quarta-feira, 28 de setembro de 2011

O Brasil de hoje é o Maranhão de 1966 (José Nêumanne)

Nesta semana, este Estadão ainda não se livrou da censura imposta pelo Judiciário às notícias a respeito da Operação Boi Barrica, na qual a Polícia Federal (PF) investigou negócios suspeitos da família Sarney. Esta também foi aliviada com a notícia de que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) invalidou as provas que a referida autoridade policial levantou na dita investigação. O YouTube revelou a cinéfilos e interessados em política um curta-metragem de propaganda feito pelo baiano Glauber Rocha, ícone do Cinema Novo e da sétima arte no Brasil, por encomenda do então jovem governador do Maranhão, registrando o início de uma carreira política que, contrariando as previsões mais otimistas, o levou à Presidência da República. E a um poder, na presidência do Senado, que ora lhe permite substituir no Ministério do Turismo um indicado, Pedro Novais, afastado por suspeita de corrupção e evidências de má gestão, por outro, Gastão Vieira, cuja única virtude notória é a de ser mais um ilustre desconhecido e leigo nos assuntos da pasta a assumi-la.

O filme de Glauber Rocha, Maranhão 66, suscitou um debate inócuo em torno das intenções e dos verdadeiros interesses do cineasta e da notória sagacidade do político profissional que patrocinou um comercial da própria posse e terminou por financiar um documentário vivo e cru da dura realidade do País e de seu Estado miserável. Questionou-se se o cineasta foi leal a seu patrocinador ou se se aproveitou do patrocínio dele para, com imagens chocantes, denunciar o abismo existente entre o discurso barroco do empossado e a revoltante miséria de seu eleitorado. Também foram levantadas dúvidas sobre o papel do protagonista do filme no relativo ostracismo em que a obra mergulhou, não merecendo a fortuna crítica que obras como Deus e o Diabo na Terra do Sol e Terra em Transe viriam a ter. Glauber foi um militante de esquerda, mas aderiu à ditadura em seus estertores quando voltou ao Brasil, chegando a chamar o ideólogo da intervenção militar contra a pretensa República sindicalista, general Golbery do Couto e Silva, de "gênio da raça". O Sarney por ele filmado era da "Bossa Nova" da UDN, com tinturas pink, mas aderiu ao regime autoritário e, depois, se afastou dele para entrar na chapa que lhe pôs fim no colégio eleitoral.

Personagem e autor podem, assim, alinhar-se na galeria das "metamorfoses ambulantes" em que Luiz Inácio Lula da Silva se introduziu, inspirando-se em Raul Seixas, para justificar na prática sua adesão ao lema de Assis Chateaubriand, segundo o qual "a coerência é a virtude dos imbecis". Mas, com todo o respeito às boas intenções de quem entrou no debate, não é a incoerência do material do curta-metragem que interessa, e sim exatamente o contrário: a permanência das práticas denunciadas com a imagética bruta da fita sob a gestão do orador inflamado e empolado, que as usava para detratar seus antecessores, dos quais assumiu os mesmos vícios ao tomar-lhes o lugar nos braços do povo que, "bestializado", na definição de José Murilo de Carvalho, o ouvia e aclamava.

O autor deste texto é glauberiano de carteirinha: presidi o Cine Clube Glauber Rocha em Campina Grande um ano depois de o curta ter sido produzido, mas nunca me interessei por ele. Graças ao mesmo YouTube que trouxe de volta obras-primas perdidas da música para cinema no Brasil, como as trilhas de Sérgio Ricardo para Deus e o Diabo na Terra do Sol e de Geraldo Vandré para A Hora e a Vez de Augusto Matraga, Maranhão 66 emergiu. E despertou o debate errado: não importa se Glauber exaltou ou execrou Sarney nem se este foi elogiado ou ludibriado pelo cineasta contratado. Interessa é perceber a genialidade da peça cinematográfica no que ela tem de mais poderoso: a constatação de que a cena de um homem fazendo um penico de prato antecede outra em que urubus sobrevoam um lixão, ao som da retórica barroca e vazia de um demagogo, retratando o Maranhão daquela época e, sem tirar nem pôr, o Brasil de agora.

Sarney, que preside o Senado e o Congresso e põe no Ministério do Turismo de Dilma Rousseff quem lhe apraz, é o símbolo vivo do Brasil em que, no poder, o PT da presidente, associado ao saco de gatos do PMDB do senador pelo Amapá, mantém incólume "tudo isso que está aí" e que Lula prometeu a seus devotos exterminar. O problema do filme feito para exaltar a esperança no jovem político que assumiu o poder prometendo mudar tudo não é ter seu diretor traído, ou não, o acordo feito com o financiador ao expor as mazelas que ele garantiu que acabaria e não acabou. A tragédia é que nada mudou.

E não é o caso só de Sarney. A vassoura com que Jânio Quadros varreria o Brasil terminou sendo posta atrás da porta do Palácio do Planalto para expulsá-lo do poder. O caçador de marajás Fernando Collor foi defenestrado sob a acusação de ter executado com desenvoltura as práticas daninhas que usou como chamarizes para atrair eleitores incautos e, depois do período sabático fora do poder, voltou ao Congresso para bajular os novos guardiães dos cofres da viúva. E estes também desempenharam com idêntico cinismo o papel de restauradores da moralidade que engrossaram o caldo sujo da malversação do erário, primeiro, sob Luiz Inácio Lula da Silva e, depois, sob Dilma Rousseff, cuja meia faxina em nada fica devendo aos arroubos de falso moralismo de antanho.

Desde sempre, vem sendo cumprida a verdadeira missão dos políticos no poder no Brasil sob qualquer regime e com qualquer bandeira partidária: "O Estado brasileiro usa as leis para manter os maus costumes", definiu, magistralmente, o antropólogo Roberto DaMatta na entrevista das páginas amarelas da Veja desta semana. Foi por isso que aqui se inverteu o aforismo de Heráclito de Éfeso: o rio em que nos banhamos tem sido emporcalhado a jusante por quem promete limpar a água - Sarney, Jânio, Collor, Lula, Dilma, etc.

José Nêumanne, jornalista, escritor. É editorialista do Jornal da Tarde.

Pô Dilma!!!!!

"Dilma saúda com gosto esse 28º partido brasileiro. Tanto faz se de esquerda, de centro ou de direita"
Pô Dilma, e nós que gastamos tantas noites em Porto Alegre, lá pelos anos 70, só conversando que a gente só queria construir ou só reconstruir uma ideologia para viver.

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Em busca do bumbo perdido (Raymundo Costa)

O PSDB perdeu três eleições presidenciais consecutivas, mas aumentou percentualmente sua participação no eleitorado nacional.

Ainda assim, a tendência é que os tucanos não alcancem o número de votos necessários para voltar a ocupar o Palácio do Planalto, nas eleições de 2014, mantida a taxa de crescimento do partido nas eleições para presidente da República realizadas desde 2002, a primeira vencida pelo Partido dos Trabalhadores.

Essa é uma das conclusões a que chegou a pesquisa encomendada pelo PSDB ao sociólogo Antonio Lavareda, que deve servir de parâmetro para os tucanos em seu processo de reestruturação partidária. O PSDB já marcou para o fim de outubro a realização de um congresso nacional para dar a partida no projeto 2012. O objetivo é começar a reestruturação pelas bases municipais, em declínio desde 2000. E a meta é a eleição de mil prefeitos.

Se o número de votos válidos nos candidatos a presidente do PSDB cresceu a cada eleição, desde 2002, muito embora os tucanos tenham perdido as três, a base municipal teve uma trajetória inversa. O número de votos válidos (e de prefeitos) do PSDB diminuiu depois da eleição de 2004, a última em que pode contar com os benefícios de ter sido governo entre 1995 e 2003.

Para presidente, o percentual dos votos válidos dos candidatos tucanos foi 38,7% (2002), 39,2% (2006) e 43,9% (2010). Nessa toada, a tendência é que o candidato tucano, nas eleições presidenciais de 2014, fique com 45,8% dos votos válidos. Ou seja, um percentual ainda insuficiente para tirar o PT do Planalto.

Para prefeito, a tendência é de declínio. Em 2004, o PSDB teve 16,5% dos votos válidos, percentual que, em 2008, caiu para 14,6%. Nesse ritmo, a projeção é que os tucanos cheguem às eleições municipais do próximo ano com 14,3% dos votos válidos, segundo o estudo de Lavareda. Atualmente, são 793 prefeitos. Eles já foram 990.

Para interromper e alterar essa tendência, o deputado Sérgio Guerra, presidente nacional do PSDB, propõe uma "mudança de rumos" tanto no padrão de organização como no padrão de comunicação dos tucanos. A base seria o trabalho de Lavareda - além das pesquisas quantitativa e qualitativa, foram realizadas entrevistas com mais de 30 líderes tucanos. "Ganhamos eleitoralmente, mas não ganhamos um discurso político", diz Sérgio Guerra.

Pernambucano, 63 anos, economista por formação, o deputado Sérgio Guerra foi reeleito para a presidência do PSDB no contexto de uma nova maioria, entre os tucanos, na qual a pré-candidatura presidencial do senador Aécio Neves (MG) é majoritária.

Guerra quer mudar o jeito de ser tucano. "É preciso mudar nosso vocabulário, que é hermético, nos expandirmos na nova mídia", diz, referindo-se à internet, na qual os tucanos apanham feio do PT, segundo Guerra. "Vamos abrir o PSDB, a nossa imagem é a de partido de caciques, de cúpula". A proposta de Guerra é o PSDB reconstruir a base municipal em declínio, apropriar-se dos créditos das realizações dos oito anos em que esteve no governo e se fazer compreendido pelo eleitorado.

"O PSDB não consegue se fazer compreendido. O PT e o PV são mais compreendidos em sua natureza do que o PSDB", diz Guerra. Segundo a pesquisa de Lavareda, 72% dos entrevistados sabem o que significa a sigla PT, enquanto outros 59% não têm dificuldades para associar imediatamente o PV aos verdes e às questões ambientais. Apenas 28% reconhecem a sigla PSDB.

No universo pesquisado, 69% fizeram uma avaliação positiva do conceito "Social-Democracia", mas ele não é relacionado aos tucanos. "O Brasil não tem a noção de que nós somos o partido da social-democracia", diz Sérgio Guerra. "É preciso que nossos atributos sejam reconhecidos. O PSDB deve se projetar para o futuro, mas precisa ter uma trajetória reconhecida como tal: o que fizemos, quem nós somos".

"Cometemos um erro, nossas marcas não foram apropriadas pelo PSDB", diz Guerra, tomando o cuidado de não fazer recriminações. "Ao longo dos anos foi se firmando no meio do povo que as coisas boas tinham origem no PT", especula, antes de citar um exemplo concreto: os medicamentos genéricos, criação de José Serra, quando ministro da Saúde, que 40% da população credita ao governo Fernando Henrique Cardoso e outros 40% ao governo Lula.

Guerra traz o exemplo na ponta de língua - trata-se de um afago em José Serra, adversário que tanto ele como Aécio Neves preferem próximo a ter como inimigo nas eleições de 2014. Mas a pesquisa de Lavareda revela outros dados interessantes sobre a percepção que a opinião pública tem dos governos tucano e petista. Hoje, 66% dão o crédito a FHC pelo Plano Real, enquanto 17% o atribuem a Lula. O saldo é de 49 em favor do PSDB. Mas quando se fala do Bolsa Família, o saldo pró-Lula é de 60 (75% a 15%). Presidente, FHC sempre reclamou que o PSDB não batia bumbo para os feitos do governo.

O diagnóstico de Lavareda aponta a correlação entre percentuais de voto e mostra como é forte a influência que a eleição de prefeitos tem na eleição de deputados federais. Daí o investimento a ser feito em 2012: a eleição da bancada na Câmara, dois anos depois, é que define o tempo de televisão do partido e sua cota no fundo partidário.

Desde 1998, quando o PSDB reelegeu FHC e fez uma bancada 99 deputados, a representação do partido, a exemplo do que ocorreu com o número de prefeituras, também diminuiu: 71 (2004), 66 (2006) e 53 (2010).

