" (2004, Record). Frequentando uma escola
católica e mergulhado em estudos musicais iniciados aos 5 anos, Sennett
passou a infância em Cabrini Green. Aos 15, já tendo morado com a mãe em
Washington, durante seis anos, o então músico saiu de casa e, de volta a
Chicago, passou a viver de seu trabalho como violoncelista.
Músico profissional dos 15 aos
19, quando passou a sofrer de síndrome do túnel carpal, foi obrigado a
abandonar a carreira precocemente e a investir, ainda que à época de
maneira descomprometida, na sociologia. Assim, não soa estranha sua
afirmação: "Minha sociologia é construída em torno do modelo de
aquisição da habilidade de tocar um instrumento, e a prática e o
aprimoramento da prática têm sido sempre o centro do que tenho realizado
em sociologia". E mais: "No que diz respeito à cooperação e relações de
autoridade, a maneira por meio da qual músicos trabalham juntos se
constituiu em um modelo de sociabilidade para mim".
Detentor de numerosos prêmios e
com obras traduzidas para diversos idiomas, Richard Sennett também
publicou três livros de ficção na década de 1980, ainda inéditos no
Brasil. A seguir, trechos da entrevista que concedeu, por telefone, de
Londres, na qual fala de seu trabalho, do futuro e de si como o próprio
artífice.
Valor: Antes de
começar a trabalhar na sua trilogia, o senhor escreveu de maneira
extensa sobre as consequências sociais e emocionais do capitalismo
contemporâneo. Como vê o mundo hoje?
Richard Sennett: A década
de 1990, período durante o qual escrevi esses ensaios críticos ["A
Corrosão do Caráter", "Respeito" e "A Cultura do Novo Capitalismo"], foi
um período de boom para o neoliberalismo. O que está acontecendo agora é
que estamos vivendo uma crise, a era neoliberal entrou em colapso, no
que diz respeito à sua manutenção financeira, e suas fontes têm se
provado insustentáveis. Tive um vislumbre disso, na época, quando
percebi que a experiência de trabalho das pessoas estava se tornando
muito empobrecedora. Hoje, eu diria que a ideia de encontrar uma
alternativa não é um projeto utópico, mas algo que precisamos fazer
porque esse sistema não funciona. No entanto, encontrar uma alternativa
significa repensar coisas muito básicas, como o que é trabalhar bem,
cooperar, criar um lugar no mundo para si. Estou interessado em
pesquisar de maneira aprofundada sobre como as nossas atitudes e os
nossos comportamentos devem mudar para que sejamos capazes de responder a
essa crise.
Valor: A sua trilogia é, então, a sua resposta a esse estado de coisas?
Sennett: Sim, exatamente.
Eu me cansei de ser apenas um crítico do capitalismo. É deprimente
escrever somente sobre o que não funciona bem. Comecei, então, a pensar
sobre qual seria a melhor maneira de compreender como as pessoas exercem
um ofício e trabalham. E todo esse novo campo que diz respeito a
questões relacionadas às habilidades, à busca da qualidade e à forma que
as atividades produtivas podem estar associadas a como as pessoas
cooperam umas com as outras, estabelecem relações sociais e criam
espaços para viver nas cidades, se abriu para mim. São esses os temas da
trilogia.
Valor: Quais são os
valores e práticas capazes de manter as pessoas "juntas", cooperando
umas com as outras, neste momento em que as instituições se encontram
desacreditadas?
Sennett: Penso que há
duas, inicialmente. A primeira diz respeito ao tempo, à duração de
tempo, que instituições da sociedade civil e organizações como ambientes
de trabalho mantêm as pessoas em contato umas com as outras.
Atualmente, o mundo social tem se organizado em torno de trocas de curto
prazo, ao invés de relações de longo prazo. Expandir o tempo significa,
por exemplo, possibilitar que trabalhadores estabeleçam contratos de
longo prazo, em lugar de curto prazo. Essas são aplicações muito
práticas. No que diz respeito às empresas, implica manter trabalhadores
em suas equipes, ao invés de deslocá-los permanentemente, de maneira
flexível. Ou seja, tempo funcionando aqui como cimento, como uma
narrativa. A segunda habilidade que as pessoas têm que aprender, para
enfrentar essa crise, diz respeito à capacidade de lidar com a
agressividade e a competição, na medida em que formas agressivas de
competição são recompensadas, enquanto outras formas não o são,
provocando uma desigualdade enorme. Penso que é importante repensarmos a
competição tanto culturalmente quanto economicamente.
Valor: O senhor tem
afirmado que a "cooperação" tem se deteriorado na esfera política e
também na sociedade civil e define o termo como "trabalhar com os outros
para fazer algo que não se consegue fazer por si próprio". No entanto, a
expectativa é de que os homens e mulheres contemporâneos sejam
autossuficientes e autocentrados. O que pensa desse paradoxo?