Guerra enxerga nos números razões para ser otimista. Nos 80 municípios com mais de 200 mil eleitores, totalizando 48,9 milhões de votos (36,2% do eleitorado em 2010), José Serra ganhou a eleição para presidente em 40 cidades que não são governadas pelo PSDB, "o que sinaliza a possibilidade de crescimento", diz o deputado. Em 29 dos 40 municípios em que Serra foi o mais votado o prefeito é de um partido da base de sustentação do governo. Dos 80 municípios, os tucanos só elegeram prefeito em 13, nas últimas eleições.

FONTE: VALOR ECONÔMICO

'Ministra Iriny Lopes divulga nota repudiando posicionamento de Coser'

'BRASÍLIA - AGENCIA CONGRESSO - O apoio do prefeito de Vitória João Coser (PT) ao ex-governador Paulo Hartung (PMDB), em detrimento da pré-candidata do partido, Iriny Lopes, foi repudiado hoje, elegantemente, por nota da deputada licenciada.

Em nota distríbuida por sua assessoria de imprensa, Iriny defende o direito a livre manifestação, mas explica que a preferência de Coser não significa posição do partido e nem reflete a vontade, a postura, o ponto de vista e a opinião das demais lideranças petistas e, menos ainda, da população.

Coser já disse que o PT deveria apoiar Hartung - que nem declarou se será candidato e tudo indica que prepara o terreno para seu principal aliado Lelo Coimbra - numa afronta à sua colega de partido que ajudou muito nas suas duas eleições para a PMV.

Na verdade o prefeito está penando no seu futuro político, pois pretende se eleger senador em 2014, e cede as pressões do grupo de Hartung, acreditando que o ex-governador não disputará a senatória, deixando o livre o caminho para ele.
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ÍNTEGRA DA NOTA DA MINISTRA IRINY LOPES DISTRIBUÍDA A IMPRENSA

Em uma verdadeira democracia deve existir diversidade para que o povo possa escolher livremente, dentre as várias opções colocadas, o projeto, o nome que pode atender melhor os interesses públicos e coletivos. É assim que se dá o processo democrático eleitoral, com a possibilidade real de o povo, as lideranças, os partidos, a sociedade civil terem o direito legítimo de discutir nomes e projetos possíveis para os seus anseios e, depois, de contar com tal diversidade nas urnas.

O PT sabe de minha disponibilidade para ser candidata a prefeita da Capital e está trabalhando com essa perspectiva, observando orientação nacional do partido, de se consolidar nos municípios que já administra e aumentar a sua atuação em outros cidades. Isso é de fundamental importância inclusive para implementar e consolidar, nos municípios, grande parte das políticas públicas e ações sociais do governo federal.

Tanto o PT nacional quanto o PT local já manifestaram acolhimento e apoio ao meu nome. O partido, neste momento, debate com aliados potenciais e busca consolidar o seu projeto de disputar, com candidatura própria, a prefeitura da capital. É um projeto legítimo, cujo debate tem sido feito de forma transparente, sintonizado com a política nacional do partido.

No entanto, é importante lembrar que, atualmente, meu foco é a Secretária de Políticas para Mulheres, ministério que dirijo e que tem construído ações importantes, que proporcionam autonomia financeira para as mulheres brasileiras e contribuem para diminuir os absurdos índices de violência ainda sofridos por elas, inclusive no Espírito Santo, líder em assassinatos de mulheres no país.

Sobre as manifestações acerca de nomes e alianças partidárias, lembro que, como tenho dito em outras ocasiões, a manifestação política de qualquer um sobre preferências eleitorais é livre, também faz parte do processo democrático. As pessoas têm o direito de falar o que querem e o que pensam. Só precisamos lembrar que isso não significa dizer que essas manifestações refletem a vontade, a postura, o ponto de vista e a opinião das demais lideranças e, menos ainda, da população.
Fonte: Agencia Congresso.

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Danton deveria ter roubado mais? (Renato Janine Ribeiro)

"Danton fez bem em roubar?", pergunta Julien Sorel a sua quase-namorada, no romance mais famoso de Stendhal, "O vermelho e o negro". Matilde perguntou-lhe o que está pensando e leva um susto ao ouvir seu raciocínio: "Os revolucionários do Piemonte, da Espanha, deveriam comprometer o povo com crimes? Dar a pessoas mesmo sem mérito todos os postos do Exército? Quem os recebesse não temeria a volta do rei? Deveriam ter saqueado o tesouro de Turim? Numa palavra, senhorita - disse, aproximando-se dela com um ar terrível -, o homem que quiser expulsar da terra a ignorância e o crime deve passar como a tempestade e espalhar o mal ao acaso?"

Não é preciso concordar com Julien Sorel, que, aliás, faz uma pergunta, não uma resposta; mas quem não meditar essas palavras duras, quem não pensar a fundo o que ele diz em 1830, não vai entender a política, mesmo atual, mesmo democrática. Quem deseja expulsar o crime e a ignorância precisa causar muitos males enquanto promove o grande bem? Os fins justificam os meios? Não é isso. Porque Julien não fala de qualquer fim, mas do fim mais nobre que há: introduzir o conhecimento e o bem. No entanto, para isso, será preciso cooptar os corruptos?

Essas questões de alta literatura me vieram à mente quando me lembrei de um líder da base governista que, indignado com medidas anti-corrupção da presidente Dilma, teria dito que "ela não sabe que está brincando com fogo". Em valor literário, a diferença entre o personagem de Stendhal e o nosso é gigantesca. Mas não estarão falando de coisas parecidas - com a ressalva de que o parlamentar se empenha em vantagens sem ética, e Julien numa ética maior?

Vivemos hoje a luta entre duas grandes ideias sobre a política. A primeira vem da experiência e diz: governar e ser honesto, a um só tempo, raia o impossível. Não quero dizer que todo governante é desonesto; apenas noto que há um fator poderoso que leva, para obter maiorias, à aliança com políticos de má catadura. Curiosamente, em cada país isso se atribui a causas diferentes. Aqui, uns dizem que acabando com o presidencialismo de coalizão, adotando o voto distrital ou a lista fechada, tudo há de melhorar. Em outros países, recomenda-se o contrário. Mas, em suma, primeira convicção: governabilidade e ética não são amigas de infância. Mesmo quem não é Maquiavel, que defendia que o príncipe mantivesse a todo custo seu Estado, e se bate por valores nobres, precisa sujar as mãos. A expressão é de Sartre. Sem sujá-las, não se faz política.

Mas há uma segunda e poderosa ideia: os valores democráticos. A palavra "democracia", que no começo significava essencialmente a escolha pelo povo, fica tão rica desde a II Guerra Mundial que anexa os direitos humanos, e também os valores éticos. Combater a corrupção, a exploração das mulheres pelos homens e até a exploração do homem pelo homem tornam-se preceitos fundamentais. O problema: como ligar este ponto com o anterior? Por um lado, temos uma forte demanda ética, que deseja espraiar-se pela política e talvez nunca tenha atingido tal dimensão em regime democrático. Talvez. Por outro, queremos dos governos que nos deem ou ao menos nos permitam prosperidade. Estamos divididos, os cidadãos, entre o conforto e a ética. Derrubamos Collor em nome da "ética na política", mas ele não teria caído caso seu governo desse bons frutos. Se caiu, foi porque tinha pouco apoio nos partidos e porque não efetuou o salto para o Primeiro Mundo, que prometera na campanha.

Resumindo, vivemos em dilemas. Do ponto de vista do cidadão, quer-se ética - nem sempre por razões éticas, mas também porque, se todos andarem pelo acostamento, a estrada trava. Mas o mesmo cidadão deseja conforto, prosperidade, uma fatia maior do PIB. Rachado entre os princípios morais e a ambição pela prosperidade, nem sempre crava a escolha na ética, que pode exigir renúncia, sacrifício e derrota. Não é à toa que uns chamam de "ético" quem, para outros, é um perdedor.

Já do ponto de vista do governante, e penso na presidente que mostra menos complacência com a corrupção desde Itamar Franco, a escolha também é difícil. Alguns analistas a condenam ora porque lhe falta jogo de cintura, ora porque demora a demitir acusados de corrupção. Mas jogo de cintura é, nove vezes em dez, complacência com os malfeitos! É esse o seu dilema e o de muitos governantes decentes. O que fazem então os governos? Exceto quando são essencialmente corruptos, procuram manter a flexibilização da ética longe do cerne do poder. Tentam preservar o centro do governo. Vejam o curiosíssimo instituto das emendas parlamentares à lei orçamentária. Duas décadas atrás, José Serra propôs que o orçamento fosse aprovado sem nenhuma emenda. Isso era tão absurdo quanto são as emendas parlamentares de hoje. A democracia surge na Inglaterra com o poder, dos eleitos do povo, de votar e rejeitar impostos e despesas. Aprovar o orçamento é o apogeu desse ritual democrático, quando a sociedade decide o que é prioritário e o que não é. Os Estados Unidos conservam isso, tanto que no governo Clinton ficaram um dia sem orçamento e o governo federal, literalmente, fechou. Mas aqui, se o Parlamento não vota o orçamento, ele é assim mesmo executado. E muitas das emendas, que Serra condenava, são penduricalhos pelos quais o parlamentar atende sua base para conseguir se reeleger - algumas delas, sem necessidade sequer para sua base.

Há saída para esses dilemas? Espero que sim. Mas notem que são dois dilemas. Um é do governo, outro dos cidadãos. Não basta cobrar do governo, se os cidadãos não cobrarem ética de si mesmos.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.

FONTE: VALOR ECONÔMICO

sábado, 24 de setembro de 2011

Rock in Rio? Eu iria. (Tarcísio Bahia/Ufes)

Já tou sabendo das várias comunidades da internet que tão torcendo o nariz para o Rock in Rio 2011 por causa da programação eclética, praticamente sem nada de rock roll de verdade, com um monte de artistas que realmente a gente não se identifica, que só tão lá por modismo e por aí vai...

E de fato, vendo a programação eu tampouco tive interesse, mas confesso, se eu fosse uns dez anos mais novo, sem filho pequeno, com menos compromissos profissionais, pô, acho que eu iria sim. Não para ver exatamente os vários shows de cada dia, pois só um ou outro vale a pena, mas pelo evento em si, por tá ali aonde todo mundo tá, porque acho essas coisas muito legais.

É claro que esse Rock in Rio não tem o mesmo contexto que o de 1985, o primeiro festival. Eu fui a quatro dias em 85. Vi shows bons, outros nem tanto, tinha artista que não fazia questão mesmo de ver num palco, lembro da lama nuns dias e da poeira nos outros, mas principalmente dos shows do Queen, do Yes e do Rod Stewart. No dia do heavy metal eu não fui não. Já os do George Benson, que gosto muito, e do James Taylor não estão muito claros na minha memória. Talvez tenham sido bons, mas lembro mais da bagunça que rolava e que também faz parte da diversão. Parte do barato era mesmo zoar com os fans das bandas e artistas que a gente não gostava, mas sempre na paz, afinal o que não faltava era a maresia. Outra coisa que não esqueço é do arrependimento por não ter ido no dia da Rita Lee, uma quarta-feira se não me engano. Dos brasileiros, curti muito os Paralamas enquanto que no show do Barão achei que o Cazuza cantou muito mal. Por causa da lama, voltei para casa descalço num dia, o que não foi nenhum problema, apenas algo mais para lembrar e contar de toda aquela experiência.

Já no Rock in Rio 2, sem o charme do primeiro pois foi no Maracanã, fui apenas no dia do Prince e Santana, que deu um show inesquecível com a participação do Djavan e Gilberto Gil. Antes também teve um do Alceu Valença, que sabemos que não é roqueiro, mas que botou todo mundo para dançar, ou seja, a questão não é se é ou não rock, mas se se trata ou não de música boa e que faça a galera sacudir o esqueleto. Desse segundo só me arrependo de não ter ido ver o Joe Cocker, mas é assim mesmo, a gente não consegue ver tudo que quer.

Agora em 2011 tá tudo muito diferente. Tudo muito planejado, pavimentado (não tem mais lama nem poeira), mas mesmo assim tem todo o stress para comprar ingresso via internet, de enfrentar o trânsito (tava agora mesmo ouvindo a rádio MPB FM do Rio, já alertando sobre os engarrafamentos vários quilômetros de distância da cidade do rock). E faço ideia da fila da cerveja e do banheiro...

Ainda assim, é como disse antes: se eu fosse um jovem hoje não teria dúvida, dava linha uns dias e seguia com a galera para o rock!