Sennett: O problema aqui
está em como pensar em precisar de pessoas com as quais não se está
conectado intimamente, que não se conheça bem ou mesmo de quem não se
gosta. Ou seja, de um modo mais adulto e complexo. E essa é a realidade
adulta que está presente na "cooperação". No entanto, para que isso seja
feito é necessário imaginar que as relações sociais são como uma
oficina [workshop] na qual as pessoas, com diferentes qualidades e
habilidades, trabalham sobre um problema comum. Uma oficina não é apenas
uma oficina de artesanato; existem laboratórios científicos que
funcionam da mesma maneira. O paradoxo, então, não está na sociedade
como um todo, mas exatamente no fato de que o sistema econômico
recompensa e premia uma forma não produtiva de trabalho conjunto. E o
sistema trata as pessoas como autossuficientes porque recompensa aqueles
poucos que o são e não recompensa muito bem aqueles que não têm esse
tipo de "capital humano" ou posição social. Desse modo, se há um
paradoxo, aqui, diz respeito ao fato de que o sistema está cego para
aquilo que é, de fato, produtivo.
"Uma
das coisas que espero que fiquem claras é que não faço distinção entre
corpo e mente, ao me ater a como os seres humanos produzem coisas"
Valor: Como o senhor vê as mobilizações sociais como Occupy Wall Street e os movimentos sociais omo a Primavera Árabe?
Sennett: Com prazer! Mas
são formas muito diferentes de cooperação. O que chamamos de Primavera
Árabe foram movimentos de massa nos quais as pessoas cooperavam em
grandes multidões, e o fato de se juntarem em uma quantidade enorme de
pessoas foi parte de sua força. Os movimentos Occupy foram bem menores -
e isso é algo que as pessoas esquecem, que eram de apenas 200 ou 300
pessoas. Esses movimentos não se apoiaram na quantidade de participantes
e, sim, na persistência em provocar uma conscientização no público, de
maneira geral, por meio da mídia. Em outras palavras, não era um
movimento de massa, como o entendemos, mas tornou-se um na medida em que
despertou o público de maneira bem diferente. E a cooperação, aqui,
está no fato de que essas 200 ou 300 pessoas, dormindo juntas no parque,
em Nova York, criaram laços sociais que permitiram que perseverassem.
Os movimentos Occupy não eram "demonstrações", que teriam a duração de
algumas horas ou um dia, mas "ocupações" de longo prazo - o que deu às
pessoas envolvidas a força para continuar a tentar despertar o público.
Nos movimentos da África do Norte havia uma massa de pessoas que não
precisava ser acordada. Elas haviam vivido sob tirania por décadas. O
que precisavam era de um "instrumento" por meio do qual se juntar. Mas
na Inglaterra e nos Estados Unidos os movimentos Occupy aconteceram após
três anos de colapso financeiro, durante os quais a maioria das pessoas
comprou a história de que o sistema tinha de ser restaurado ao que era
antes, e os ocupantes desafiaram isso. As formas de cooperação são,
então, muito diferentes, uma impessoal e outra bastante pessoal, com
objetivos distintos. Mas ambas são formas de cooperação política.
Valor: O seu livro
"Carne e Pedra" (1992) é um estudo sobre como a experiência do corpo tem
sido moldada pela evolução das cidades. Como é que o terceiro volume de
sua trilogia está relacionado ao seu trabalho anterior?
Sennett: É claro que vou
me apoiar em minhas pesquisas anteriores, mas a diferença está em que o
terceiro volume tem como tema o design urbano, o planejamento e a
arquitetura como ofícios. O foco estará menos na maneira em como as
pessoas habitam espaços que não construíram e mais em como construir
cidades de melhor qualidade por meio do design.
Valor: O corpo como sítio, como uma "cidade". O que o senhor pensa dessa ideia?
Sennett: O corpo é uma
cidade! Sim, é um sítio tanto de conhecimento quanto de ação. E uma das
coisas que espero que fiquem claras ao final dessa trilogia é que não
faço distinção entre corpo e mente, ao me ater em como os seres humanos
produzem coisas. Desconfio absolutamente da ideia de que as pessoas,
quando produtivas, estejam fisicamente desconectadas e de que tenham uma
vida espiritual divorciada dos sentidos. É estranho, mas esse é um tipo
de romantismo que tem persistido: acreditar que se tenha uma vida
interior divorciada da vida exterior.
Valor: E os seus romances? Como estão relacionados ao seu trabalho sociológico?
Sennett: Gosto bastante
de "Palais Royal" (1987). O que aconteceu foi que, quando terminei "O
Declínio do Homem Público" (1974), senti que a minha escrita estava se
deteriorando e eu estava perdendo a habilidade de escrever de maneira
"evocativa". Leio ficção sempre; decidi, então, que começaria a escrever
romances para encontrar caminhos por meio dos quais rejuvenescer a
minha escrita. Escrever não é algo natural para mim; os resultados são
satisfatórios, mas preciso fazer um esforço. Assim, escrevi romances
porque precisava fazer o meu workshop pessoal.
Giovanna Bartucci é
psicanalista, professora doutora de teoria psicanalítica (UFRJ), autora
de "Fragilidade Absoluta. Ensaios Sobre Psicanálise e Contemporaneidade"
(Planeta), entre outros livros
"Juntos: Os Rituais, os
Prazeres e a Política da Cooperação". Richard Sennett. Trad.: Clóvis
Marques. Record, 378 págs., R$ 49,90
FONTE: VALOR ECONÔMICO – EU & FIM DE SEMANA (25/07/12)
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