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Sempre há uma primeira vez

Sempre se tem boas histórias sobre "a primeira vez". A partir desse mote, Washington Olivetto criou uma peça antológica para a Valisiere: "o primeiro sutião a gente não esquece". O PT foi na onda e cometeu o belo "plágio" com "o primeiro voto a gente não esquece". Eu, hoje, depois de um dia de intensas emoções, posso dizer: "a primeira rebelião a gente nunca esquece".

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

De novo, as vozes (Fernando Gabeira)

Alguma coisa começou no 7 de Setembro. E a manifestação na Cinelândia, com cerca de 3 mil pessoas, é a primeiro fruto do movimento que iniciado na data nacional.

Cheguei cedo para ver a multidão se formando e percorri a Cinelândia para constatar algumas coisas novas para mim. A ideia de que era um movimento com predominância de jovens foi um pouco abalada pois havia um equilibrio maior, com muita gente idosa participando.

A outra hipótese era de que o movimento, convocado pela internet, seria de uma classe média mais alta. Também havia equilibrio, entre diferentes camadas.

A suposição de que se trata de manifestação de direita desaba na leitura de alguns cartazes, protestando contra a privatização.

Havia um cartaz pedindo a pena de morte para os corruptos. Na verdade, esta é também uma característica das manifestações espontâneas. Cada um leva seu slogan.

Não era uma manifestação típica dos setores da classe média, tal como as que vi desde os anos 80. Parecia mais com o princípio do movimento pelas diretas. Pelo menos, essa também é a impressão de alguns que participaram do movimento pelas eleições diretas para Presidente.

Uma diferença: no palanque nenhum político. Havia as palavras de ordem clássicas, contra a corrupção, o nepotismo e o voto secreto. Mas os oradores se sucediam indignados e o ponto de convergência era afirmar que o dinheiro da corrupção vem do esforço de todos e que o Brasil não pertence a uma casta, como certos os politicos acreditam.

Em alguns dos oradores, havia uma rejeição pelos politicos de um modo geral, não só dos corruptos. Os bons, diziam, não estão resistindo como deveriam.

As vassouras verdes, semelhantes às 584, fincadas na praia de Copacabana, apareceram entre algumas pessoas fantasiadas. Um grupo da velha guarda usava uma camisa amarela com uma inscrição: tenho vergonha das autoridades constituidas do nosso país.

Escrevo algumas horas depois. A suposição mais forte para mim é de que, como em outros lugares do mundo, caso seja mantido um dia e um lugar de protesto, a tendência é de crescimento.

Nem todos os dias serão idênticos. Não é necessário fazer previsões númericas. Basta insistir, pois os manifestantes, embora espontâneos e apartidários, sabiam claramente o que querem.

Mantida a chama, ela pode ser uma novidade importante no ano eleitoral. Não necessariamente competindo ou apoiando candidatos. Mas aproveitando o momento para que a resistência ganhe volume e impulsione uma necessária reforma política

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO

domingo, 18 de setembro de 2011

Como ser um corrupto honesto (DORRIT HARAZIM)

O defenestrado ministro do Turismo Pedro Novais perdeu a chance de sair do governo em grande estilo. Antes dele, Antônio Palocci (Casa Civil), Wagner Rossi (Agricultura) e Alfredo Nascimento (Transportes) já tinham deixado escapulir oportunidade semelhante.

A essência da carta que entregou à presidente Dilma Rousseff resumiu-se a uma rabisseca frase de 10 palavras: "Cumpro o dever de pedir-lhe minha exoneração do cargo." Pelo menos ele foi direto ao ponto. Palocci, Rossi e Nascimento, nem isso: embora mais fraldosos, foram também mais tediosos, previsíveis e oblíquos em seu adeus temporário a "malfeitos" revelados pela imprensa.

Com tantos praticantes de ilícitos na política nacional, falta ao país alguém que abrace publicamente a causa. Com ardor, convicção e arroubo, além de verve.

Falta ao país, e ao PMDB em particular, um George W. Plunkitt maranhense.

O americano Plunkitt (1842-1924) foi deputado e senador estadual de Nova York por mais de quatro décadas, entre o final do século XIX e início do XX. Foi, sobretudo, uma das locomotivas de Tammany Hall, entidade que concentrou a máquina de extorsão política do Partido Democrata na cidade e no estado nova-iorquinos.

De origem irlandesa, o exuberante Plunkitt começou a vida como ajudante de açougueiro e morreu como um dos homens mais ricos de Nova York. Seu legado para a humanidade é um livrinho fino de filosofia política intitulado "Tammany Hall: A Series of Very Plain Talks on Very Practical Politics" (em tradução livre, "Uma Série de Conversas Francas sobre o lado Muito Prático da Política"). Sua publicação acaba de completar 100 anos e tornou-se um clássico da literatura americana.

É fácil entender por que o título nunca saiu de catálogo: suas 64 páginas falam uma linguagem universal, degustável em qualquer canto do mundo. Dada a falta de criatividade da corrupção brasileira, ou melhor, de sua surrada retórica, listamos abaixo alguns tópicos essenciais dos fundamentos de Plunkitt:

A vida feita de oportunidades - "Todo mundo anda dizendo que estamos enriquecendo através de suborno e corrupção, mas ninguém parou para fazer uma distinção entre ilícito honesto e ilícito desonesto. Existe uma diferença enorme entre os dois. Não nego que muitos de nós enriqueceram na política. Inclusive eu. Fiz fortuna com ela e a cada dia fico mais rico. Mas nunca me envolvi com roubalheiras desonestas, como chantagem, jogatina, rede de prostituição, etc. Sou um exemplo de como o ilícito honesto funciona e posso resumir a prática numa única frase: "Aproveitei as oportunidades que apareceram."

Vou dar dois exemplos. Meu partido pretende realizar melhorias na infraestrutura da cidade. Alguém me passa a dica de que há planos para um novo parque em determinada região. Vejo nisso uma oportunidade e trato de comprar o maior número possível de terrenos vizinhos. Assim, quando o departamento disso ou daquilo tornar público o projeto, haverá uma corrida para a compra dos terrenos que até então interessavam pouco. Não é perfeitamente honesto eu cobrar alto e lucrar o máximo com o investimento e a aposta que fiz? Claro que é.

Ou então vamos supor que a prefeitura tenha planos de construir uma nova ponte e eu receba essa informação de cocheira. Trato de comprar as propriedades que serão vitais para fazer os acessos à ponte e as revendo por um preço maior. Mais dinheiro vai pingar na minha conta bancária. Quem não faria a mesma coisa? No fundo, não é diferente de investir em Wall Street ou no mercado do café ou algodão. São negócios honestos e fico à espreita deles todos os dias do ano.

Quero acrescentar que a maioria dos políticos acusados de roubar os cofres públicos enriqueceu da mesma forma. Eles não roubaram um único centavo de dinheiro público, apenas souberam aproveitar as oportunidades. É por isso que quando um novo governo reformista toma posse e gasta meio milhão de dólares tentando descobrir as falcatruas que denunciou durante a campanha eleitoral nada encontra."

Caridade - "Quando um incêndio destrói a casa de uma família, não pergunto se ela é democrata ou republicana, e não a encaminho a alguma entidade beneficente, pois essa vai primeiro investigar o caso durante um ou dois meses para só então decidir se a família deve ser ajudada. A essa hora todos já morreram de fome. Eu, não: vou logo distribuindo alguns trocados, compro roupas caso eles tenham tido tudo queimado e dou a mão até eles poderem ficar de pé sozinhos. Isso é filantropia, mas também é política - e política com "p" maiúsculo. Quem pode prever quantos votos esses incêndios me trarão? Os pobres têm mais amigos entre si do que os ricos."

Loteamento de cargos - "Não há em Nova York quem tenha faro mais aguçado para cargos públicos do que eu. Já ao acordar farejo se um cargo ficou disponível na noite anterior, e em qual secretaria. Sou sempre o primeiro a me apresentar. Ainda na semana passada apareci às 9h da manhã no Departamento de Águas e disse que queria a vaga para um dos meus eleitores. "Mas como o senhor soube que [o funcionário O"Brien] saiu?", quis saber o servidor. "Senti algo no ar, ao acordar", respondi. A verdade é que eu não tinha a menor ideia de que havia um funcionário chamado O"Brien no departamento, nem que ele tivesse ido embora, apenas farejei algo que me fez ir ao Depto. de Águas, e meu faro quase nunca me engana."

Em determinada época de sua carreira, Plunkitt chegou a ocupar quatro cargos públicos simultaneamente, recebendo salário em três deles. Neste quesito os brasileiros o ultrapassam, por meios mais tortuosos. Mas em matéria de suar a camisa, Plunkitt é um exemplo que poucos corruptos nacionais têm intenção de copiar. Consta que num único dia de sua agenda política ele atendeu pessoalmente a sete compromissos: ajudou as vítimas de um incêndio; 2) obteve o relaxamento da prisão de seis bêbados defendendo-os perante o juiz; 3) pagou o aluguel de uma família de imigrantes irlandeses para evitar que ficassem sem teto; 4) empregou quatro eleitores; 5) foi ao enterro de outros dois, um italiano e um judeu; 6) foi a um Bar Mitzvah; 7) foi a um casamento.

Ser corrupto honesto dava trabalho na Nova York da virada do século XIX. No Brasil do século XXI, nem isso.

DORRIT HARAZIM é jornalista.

GLOBALIZAÇÃO 1.0 (um retrato de uma globalização em "1493", do jornalista Charles Mann)

GLOBALIZAÇÃO 1.0
Livro mostra como Era dos Descobrimentos unificou o planeta ao transportar micróbios, animais e plantas oceanos afora

REINALDO JOSÉ LOPES
EDITOR DE CIÊNCIA E SAÚDE

Concorrência desleal vinda da China é reclamação constante. Do setor de calçados de Franca? Das empresas de eletrônicos? Não: dos barbeiros da Cidade do México, no começo do século 17. Os chineses trabalhavam demais e cobravam pouco, diziam.
Os operários da navalha (que também faziam as vezes de dentistas e cirurgiões) estavam longe de ser os únicos representantes do Extremo Oriente na América Espanhola. A rota da prata pela costa mexicana do Pacífico era patrulhada por samurais japoneses, mercenários filipinos e outros "chinos", como diziam os espanhóis.
Esse retrato amalucado de uma globalização 1.0 está no livro "1493", do jornalista de ciência americano Charles Mann, que acaba de ser lançado nos EUA. O argumento de Mann é simples: a descoberta da América acabou com a trajetória separada dos continentes e transformou a Terra numa única e enorme província ecológica.
Na prática, isso significa que criaturas tão díspares quanto o parasita da malária (africano), a cana-de-açúcar (da Nova Guiné) e o boi (europeu) se juntaram para moldar o ambiente e a história do Brasil, por exemplo.
OLÁ, HOMOGENOCENO
Para Mann, é como se fosse o início de uma nova época geológica, o Homogenoceno -a fase da história da Terra em que o mundo está cada vez mais homogêneo, para o bem ou para o mal.
"Senti que era preciso destacar isso porque hoje você é capaz de ler um livro inteiro de história da Europa e não achar uma única menção à batata", disse Mann à Folha, por telefone. "É claro que não seria certo dizer que a batata criou a Europa moderna, mas não dá para negligenciá-la."
Esse é um dos principais casos de troca-troca ecológico mudando o mundo. Originalmente uma das bases da dieta nos Andes, combustível de civilizações como os incas, a batata acabou com os episódios catastróficos de fome na Europa Ocidental.
Serviço parecido foi realizado pela batata-doce e pelo milho na China imperial. Solos desérticos ou pobres em nutrientes puderam ser cultivados pela primeira vez, levando à explosão populacional que hoje nos parece tão típica do território chinês.
Esse último exemplo mostra como a ascensão do Homogenoceno foi uma faca de dois gumes. O avanço da agricultura chinesa por terras nunca dantes cultivadas também destruiu florestas, provocou erosão e gerou um ciclo interminável de inundações catastróficas no país.
E a coisa fica ainda pior quando os astros do intercâmbio continental são micróbios. Micro-organismos do Velho Mundo ganharam, praticamente sozinhos, a briga entre europeus e indígenas, condenando os nativos antes mesmo que eles disparassem a primeira flecha.
"Meu livro deveria se chamar 'Germes, Germes e Germes', na verdade", brinca Mann. É um trocadilho com "Armas, Germes e Aço", clássico do biogeógrafo Jared Diamond que atribui a vitória dos europeus sobre os ameríndios a esses fatores.
"Diamond dá muito peso à superioridade tecnológica europeia. Ela certamente existia no século 19, mas não tenho tanta certeza quanto ao século 16", diz ele, lembrando que as armas de fogo trazidas pelas caravelas eram instáveis e pouco potentes.
Já a varíola, a gripe e a malária caíram de chofre sobre "solo virgem" -termo usado para designar populações sem imunidade natural contra uma doença, como era, e é, o caso dos índios.
O livro ainda inclui uma crítica sutil a quem acha que culturas e ambientes deveriam ser mantidos no seu estado original. Afinal, diz Mann, as tradições agrícolas -e a cozinha- de aldeões filipinos e quilombolas brasileiros dependem de plantas que vieram d'além-mar.

Afinal, o que é o gaúcho? (Jocelito Zalla)

Toda comemoração abre, ainda que involuntariamente, espaço para reflexão. Com as celebrações de setembro, é comum pensarmos sobre nossa história regional e a identidade coletiva nela fundada, por mais capciosa que a pergunta-título deste artigo possa se mostrar.

Para o nosso tempo, diria que “gaúcho” se configura como um símbolo bastante polissêmico. De um lado, a imagem do cavaleiro pampiano é incontornável para se pensar o Rio Grande. De outro, ela evoca muito mais do que a idade de ouro campeira criada pela literatura regionalista e reforçada pela historiografia tradicional.

A adoção da palavra como adjetivo gentílico, quer dizer, “título” para todo indivíduo aqui nascido, com certeza dinamizou seu significado, uma vez que o nome teve que abarcar realidades bastante diversas, incluindo sujeitos sociais sem a menor intimidade com o mundo rural e/ou elementos alheios à história e à dinâmica fronteiriça. Até meados do século 19, por exemplo, seria impensável mesmo à elite latifundiária se reconhecer no termo gaúcho, então identificado ao indivíduo que vagava sem rumo nem paradeiro pelos campos platinos, por vezes bandido, visto sempre como pária social.

No sentido inverso, o fenômeno de “gentilização” conferiu grande legitimidade aos mitos associados ao gaúcho histórico; dentre eles, o de ser fundador étnico e cultural único e comum a todos os habitantes do Estado.

Parte considerável da responsabilidade pela positivação da palavra, além da criação desses mitos, deve ser creditada a anos de investimentos intelectuais, nada gratuitos, mas condizentes com necessidades sentidas em cada momento de nossa história. Assim, o gaúcho de Simões Lopes Neto falava de um espaço, a Metade Sul, que perdia paulatinamente sua hegemonia econômica no Estado e para uma sociedade que se modernizava, lembrando o que ela não era mais.

Já o de Cyro Martins lamentava as duras condições enfrentadas pelos homens e mulheres que, expulsos do campo, buscavam abrigo nas cidades. Da mesma forma, o gaúcho heroico da historiografia dos anos 1920 e 1930 dizia que tínhamos um papel importante a cumprir no cenário político nacional.

Mas o que pouco se fala é que a celebração do gaúcho nunca foi consensual. Muito menos sua definição. Durante todo o século 20, foi objeto de disputas e divergências. O próprio movimento tradicionalista, no final dos anos 1940, precisou discutir o que seria selecionado (e inventado) como “tradicional”: o homem simples do campo ou a elite de militares estancieiros que explorara o território em nome da coroa portuguesa. Sua grande inovação foi apelar, na atualização do gaúcho mítico, às várias possibilidades de memória pública desenhadas pelas gerações anteriores.

Essa gama de usos históricos do mito fornece, portanto, um repertório bastante amplo para nosso próprio tempo. Como qualquer movimento romântico, o gauchismo carrega em si algo de conservador, de resistência às mudanças.

Mas cabe ressaltar que não foi exclusividade da direita política. Intelectuais comprometidos com o popular, incluindo alguns declaradamente socialistas, também puderam dele se valer. Isso tem desdobramentos atuais, quando as apropriações do gaúcho mítico não respeitam matizes políticas, se manifestando no lenço vermelho de Olívio Dutra ou no vestido de prenda de Yeda Crusius, por exemplo.

Se as feições do gaúcho continuam mudando, sua configuração continua esta: um símbolo elástico o suficiente para se adaptar a novos contextos; logo, também plural. Daí seu sucesso. Se isso é bom ou ruim, já é outra conversa.

*Historiador, professor do Colégio de Aplicação da UFRGS

Testemunhos rebeldes (as biografias de Luis Carlos Prestes e Gregório Bezerra)

Testemunhos rebeldes - ELEONORA DE LUCENA
RESENHA

Testemunhos rebeldes

Prestes, Bezerra e as mazelas de um país

RESUMO
Reedições mostram caminhos trilhados por dois homens que fizeram história no Brasil. De estilos muito diferentes, autobiografia de Gregório Bezerra e romance em que Jorge Amado reconstrói trajetória de Luís Carlos Prestes permitem reconhecer divergências entre os pensamentos dos dois líderes de esquerda.

ELEONORA DE LUCENA

LUÍS CARLOS PRESTES e Gregório Bezerra são ícones da esquerda brasileira. Conheceram as entranhas da pobreza, passaram pela carreira militar, fizeram rebeliões, aderiram às ideias comunistas. Enfrentaram ditaduras, prisões, torturas, doenças, exílios.
Prestes (1898-1990) foi exemplar estudante, criativo estrategista militar, disciplinado líder político. Organizou a célebre coluna que se embrenhou por 26 mil quilômetros no interior do Brasil, de 1924 a 1927. Com até 1.500 combatentes, derrotou 18 generais. Virou lenda.
Bezerra (1900-83) começou a trabalhar na roça aos quatro anos, com um cacareco de foice preso a um cabo de vassoura. Passou fome; só provou arroz aos sete. Aos dez calçou o primeiro sapato, para servir de empregado limpando penicos. Ficou analfabeto até aos 25.
Suas vidas se entrelaçaram no interior do Partido Comunista. Nas eleições de 1945, quando o PC obteve 10% dos votos do país, Prestes foi o senador mais votado. Bezerra elegeu-se deputado federal, o mais votado na Grande Recife. Moraram na mesma casa no Rio.
Os caminhos trilhados por esses homens que fizeram história no Brasil estão nas livrarias em dois relançamentos. Prestes tem parte da vida romanceada por Jorge Amado, integrante do PC na época e eleito naquele pleito. Bezerra narra sua própria trajetória. São livros desiguais, de estilos muito diferentes, que precisam ser entendidos no contexto em que foram editados. Têm em comum o rasgado engajamento político.
O de Amado é uma ode ao "Cavaleiro da Esperança", em tom de manifesto. Foi finalizado na Argentina em 1942 e integrava a campanha pela anistia a Prestes no Estado Novo. O de Bezerra saiu quando ele voltou ao Brasil na anistia de 1979. Traz os meandros da dura vida do famélico explorado pelos usineiros que vira líder de rebeliões de militares, de greves de camponeses, de campanhas políticas. É um relato detalhado e vigoroso.

INFÂNCIA "Não sei expor em linguagem literária todos os aspectos do drama das crianças abandonadas e subnutridas do meu país: não sou escritor nem intelectual, sou apenas semialfabetizado", escreve Gregório Bezerra em "Memórias" [Boitempo, 648 págs., R$ 74], que ele classifica como um "trabalho tão rústico quanto seu autor".
Não é. Reproduzindo diálogos, lembrando sabores, refazendo as caminhadas em busca de água, ele constrói o mundo da sua infância no interior de Pernambuco. Fala dos desastres nas colheitas, do trabalho no engenho, da falta de roupa, da morte dos pais, dos mutirões com vizinhos, de como conseguiu comer um pão doce.
Além do drama familiar, relata como proprietários concentravam terras. "É um roubo oficializado", declara. Com a promessa de que o colocariam na escola, Bezerra seguiu para Recife com a família do dono de engenho. O compromisso não se cumpriu, e ele ficou nos trabalhos domésticos. Revoltado com injustiças, quebrou a pedradas as cristaleiras da casa. Depois, fugiu, "para não ser mais escravo de ninguém". Tinha 12 anos.
Dormiu em praças e debaixo de pontes. Trabalhou fazendo fretes, vendendo jornais, como ajudante de pedreiro. Foi preso em 1917 por "insuflar operários contra patrões". Iniciou carreira militar e contratou professores para aprender a ler, escrever e entender de matemática e geografia. "Passei a fazer só uma refeição por dia para poder pagar as aulas", lembra.
Leu "A Mãe", de Máximo Górki, e "O Estado e a Revolução", de Lênin. Entrou para o PC em 1930, no mesmo ano em que Prestes anunciou adesão. Era tempo de revolução. Getulio Vargas tomara o poder na esteira do movimento tenentista e da Coluna Prestes.

PAIXÃO Jorge Amado (1912-2001) ancora "O Cavaleiro da Esperança, a Vida de Luís Carlos Prestes" [Companhia das Letras, 400 págs., R$ 55] nas histórias da coluna. É "livro escrito com paixão, sobre uma figura amada", esclarece Amado na introdução.
Enfatiza: "Não é nem pretende ser um livro frio". Já esperando críticas ao estilo engajado, Amado ataca: "As fronteiras técnicas da biografia, que os críticos amam impor, não me interessam como nunca me interessaram as fronteiras marcadas para o romance".
Nessa mescla de biografia e romance, um verdadeiro panegírico, a parte sobre a Coluna Prestes detalha a sequência de batalhas, as escaramuças com as forças oficiais, a busca por alimento, o papel das mulheres que cuidavam dos feridos e pegavam em armas. Prestes aparece como gênio militar. Chega a escapar enquanto maneja adversários para lutarem entre si -200 morrem e o major governista enganado se suicida.
Amado se esmera em contar as histórias de personagens comuns da marcha. Não se acanha em derramar louvores a Prestes, pessoa em que "os lados negativos não surgiram nunca", como escreve. (Para obter relato abrangente e cuidadoso da história da coluna, sem a chuva de adjetivos de Amado, vale ler "As Noites das Grandes Fogueiras", de Domingos Meirelles, publicado em 1995.)
Embora também elogioso a Prestes, Bezerra -que escreveu suas memórias numa outra época- faz questão de expor suas divergências com o PC. Conta que, em 1930, gostaria de ter se unido aos revoltosos. Por disciplina, ficou de fora da derrubada de Washington Luiz.
Ao narrar a revolta comunista de 1935, na qual teve papel destacado, avalia os erros cometidos. Critica a liderança "leviana e irresponsável" do partido, que "decretou a revolução e, segundo dizem seus companheiros, foi para casa dormir". Era folga; o quartel estava vazio. "Desgraçadamente éramos demasiado sectários. Não soubemos aproveitar as oportunidades que tivemos para fazer um trabalho mais amplo, tanto no setor civil, como no militar", analisa.
Noutro instante, ao narrar a cassação dos mandatos parlamentares do PC, em 1947, desabafa: "Tínhamos cedido demais, em busca de uma união nacional que não conseguíamos fazer e, em consequência disso, nos isolamos bastante das massas sofridas em virtude da nossa posição reboquista com relação à burguesia". A posição tinha lógica. Derivava da visão de que era preciso fazer o desenvolvimento capitalista para preparar a passagem ao socialismo, já que a história ocorria em "etapas". Daí a necessidade de defender o nacionalismo contra o "imperialismo ianque" e a reforma agrária contra o "latifúndio feudal".
Enxergavam no campo -já integrado ao capitalismo desde a colônia- uma estrutura feudal. Queriam a distribuição de renda, trabalhando pela sindicalização urbana e rural. Foi então que a atuação de Bezerra se notabilizou. Ele saía pelo interior fazendo comícios, organizando as "ligas camponesas". Enfrentava a resistência de proprietários, da polícia e dos padres. Lembra casos curiosos. Num deles, um empresário ofereceu um churrasco na hora da manifestação, para esvaziá-la; noutro, uma boiada foi usada para dispersar o protesto; noutro, uma procissão tentou minar a aglomeração.

ASSOCIAÇÕES Na clandestinidade, Bezerra seguiu organizando associações. Uma, em Goiás, começou com 90% de analfabetos. Quando esteve no parlamento, o pernambucano apresentou projeto pelo direito de voto aos analfabetos -conquista só ocorrida 40 anos depois.
Em outro trecho, conta como foi, em 1963, a "maior greve da história do campesinato brasileiro". Durou quatro dias e rendeu aumento de salário e a implantação de tabela de preços e tarefas nos canaviais, para jornada de oito horas.
Desde o início, o livro de Bezerra é também uma narrativa da violência. Contra os pobres, os presos, os políticos de esquerda. Nas histórias do campo, chacinas fazem lembrar os episódios recentes ocorridos no Pará.
Ao todo, Gregório Bezerra passou quase 23 anos em prisões brasileiras em diferentes lugares e ditaduras. Faz relatos horripilantes das masmorras, onde imperam fome, doença, tortura. Em abril de 1964, militares o espancaram barbaramente e o arrastaram pelas ruas, deixando-o com sequelas pelo resto da vida. Deixou sua última cadeia na troca do sequestro do embaixador norte-americano Charles Burke Elbrick, em 1969.
Amado também mostra os horrores das cadeias do Estado Novo. Conta as histórias de Olga Benário, a mulher de Prestes, e de Rodolfo Ghioldi, ativista político argentino.
A ditadura militar, o esfacelamento do PC e o fim da União Soviética desarranjaram as lentes com as quais Prestes, Bezerra e Amado enxergavam o mundo e guiavam suas ações. As histórias dos comunistas brasileiros -romanceadas ou não- são testemunhos das mazelas de um país que parece ter sido deixado para trás.
Porém, nem tanto quando se lê sobre torturas em prisões e trabalho análogo à escravidão em fazendas no interior ou em oficinas de costura na metrópole.

Nosso Estado de sinecuras (José de Souza Martins)

Vícios do tempo da corte ainda norteiam a concepção do mandato: o eleito assume levando consigo ideias de poder e "direitos" ilegais

Sai um ministro do Turismo representante do Maranhão e entra outro ministro do Turismo também representante do Maranhão. Ambos apadrinhados de um senador que representa os interesses do Maranhão, mas se elege pelo Amapá. É nesse nó que está o modelo estrutural da trama do Brasil oligárquico, o Brasil que manda, mais do que o Brasil que governa. De comum entre eles há o fato de que nenhum dos dois entende nada de turismo. E isso importa pouco. O que importa é ter poder.

Nesse nó está o miolo do que é a democracia brasileira e está também a matriz estrutural da corrupção, que dela se nutre. No currículo do ministro que entra, o uso de suas funções federais para concretizar obras municipais, deputado federal atuando como prefeito e vereador quando, para isso, já existem as instituições e os mandatos municipais. No currículo do ministro que sai, constam as suspeitas de que, durante anos, pagou com dinheiro público a governanta de seu apartamento em Brasília e o motorista particular de sua mulher, além de referências à liberação de recursos para empreiteiras fantasmas em seu Estado. Há aí uma mentalidade de corte na concepção do mandato. O eleito carrega consigo ideias de poder pessoal e arcaicos e ilegais direitos de prebenda, que no passado eram as rendas vitalícias dos canônicos. No período colonial, eram eles os chamados "pais da pátria", patriarcas de largas famílias de parentes e agregados que se abrigavam sob sua proteção segura. Muitas das figuras da nossa política ainda pensam e agem assim.

Naquele tempo, pátria era ainda a localidade do pai da extensa parentela. Com o tempo, os "filhos da pátria" e de pais economicamente decadentes foram se abrigando nas funções públicas e nas chamadas mamatas, nutrindo-se do peito farto e generoso do Estado. O Estado brasileiro ainda é mais um Estado prebendário do que um Estado democrático.

O município, na história brasileira, nasceu republicano e em oposição e limitação aos poderes centralizados da Coroa. Coroa com poderes mais simbólicos do que reais, em boa parte assentados na religião, valeu-se dos bens privados dos súditos para instituir o público do governo, recompensando os particulares com honrarias que se transformavam em poder e dinheiro. Alternativo e oposto ao poder centralizado e tendencialmente antidemocrático, o município capturou e subjugou desde cedo os ímpetos democráticos dos setores esclarecidos da opinião pública, que lentamente se difundiram entre nós.

Como já assinalou Victor Nunes Leal, nossa história política tem sido a do movimento pendular que alterna centralização e ditadura, de um lado, e descentralização e democracia, de outro. Descentralização significa entre nós o protagonismo político do município e nesse marco nossa democracia é prisioneira há muito do localismo antiquado, essencialmente antidemocrático, pois se apoia ainda em resquícios de poder pessoal. Não é à toa que nosso senso comum político veja com simpatia a ditadura, tida indevidamente como punitiva e "honesta", e considere a democracia como sinônimo de impunidade e corrupção. É que, na verdade, "nossa" corrupção é expressão de atraso e arcaísmo, apoiada nas nossas mais antiquadas tradições políticas, a do tudo pode do patriarcalismo ainda forte nas províncias remotas do País. Remotas porque politicamente distantes do mundo moderno.

Não é estranho outro episódio de corrupção, destes dias, ocorrido no Rio de Janeiro. PMs cooptados pelo tráfico, com propina entregue em casa, para se manterem nos postos policiais em vez de fazerem rondas na favela, especialmente nos fins de semana, dias de maior movimento e comércio de drogas. Tornaram-se funcionários do crime, vestindo farda e recebendo salário do governo do Estado. Não é estranho porque, remotamente, nossas polícias surgiram como alternativa para o jagunço privado dos potentados locais, quando se constituiu o Estado nacional. Quando do combate ao cangaço, nos anos 20 e 30, literalmente não havia diferença entre a composição dos bandos de cangaceiros e a composição da polícia que os combatia. No fundo, os policiais não atuavam como agentes do serviço público, mas como cangaceiros do Estado. A mentalidade era a mesma. O recrutamento dos policiais ainda se dá na camada da população mais próxima da mentalidade localista, para a qual os valores e distinções de público e privado são tênues e em que a farda legitima ímpetos de poder pessoal e não a impessoalidade do Estado.

Um dos erros na análise da corrupção no Brasil é o de tratá-la como anomalia e corpo estranho tanto na sociedade quanto no governo. Como se tivéssemos um sistema político instituído sobre a premissa da honestidade e uma sociedade movida e motivada pela ética. Essa história vem de longe. Morrem os velhos corruptos e longe do mal se extinguir, logo há vários para substituí-lo. As estruturas profundas da sociedade brasileira encarregam-se de regenerar a corrupção e a mentalidade que lhe corresponde.

José de Souza Martins, sociólogo e professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP, é autor de A política do Brasil Lúmpen e Místico (Contexto)

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO/ALIÁS

A liberdade que nos une (entrevistas José Álvaro Moisés, Scott Mainwaring e Leonardo Morlino)

Uma trinca de cientistas políticos analisa a lenta e contraditória caminhada da democracia no mundo

Ivan Marsiglia

Na mesma data em que a Organização das Nações Unidas (ONU) celebrava o Dia Internacional da Democracia, essa quinta-feira, o presidente francês, Nicolas Sarkozy, e o premiê britânico, David Cameron, erguiam desajeitadamente os braços do líder rebelde Mustafa Abdul Jalil em Benghazi, na Líbia, anunciando um futuro de liberdade e progresso após a queda do ditador Muamar Kadafi.

Assim será? Os rebeldes estão prontos para traduzir os anseios da população líbia? E como fica a situação da Síria e de outras nações do Oriente Médio e do Norte da África que se insurgiram na chamada "primavera árabe"? Estarão as grandes democracias ocidentais dispostas a colaborar, respeitando a soberania nacional, nesse processo emancipatório - sem esquecer, como disse o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, em sua mensagem comemorativa, que "a democracia não pode ser exportada ou imposta de fora, ela deve ser gerada pela vontade das pessoas e alimentada por uma sociedade civil forte e ativa"? O mundo atual caminha de fato na direção da livre manifestação do pensamento, das liberdades civis e dos direitos políticos? Como anda a qualidade da democracia no Leste Europeu, na Ásia, na América Latina e, em especial, no Brasil?

Para responder a essas perguntas, o Aliás escalou um time internacional de cientistas políticos especializados no tema. Do Brasil, falou José Álvaro Moisés, professor da Universidade de São Paulo e diretor do Núcleo de Pesquisa de Políticas Públicas (NUPPs), que coordena atualmente uma ampla pesquisa sobre os 25 anos de democracia no País. Da Europa, o convidado foi Leonardo Morlino, professor da Universidade de Florença e presidente da Associação Internacional de Ciência Política (Ipsa). Dos Estados Unidos, o representante foi Scott Mainwaring, professor da Universidade de Notre Dame e diretor do Instituto de Estudos Internacionais Helen Kellogg. A seguir, os pontos de vista de cada um.

Com o fim das ditaduras latino-americanas nos anos 70 e 80, a dissolução da União Soviética nos 90 e a recente "primavera árabe", podemos dizer que a democracia venceu?

José Álvaro Moisés: A expansão da democracia por várias regiões do mundo, a partir dos anos 70, foi o fenômeno político mais importante do século 20. Ela sobrepujou todas as alternativas, como o fascismo, o stalinismo e os autoritarismos militares. Hoje, um dos seus grandes desafios continuam sendo as desigualdades econômicas e sociais que afetam a liberdade política, a competição eleitoral e a participação dos cidadãos. Outro são o terrorismo e a intolerância política, que, em alguns casos, foram usados para justificar a invasão de nações e o cerceamento de liberdades civis e políticas. Apesar disso, as virtudes da democracia alimentam um poderoso efeito-demonstração, apontando as implicações do regime na qualidade de vida das pessoas.

Scott Mainwaring: A democracia certamente se expandiu globalmente desde o final dos anos 70, mas de maneira muito desigual. Segundo as avaliações da Freedom House (organização sem fins lucrativos sediada em Washington que promove pesquisas sobre direitos humanos, democracia e Estado de Direito), em 1978, quando a terceira onda de democratização na América Latina teve início, 30% dos países do mundo eram considerados livres, 35% eram parcialmente livres e 24% não eram livres. Essas estimativas não eram tão precisas na década de 70, mas são a única fonte confiável disponível. O último relatório dela, lançado em 2010, diz que 45% dos países hoje são livres, 31% parcialmente livres e 24% não livres. É um bom sinal. Entretanto, a Freedom House considera a situação global da economia estagnada desde 1998. Vários países, incluindo a proeminente Rússia, regrediram: considerada parcialmente livre na década de 90, degringolou para o autoritarismo.

Leonardo Morlino: Não há dúvida de que desde o início dos anos 70 o fenômeno da democratização teve forte aceleração no mundo. Entretanto, há hoje dois aspectos que não nos permitem dizer que ela seja dominante no mundo. O primeiro é o fato de o país com o segundo maior PIB mundial, a China, ter um regime politicamente não democrático. Sem falar na já citada Rússia, que pratica uma espécie de autoritarismo eleitoral. O segundo aspecto está relacionado ao contexto mundial de crise econômica e desemprego que vivemos - que pôs em xeque a capacidade de ação das elites políticas das grandes democracias.

Entender democracia como mero sistema eleitoral é um engano frequente?

Morlino: O sistema eleitoral é muito importante, ele é a regra chave para o mecanismo de resolução pacífica de conflitos que está no coração da democracia. Mais: os arranjos institucionais da democracia, seus procedimentos básicos, estão diretamente relacionados às eleições. Assim, entender democracia como sistema eleitoral não é engano. É, no entanto, uma simplificação, se deixamos de prestar atenção em outros valores fundamentais dela, como a igualdade econômica e social.

Moisés: Eleições limpas, regulares e competitivas são condição sine qua non da democracia, mas insuficientes. Exemplo disso são os casos em que elas convivem com o desrespeito ao primado da lei, a expansão incompleta dos direitos de cidadania e a inexistência de instituições, mecanismos e normas eficazes de fiscalização e controle dos poderes republicanos. Alguns exemplos são os casos da Venezuela, Equador, Paquistão, Rússia e, em menor escala, Bolívia. O Irã não tem eleições livres. Em alguns desses países, lideranças escolhidas pelo voto popular tendem a se sobrepor às instituições democráticas, intervindo no Poder Judiciário, limitando o Legislativo e, às vezes, anulando a capacidade de ação dos partidos de oposição. Essas são democracias incompletas ou iliberais.

Mainwaring: Entender democracia exclusivamente como sistema livre e justo de contagem de votos é certamente um engano. Ele não é frequente entre cientistas políticos, mas a Organização dos Estados Americanos (OEA) e diversos governos nacionais focam exclusivamente a tabulação de votos na hora de avaliar a democracia nos países. Em sua acepção contemporânea, ela depende de três elementos: sufrágio adulto quase universal, sistema de proteção das liberdades civis e direitos políticos e ausência de atores políticos capazes de veto ou controle da arena de decisões políticas.

Como avaliar a qualidade da democracia?

Mainwaring: A qualidade da democracia depende do grau de entendimento, por parte da sociedade, dos procedimentos que a preenchem. Uma democracia de alta qualidade é a que o campo em que se dá o jogo eleitoral seja justo, em que quase todos os adultos exerçam seus direitos políticos formais, em que o Estado garanta efetivamente direitos políticos e liberdades civis e, repito, em que os governantes eleitos não estejam sujeitos a veto por parte das Forças Armadas, por exemplo. Em grande parte da América Latina, o grande desafio hoje é garantir a existência de um campo político justo, para que os diversos grupos disputem as eleições em condições de igualdade.

Molino: Essa é uma questão muito importante hoje. Em meu último livro, Changes for Democracy (Oxford University Press), vejo três significados na qualidade da democracia. O respeito ao império da lei, com accountability eleitoral e institucional, é um deles. A promoção dos valores da liberdade e da igualdade é outro. O terceiro é a "responsividade" (conceito que se refere à obrigação e capacidade de governos de corresponderem às expectativas dos que os elegeram). Em minhas pesquisas na Europa e América Latina, estipulei indicadores para avaliar cada uma dessas dimensões.

Moisés: Democracias eleitorais só se transformam em democracias efetivas se os poderes militar e policial forem devidamente controlados pelas autoridades civis eleitas e se os conflitos e divisões internas próprios de sociedades complexas tiverem meios efetivos de solução por mediação institucional. Instituições existem para controlar o abuso de poder, assegurar a efetividade do Estado de Direito e do império da lei e o que Norberto Bobbio chamou de "promessas democráticas". Se, por exemplo, o acesso à Justiça for negado a setores menos privilegiados da sociedade, partidos e Parlamentos não convencerem os eleitores de sua credibilidade e a política for vista como um domínio de privilégios e distorções que beneficiem alguns, a própria ideia de democracia fica profundamente afetada.

Países da "primavera árabe" receberam tratamento diferenciado das nações ocidentais, dependendo de seu alinhamento ou não a elas. Como se "promove" a democracia?

Mainwaring: Não há fórmula predeterminada. Depende das condições específicas de cada país. Normalmente, dar suporte internacional às oposições democráticas, como ocorreu agora na Líbia, é uma opção melhor do que assumir o protagonismo na criação da nova democracia - como aconteceu de maneira extremamente custosa, em termos de dólares, vidas humanas e destruição da infraestrutura, no Iraque em 2003. Já os esforços da OEA para desencorajar retrocessos autoritários são positivos: por meio da resolução 1080, a organização impediu golpes na Guatemala em 1993 e no Paraguai em 1996 - além de ajudar no restabelecimento de eleições livres no Peru em 1995. Por outro lado, a OEA não soube ser efetiva em situações de autoritarismo eleitoral, como na Venezuela desde 1999.

Morlino: Na última década houve desenvolvimento efetivo de estratégias de promoção da democracia. O chamado mecanismo das "condicionalidades" (que determina de que maneira organismos internacionais como Banco Mundial, FMI e outros prestem apoio a países de histórico autoritário ou em processo de democratização) é importante. Mas pesquisas empíricas feitas por diversos acadêmicos mostram que tais ações, para funcionar, devem ter credibilidade e continuidade no tempo. Ações externas só são eficazes quando encontram forças domésticas prontas a assumir o risco de implementar uma agenda democrática no país.

Moisés: Intervenções militares são sempre questionáveis do ponto de vista moral, político e do direito internacional. Por isso, são quase sempre negativas para "encorajar" a democracia. Isso não se confunde, no entanto, com situações como a vivida hoje pela Síria e até recentemente pela Líbia - em que governos ditatoriais reprimem com violência a reivindicação legítima de suas populações civis. Esses casos exigem coragem e determinação das nações democráticas, pois o respeito a direitos humanos não pode ser limitado por fronteiras diplomáticas ou considerações de realpolitik. Meu juízo, nesse caso, é que a posição do Brasil em recentes decisões da ONU foi lamentável, e deveria ser revista. Invasões como a do Iraque, contudo, envolvendo claros interesses econômicos e geopolíticos, não podem ser chamadas de estímulo à democracia.

Vinte e cinco anos após a redemocratização, como os senhores veem a qualidade das instituições no Brasil?

Molino: O Brasil tem sido importante para o desenvolvimento da democracia em toda a região da América Latina por duas razões. Em primeiro lugar, a forma bem-sucedida como ela foi implementada no País enfraqueceu alternativas neopopulistas como a da Venezuela e a da Bolívia. Em segundo lugar, as políticas brasileiras de redução da desigualdade e da pobreza mostraram à região que na democracia os valores da liberdade e da igualdade podem e devem andar juntos. Não é possível haver liberdade sem algum nível de igualdade no que se refere à educação, qualidade de vida, assistência médica, etc. E vice-versa.

Mainwaring: A qualidade da democracia no Brasil melhorou muito desde Sarney e Collor. Naquela época, os militares ainda tinham poder de veto sobre importantes decisões políticas. As engrenagens do período autoritário permaneciam fortes, especialmente nas regiões Norte e Nordeste. Hoje, as eleições são livres, justas e raramente contestadas. A participação política se expandiu. A proteção às liberdades civis e aos direitos políticos avançou enormemente. A imprensa e a sociedade civil são independentes e vigorosas. Há ainda, no entanto, desigualdade de direitos. Os pobres e a população negra no Brasil não desfrutam dos mesmos direitos e liberdades civis. Outro déficit da democracia brasileira é a impunidade de políticos flagrados em casos de corrupção. Mas, falando estritamente, eu diria que os grandes problemas do Brasil hoje são mais econômicos e sociais que de qualidade de sua democracia.

Moisés: O Brasil é um país democrático, não há duvida. Mas penso que a qualidade da sua democracia está em questão, sim. A hipertrofia do Executivo, herdada do período autoritário, limita a autonomia e a independência do Legislativo, comprometendo a representação da sociedade e o poder efetivo dos eleitores. O sistema partidário brasileiro é fragmentado e relativamente instável, com quase 30 partidos nominais e perto de 10 efetivos. A corrupção é endêmica, frauda a igualdade da competição eleitoral e desvia para fins privados recursos que deveriam ser investidos em políticas públicas. O chamado presidencialismo de coalizão, se por um lado garante a governabilidade, por outro estimula a irresponsabilidade dos partidos que formam as coalizões governistas majoritárias sem comprometê-los com a probidade no uso dos recursos públicos. Os escândalos nos Ministérios dos Transportes, da Agricultura e do Turismo atestam isso.

Como a corrupção afeta a democracia?

Moisés: Minhas pesquisas de cultura política mostram que um dos fatores determinantes da altíssima desconfiança dos cidadãos nas instituições democráticas do País é a corrupção. Essa prática desmoraliza a política, passa a ideia de que a lei e as normas democráticas são irrelevantes e não precisam ser cumpridas. O exemplo que vem de cima deteriora a moralidade política e desqualifica a dimensão republicana da democracia. É certo que houve avanços, devidos às denúncias da mídia e à ação do Ministério Público, da Polícia Federal, do TCU e, mais limitadamente, da CGU. Mas, em anos recentes, o governo Lula foi considerado um dos mais corruptos pelos entrevistados de pesquisas de opinião, só perdendo para o governo Collor.

Mainwaring: Não há dúvidas de que a corrupção mina a confiança pública. E, obviamente, enfrentá-la é um dos grandes desafios da democracia brasileira e de grande parte da América Latina. A perspectiva de punição é a melhor vacina contra a corrupção. O País precisa desenvolver métodos efetivos de investigação e um Poder Judiciário capaz de perpetrar punições exemplares. Por outro lado, é preciso reconhecer que a capacidade do Estado brasileiro de investigar e punir a corrupção foi bastante aperfeiçoada desde a metade dos anos 90. O problema é que a classe política age com instinto de autopreservação, formando um "clube da impunidade": um protege o outro. Um círculo vicioso difícil de quebrar.

Morlino: Um nível alto de corrupção mostra que o império da lei é frouxo e afeta a confiança nas instituições e na democracia. A sociedade civil e as elites políticas precisam combater essas práticas. Mas deixe-me de novo ressaltar os avanços do Brasil nos últimos anos, e quanto a situação era pior há duas décadas. Muitas vezes sofremos de "perfeccionismo democrático": buscamos altos resultados imediatos e subestimamos os avanços parciais obtidos. Uma dose de realismo é necessária para não se criar expectativas impossíveis que só nos levam ao desapontamento.

O STF tem sido acionado para arbitrar questões que o Congresso não esteve apto a discutir, como a união civil entre pessoas do mesmo sexo. O que isso diz a respeito de nossa democracia? Plebiscitos são uma boa alternativa para a inação do parlamento?

Mainwaring: Plebiscitos podem ser um instrumento suplementar à democracia representativa. Porém, como pude perceber morando na Califórnia, onde esse tipo de iniciativa popular é frequente, eles também podem ser manipulados por interesses particulares. Lá, grandes corporações e lobbies poderosos muitas vezes conseguem propor e dominar plebiscitos. Eles não são uma panaceia. A democracia representativa é que precisa funcionar bem.

Morlino: A melhor maneira é a mais difícil: via mobilização e participação popular. O papel cada vez maior da magistratura é um fenômeno disseminado por todas as democracias e parte da accountability institucional. Plebiscitos e referendos podem ser instrumentos ocasionais, mas de fato podem ser distorcidos e manipulados por forças políticas ou grupos de interesse. Sobre eles, vale o slogan: use com moderação.

Moisés: O STF tem agido em casos em que o Congresso e os partidos são omissos ou as leis votadas são inconstitucionais. Seria melhor se isso fosse evitado, mas depende do Congresso recuperar suas prerrogativas e assumir papel efetivo na definição da agenda política do País. A pressão da sociedade - crescente através das redes sociais - é um novo caminho. A adoção de plebiscitos, referendos e iniciativa popular de leis, previstos na Constituição, pode revitalizar a democracia representativa.

Democracia e sustentabilidade combinam?

Moisés: O desenvolvimento sustentável depende da democracia. Só nesse regime a sociedade tem informações claras e qualificadas sobre as decisões de governos que afetam o meio ambiente. O caso das usinas nucleares é exemplar: muitas decisões do regime militar sobre sua construção e suas implicações só se tornaram conhecidas no Brasil após a conquista da democracia. Sem falar no debate sobre as implicações ambientais, o incremento da produção de petróleo, a alternativa do etanol e a construção de grandes usinas hidroelétricas como Belo Monte em áreas que afetam a preservação ambiental e as condições de vida das populações autóctones, que surgiu, mas mostrou também quanto temos de caminhar nesse tema.

Morlino É preciso trabalhar para que ambas andem juntas, mas a ideia de sustentabilidade ecológica precisa estar ligada à de sustentabilidade econômica - levando em conta, igualmente, os custos sociais e civis de cada decisão. É doloroso ver as novas democracias emergirem em um mundo que discute como manter ou baixar suas expectativas para torná-las compatíveis com os recursos econômicos existentes.

Mainwaring: Democracias tendem mais à sustentabilidade do que ditaduras. Mas vamos ser claros: há uma batalha nas democracias sobre o que priorizar neste momento. O governador do Texas, Rick Perry, é pré-candidato à presidência nos EUA e nem sequer acredita na existência do aquecimento global. E a profunda crise econômica pela qual o país passa torna ainda mais difícil um encontro entre democracia e sustentabilidade no curto prazo: a prioridade é promover crescimento e gerar emprego. Por outro lado, não podemos desconsiderar o fato de que algumas ditaduras são eficazes na promoção do ambientalismo quando querem. A China, que chegou atrasada à discussão e tem graves problemas ambientais, está se transformando rapidamente em país de ponta nas tecnologias verdes.

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO/ALIÁS

PRIMAVERA SILENCIOSA (Kleber Galveas)

Tenho o prazer de informar que este ano, do equinócio de primavera (23 de setembro) ao solstício de verão (22 de dezembro), às vésperas da “Rio + 20”, acontece em meu ateliê na Barra do Jucu, a exposição de pinturas “PRIMAVERA SILENCIOSA”: pássaros, flores e paisagens.

Essa exposição é uma singela referência aos 49 anos do lançamento do livro “PRIMAVERA SILÊNCIOSA”, de Rachel Carson.

Considerado uma das maiores reportagens investigativas do século XX conquistou prêmios e leitores atentos como o Presidente Kennedy, ajudando a mudar o curso da história. É marco antológico dos movimentos ambientalistas em todo o mundo.

Lançado em 1962, no auge da apoteose da Química (estrutura do DNA é prêmio Nobel, 1962), e da Física (Gagarin no espaço, 1961), o livro de Rachel Carson trouxe o bom senso para a Biologia. Sua obra prima foi inspirada na ausência de pássaros e o conseqüente silêncio na primavera americana. Também na certeza de que inseticidas, quando usados indiscriminadamente serem biocidas, envenenando a terra e os seres vivos em todos os estágios da cadeia alimentar, afetando diretamente a preservação e reprodução de todas as espécies.

O estudo foi publicado primeiro em série pela revista New Yorker e, na primavera do mesmo ano, em livro. A manchete do New York Times no verão (julho de 1962) expressou o imediato sentimento nacional: “A Primavera silenciosa se transformou em um verão ruidoso”. A CBS, usando o livro, produziu um documentário visto por cerca de 15 milhões de pessoas.

O alto nível e a extensão do debate que Carson provocou elevaram o tema do meio ambiente que passou a constar da agenda política principal. Foi criada a Agência de Proteção Ambiental Norte-americana.

Algumas das telas expostas podem ser vistas no site www.galveas.com

Se achar interessante favor repassar para amigos.

Grato,

Kleber Galvêas

Serviço:

EXPOSIÇÃO: PRIMAVERA SILENCIOSA

Pinturas: pássaros, flores e paisagens

PERÍODO: De 23 de setembro a 22 de dezembro

HORÁRIO: Todos os dias, das 9 às 18 horas.

LOCAL: Ateliê Kleber Galvêas

Rua Antenor P. Carneiro, 66 – Barra do Jucu.

Vila Velha – Espírito Santo. CEP 29.125.120

TEL. (27) 3244 7115

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Do PMDB e de deputados do PMDB

Em encontro nacional do partido o entusiasmo de Dilma: "Viva o PMDB; viva o povo brasileiro". O povo brasileiro, não consultado, respeitosamente pede: me inclua fora dessa.

Turismo: sai o deputado do PMDB do Maranhão, entra o deputado do PMDB do Maranhão. Será que trocaram seis por meia dúzia?

Gastão Vieira do PMDB e novo Ministro do Turismo em entrevista para o programa "CQC" mostrou que não será por falta de senso de humor que não será um bom Ministro.
Confrontado com a afirmação de que o PMDB estava na lista dos partidos que mais traíram, saiu-se com essa:
- Não é mais traíram. É mais traíra.
Não satisfeito, emendou: o PMDB tem uma característica: todo mundo manda, ninguém obedece e todo mundo faz o que quer.

Ainda, na linha bem humorada dos próceres peemedebistas, eufóricos com a preservação do ministério, um outro tascou essa:
"Gastão Vieira não é o melhor nome, mas apenas o menos problemático”.

Já, Henrique Alves, líder na Câmara, esquecido que desde da primeira eleição direta para a Presidência da República, o Partido assumiu uma condição subalterna na disputa presidencial, rugiu: "somos desse partido que não tem medo nem das tempestades, nem dos furacões, de cara feia, ameaças ou constrangimentos, porque não nascemos ontem".

Fechando essas notas com a abertura do artigo do Gabeira, publicado no Estadão de hoje:
"Dados na mesa: a corrupção desviou R$ 40 bilhões em sete anos, R$ 6 82 milhões no Ministério dos Transportes; o Brasil caiu 20 posições no ranking da infraestrutura, segundo pesquisa do Fórum Econômico Mundial - deixou o 84.º lugar para ocupar o 104.º. Mesmo sem precisar o seu peso, é inegável que a corrupção desempenhou um papel nessa queda. Apenas isso seria suficiente para justificar a presença da luta contra o desvio de verbas públicas no topo da agenda nacional". (Fernando Gabeira).

terça-feira, 13 de setembro de 2011

Necessário, mas insuficiente (José Roberto de Toledo)

É possível extrair algo do comportamento do eleitor em 2010 que valha para o pleito municipal de 2012? Uma constatação é que o voto nas capitais foi sensivelmente diferente do voto no interior. No primeiro turno da eleição presidencial, Dilma Rousseff (PT) teve 40% dos votos válidos nas capitais, contra 49% no resto do País. A disputa do governo contra a oposição foi muito mais dura nessas 27 cidades. Entender o porquê ajuda a medir as chances de governistas e oposicionistas em 2012.

Não foi a oposição tucana que dificultou as coisas para a candidata de Lula nas capitais. No primeiro turno, José Serra (PSDB) recebeu proporcionalmente menos votos nessas cidades (30%) do que no resto do País (33%). Quem fez a diferença nesses centros foi Marina Silva (então no PV). Enquanto ela teve apenas 16% dos votos válidos no interior, sua votação chegou a 28% nas capitais. Foi a mais votada em Brasília, Belo Horizonte e Vitória.

Pesquisas do Ibope feitas ao longo da campanha de 2010 indicam que o eleitorado de Marina era dividido entre dois segmentos muito diferentes entre si: de um lado, um eleitor de classe média alta que estudou acima da média e estava desencantado com PT e PSDB; e de outro, evangélicos que desconfiavam das opiniões de Dilma e Serra sobre questões como aborto. Será possível comprovar isso na esfera municipal?

O cruzamento dos resultados eleitorais com as informações de renda do Censo 2010, divulgadas recentemente, e o novo mapa da religião publicado pela Fundação Getúlio Vargas apontam que sim.

Há enormes diferenças de comportamento do eleitor de capital para capital: no primeiro turno, a votação de Dilma variou de 16% em Rio Branco (AC) a 57% em São Luís (MA). E a de Serra, de 7% em Manaus (AM) a 51% em Boa Vista (RR). Para além das peculiaridades regionais, é possível identificar tendências.

Em 3 de cada 4 municípios que não são capitais, quanto maior era a abrangência do Bolsa Família em 2010, maior foi a votação de Dilma. Já nas capitais, a força da correlação entre os programas assistencialistas do governo federal e o comportamento do eleitor foi reduzida à menos da metade. Dois outros fatores diluíram essa influência: renda e religião.

Segundo estudo de Marcelo Neri, da FGV, há maior proporção de evangélicos nas capitais. E, entre elas, há grandes disparidades: de 10% em Teresina (PI) a 43% em Rio Branco (AC). Embora haja exceções, em regra Dilma teve menos votos nas capitais onde há maior porcentual de evangélicos. Sua votação também foi proporcionalmente menor nas capitais com renda per capita mais alta. Essas duas correlações foram mais fortes do que entre voto e Bolsa Família.

Para Marina Silva, as relações foram inversas às de Dilma. Em grande parte das capitais, quanto mais evangélicos, maior sua votação. Mas a conexão mais forte não foi religiosa, e sim de poder aquisitivo. Quanto maior o crescimento absoluto da renda acima da inflação, melhor o desempenho da então candidata do PV. Ou seja: ao menos nas capitais, Marina faturou politicamente mais do que Dilma e Serra os reais extras que os eleitores embolsaram ao longo da década passada.

Como interpretar essas correlações? Do ponto de vista estrito, comprovam-se as inferências do Ibope. Marina teve dois eleitores distintos, um mais rico e outro mais pobre, que votaram nela por motivos diferentes: o primeiro, para criar uma alternativa política ao PSDB e ao PT (e, eventualmente, defender o meio ambiente), o segundo, na candidata da sua fé, que por ser evangélica se mostrou mais confiável contra mudanças como a legalização do aborto no Brasil.

Mas é possível extrapolar os resultados para 2012. A principal constatação é que quando há outros fatores intervenientes, como religião, a influência econômica sobre o voto é amenizada. A segunda é que nos lugares onde a riqueza já era mais alta, os incrementos de renda, por maiores que tenham sido, não foram traduzidos automaticamente em predisposição do eleitor de votar na candidata do governo identificado como o responsável por esses ganhos.

Não bastará ao governo manter a economia crescendo, a inflação sob controle e o Bolsa Família funcionando. Essas são condições necessárias, mas não suficientes para Dilma e sua base aliada vencerem as eleições municipais de 2012. São necessárias obras e políticas com impacto local. E isso só é viável com uma máquina administrativa bem azeitada.

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO (12/09/11)

Juntando e contando as "garrafas" (Raymundo Costa)

Quem sabe contar e identificar as "garrafas" do PT está impressionado com a profundidade do desconforto do partido com a aproximação de Dilma Rousseff em relação a Fernando Henrique Cardoso. Incômodo que chega a ser palpável, mas nunca ou raramente declarado, mesmo nas conversas entre seus dirigentes. A carta de Dilma pelos 80 anos de FHC é considerada "uma traição às bandeiras do PT" entre gente graúda da sigla.

Por "bandeiras do PT" entenda-se o discurso eleitoral que Dilma tirou do PT, ao classificar FHC como "acadêmico inovador, o político habilidoso, o ministro-arquiteto de um plano duradouro de saída da hiperinflação e o presidente que contribuiu decisivamente para a consolidação da estabilidade econômica". Ao reconhecer os méritos do governo FHC, entre outros elogios pessoais, Dilma tirou o discurso pronto e fácil da herança maldita deixada pelos tucanos.

Uma explicação: "contar as garrafas" é como o núcleo original que fundou o PT se referia aos votos que dispunham cada uma de suas tendências nos congressos e eleições internas do partido. É o PT profundo, saído das fábricas de São Bernardo do Campo. O PT que não deixou de registrar que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva voltou a encostar no PT, numa reação quase automática ao movimento de Dilma em direção a FHC.

Lula encosta no PT após aproximação Dilma-FHC

Exemplo: vindo de uma viagem pela América Central e Bolívia, Lula foi direto para o 4º Congresso Nacional do PT, realizado entre os dias 2 e 4 deste mês, em Brasília. Outro: o discurso de exaltação a José Dirceu que Lula fez no Congresso. Dirceu entrou na fala de Lula como o índio em samba enredo de Carnaval.

Lula encaixou Dirceu em meio a uma de suas costumeiras críticas à imprensa: "Eu li num jornal esses dias que ia ter a nota de apoio ao Zé Dirceu, com meu aval", disse o ex-presidente. "Ninguém pediu aval a mim. Portanto, o jornal mentiu. Mas já que ele [Dirceu] está aqui agora, tem o meu aval a nota", afirmou.

Dirceu foi ovacionado no 4º Congresso, numa demonstração de que a cada denúncias contra o ex-ministro o PT reage instintivamente a seu favor. Na semana do Congresso, Dirceu fora acusado de montar em Brasília uma espécie de "gabinete paralelo", onde despacha ministros, dirigentes de estatais e parlamentares.

Além de abraçar seu ex-chefe da Casa Civil, Lula ontem de manhã se reuniu com deputados federais e dirigentes do PT, em São Paulo, para discutir a reforma política - um arranjo casuísta entre PT e PMDB, que entre outras coisas prevê o financiamento misto (estatal e privado) das campanhas eleitorais e a convivência entre o voto em lista fechada, proposta do PT, com o "distritão", uma invenção do vice Michel Temer (PMDB).

Mesmo desconfortável com a distensão patrocinada por Dilma na relação com o principal partido de oposição, o PT de fato afinou na resolução de seu 4º Congresso Nacional. Nas discussões preliminares havia espaço para uma versão menos solidária com a presidente Dilma Rousseff. A ideia era apresentar uma "agenda própria", descolada do governo.

O PT fez uma "agenda própria", mas não tão descolada quanto pensaram dirigentes. Ainda assim o partido manteve na resolução a defesa da criação de um marco regulatório da mídia, assunto que esfriou durante o governo Dilma.

Antes da abertura do Congresso, o deputado Rui Falcão, presidente do PT, esteve com Dilma e avisou a presidente sobre a resolução. Saiu da conversa com a impressão de que, até o fim do ano, o governo manda ao Congresso um projeto de marco regulatório da mídia, conforme narrou depois a dirigentes petistas. Pode ser, mas deve-se registrar que essa não é a cadência da música tocada no Ministério das Comunicações, para onde foi enviado o projeto deixado por Lula de herança para Dilma.

Se causa desconforto no PT, a distensão de Dilma provoca alívio entre os executivos tucanos. Dilma vai a São Paulo esta semana para assinar o contrato pelo qual o governo federal se compromete em transferir recursos para o Rodoanel. Os governos federal e paulista também decidiram retomar a ideia de construção do Ferroanel. Em parceria. Animado, o vice-governador Guilherme Afif Domingos vislumbra a possibilidade da construção de uma linha para trens de média velocidade no trecho Campinas-Jundiaí- Guarulhos, unindo o aeroporto de Viracopos ao de Cumbica.

"O que nós precisamos é de um trem. Se não temos recursos para construir um trem de alta velocidade, o trem-bala, que trafega a mais de 300 quilômetros por hora, podemos fazer um que ande a 180 quilômetros por hora, a R$ 30 a passagem", diz Afif, que deve levar esta e outras propostas a Dilma. Entre elas, uma proposta de mudança na legislação atual das PPPs.

Segundo Afif, já não era sustentável o "tiroteio permanente entre petistas e tucanos". O "perfil de Dilma" permite a distensão, "o de Lula, não" - diz o vice-governador de São Paulo, que já não reza mais na cartilha do DEM, partido que trocou pelo PSD - e por isso perdeu a Secretaria de Desenvolvimento de São Paulo -, partido mais maleável aos projetos do governo federal. "O erro de DEM e PSDB foi querer repetir o PT numa oposição insana, o que o próprio FHC agora percebe e fala", diz.

FONTE: VALOR ECONÔMICO

O rio do filósofo e a Dilma (Luiz Werneck Vianna)

Se ninguém se banha duas vezes nas águas do mesmo rio, como na lição do aforismo de Heráclito de Éfeso, não há por que estranhar as mudanças entre o governo de Lula e o de Dilma, por mais que esta aferre, mesmo com sinceridade, a máscara do seu antecessor, uma vez que muitas águas já rolaram, e ameaçam, sob as novas circunstâncias do mundo, rolar mais ligeiras. Estamos em mais uma crise sistêmica do capitalismo, para a qual ainda não há remédio sabido, pois a farmacopeia com que se enfrentaram os idos de 2008 parece não ter impedido a recidiva que se faz anunciar. Décadas de neoliberalismo, com suas crenças ingênuas em mecanismos autocorretores da vida econômica, de devaneios político-filosóficos de que se estava no limiar do fim da História, cedem diante de nós, jogando por terra convicções e certezas como antes, com maior estrondo, veio abaixo o Muro de Berlim.

No terreno propriamente da política há outros espantos a varrer noções que pareciam firmemente ancoradas no mundo, as massas dos países árabes são capazes de ouvir outras vozes que não as do fundamentalismo religioso, pois lá o que ora se impreca em suas ruas e praças é em nome das liberdades civis e públicas, como na Tunísia, no Egito e por toda parte daquela região, que parecia refém de suas tradições; a hegemonia americana, se ainda se sustém no seu incontrastável poderio militar, perde terreno no front decisivo da economia e se estiola numa cizânia política que dificulta a busca pelos caminhos que levem à sua recuperação; na Europa, com sua juventude acossada pela falta de oportunidades de vida, massificam-se os protestos contra o estado de coisas atual, que, surpreendentemente, chegam a Israel - antes aquietado por seus problemas político-militares com sua vizinhança árabe -, país com menos de 8 milhões de habitantes que levou às ruas quase 500 mil pessoas inconformadas com a alta do custo de vida.

Essas são algumas das linhas-força a compor o cenário internacional à frente de Dilma, que já encontra, em seu começo de mandato, a China como o maior parceiro comercial do País, viga mestra das suas crescentes exportações e do bom estado de suas contas internacionais, e um rival temível no interior do seu próprio mercado de bens industrializados. Desta vez, portanto, não provêm do Ocidente as ameaças de redução do Brasil às atividades primário-exportadoras, e, se havia ainda alguma proteção da "Linha Maginot" herdada da cultura terceiro-mundista, ela não nos serve para nada diante da arremetida comercial chinesa.

Estamos plenamente instalados no Ocidente, dominamos sua linguagem como um idioma que nos é próprio e é a partir dessa posição que nossas credenciais se fazem valer para a interlocução com os grandes do mundo e com os países periféricos, como nós, que anseiam por mudanças no destino dos seus povos. Nosso Estado, além de deter as condições de defesa do nosso território e da economia nacional, pode falar em nome da sua Carta Constitucional de 1988, que não é filha do acaso, mas da revolução democrática que envolveu a maior mobilização política, pela amplitude de massas envolvida e pelo tempo da sua duração, da História recente do País, e são seus princípios fundamentais a fraternidade, a dignidade da pessoa e os direitos humanos.

Nestas novas águas, a navegação de Dilma não tem como reiterar a do seu antecessor, assim como está visto que sua vocação para a gestão na administração pública e seu estilo político orientado para a racionalização se têm mostrado pouco aptos a assimilar as práticas nada republicanas vigentes no nosso arremedo de presidencialismo de coalizão, mais uma banca de negócios do que uma fórmula de compor partidos afins em torno de um programa comum. Não à toa, quatro ministérios já foram espanados no seu governo, notórias, a esta altura, suas dificuldades nas relações com a assim chamada base aliada, nostálgica de Lula e de suas artes de contornar problemas difíceis sem perder amigos.

Nesse caso, pode-se admitir que a mudança não tenha sido da única responsabilidade dos fatos, uma vez que a presidente Dilma também foi influente no resultado. Mas, e nas relações com os sindicatos? O novo sinal, dado à luz quando da controvérsia sobre o valor do salário mínimo, logo no início do mandato da presidente, veio dela, que não os ouviu, desconfortável com a presença deles no interior do governo, ou, em contrapartida, significou apenas uma intervenção necessária diante da sua interpretação do estado de coisas reinante na economia aqui e no mundo? Os sindicatos continuam sendo ouvidos em matérias que lhes dizem respeito, mas preferencialmente pelo ministro Gilberto de Carvalho, outra perda, outra nostalgia, Lula, agora, só acessível por interposta pessoa.

O rio é sempre cada vez mais outro. Como se entregar à prática do piloto anterior, que não lhe conhece as suas novas manhas e não pode pôr as mãos no leme do barco? Essa recente decisão da queda da taxa de juros - novela que promete alongar-se e da qual só assistimos ao primeiro capítulo -, que trama de suspense nos prepara, porque é a sorte da inflação, tabu da política brasileira desde o longo ciclo FHC-Lula, que está em jogo? E, pouco mais à frente, o inevitável desenlace para a votação do Código Florestal nos fará conhecer qual perdedor?

À vista de todos, desmancha-se a obra-prima de Lula, um governo que abarcava todos e em que ninguém perdia, pois o tempo de Dilma anuncia que, em nome da racionalização da economia, em meio a uma crise sistêmica do capitalismo, nem todos poderão ganhar por estarem ao abrigo protetor do Estado. Sem maior alarde, o Estado vai ser desocupado dessa multidão tumultuada de classes e frações de classe com interesses divergentes entre si que tiveram assento no seu interior. A lição é clássica, em épocas de crise é comum redescobrir a serventia da autonomia política do Estado.

Professor-pesquisador da PUC-RIO.

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO

sábado, 10 de setembro de 2011

Pérolas do mensalão

Mensalão (1): "A classe política (...) habilidosamente deslocou o foco das investigações dos protagonistas políticos (LULA, seus ministros, dirigentes do PT etc) para o empresário (...) dando-lhe uma dimensão que não tinha e não teve". (Marcelo Leonardo, Advogado de Marcos Valério, dizendo que a participação de Valério foi "exagerada" na denúncia da Procuradoria para deslocar o foco dos verdadeiros "protagonistas políticos").

Mensalão (2): "A legalidade, a viabilidade, o cabimento das transações financeiras permaneciam a cargo do secretário de Finanças, sendo a firma do presidente do partido requisito meramente formal para a execução do empréstimo."
E foram justificados "para fazer frente ao verdadeiro caos financeiro vivenciado pelos diretórios regionais do PT". (Da defesa de Genoíno deixando a bomba na conta de Delúbio).

Mensalão (3): "pai da mentira" e "verdadeiro bufão" (ataque de José Genoíno ao delator do mensalão, Roberto Jefferson (PTB).

Mensalão (4): "Diversos pagamentos foram feitos em benefício dos representantes desses partidos. Da mesma forma que os partidos aliados foram auxiliados financeiramente, integrantes do próprio PT que pretendiam concorrer às eleições seguintes ou quitar débitos de campanhas passadas - como os deputados João Paulo Cunha e Professor Luizinho - se beneficiaram de recursos provenientes dessas empresas e nem por isso se pode alegar que eles foram corrompidos." (Alegações de Delúbio junto ao STF).

Mensalão (5): "O depoimento de Roberto Jefferson, usado pela acusação como o mais forte indício da existência de compra de votos, perdeu totalmente a já abalada credibilidade após o confronto com toda a prova constituída ao longo da ação penal", (Defesa de José Dirceu desqualificando as acusações de Roberto Jefferson).

Mensalão (6): "Está claro que o dinheiro foi pedido ao Delúbio. Era ignorado que esse dinheiro vinha do Marcos Valério" (conforme Alberto Toron, advogado do Deputado João Paulo Cunha, ex-presidente da Câmara e réu do Mensalão).

Mensalão (7): "Homem desprendido, Delúbio vive com simplicidade, é pobre, a despeito dos tantos milhões que passaram por suas mãos. Por isso mesmo, goza de imenso respeito entre os que compartilham suas posições políticas" (defesa de Delúbio pelos advogados Arnaldo Malheiros Filho e Celso Sanchez Vilardi).

Mensalão (8): "Derrubando cada um dos indícios brandidos pela denúncia, a prova judicial assegurou que José Dirceu se dedicava exclusivamente ao governo, não comandava os atos dos dirigentes do PT, não tinha controle nem ciência das atividades de Delúbio Soares (ex-tesoureiro do PT), não decidia nomeações e não mantinha vínculo com Marcos Valério (publicitário apontado como operador do mensalão)". (Conclusão da peça da Defesa do ex-Ministro José Dirceu)

Mensalão (9): em síntese, todos homens probos, despreendidos. Seres angelicais no pântano da política. A culpa é do sistema, culpa da falta de uma reforma política. Seres inocentes... Na verdade, os inocentes somos nós: inocentes-úteis, inocentes babacas, inocentes idiotas ....

Militares, civis e ordem pública (Alexandre Barros)

Quando a crise de segurança pública andou séria nos EUA, os políticos cogitaram de usar as Forças Armadas para manter a ordem. Democraticamente, como convém, o chefe do Estado-Maior Conjunto foi convocado ao Congresso para discutir o assunto. Em resumo, disse ele aos congressistas: nosso pessoal é treinado para matar, não para ler os direitos das pessoas presas; se é isso que os senhores querem, e nós vivemos numa democracia, assumiremos a segurança pública, mas os senhores foram avisados das consequências.

No Brasil, não democraticamente, como estamos acostumados, a crise de segurança pública que afeta várias cidades foi encaminhada da maneira que acharam mais fácil, sem pensar nas consequências: ocuparam favelas militarmente, com soldados, não com policiais. Veículos blindados fizeram parte do show. O governo do Rio de Janeiro comemorou o restabelecimento da ordem nas favelas do Complexo do Alemão.

Mas gato escaldado tem medo de água fria. E fiquei esperando as más notícias, que chegaram nesta Semana da Pátria: militares dispararam em civis da favela. Pouco importa se eram traficantes, moradores ou tinham duplo status. Antes de tudo, eram cidadãos com direitos constitucionais que tinham de ser respeitados.

Há uma anomalia no Brasil: policiais militares policiam populações civis. Historicamente, são herança das guardas nacionais estaduais, que eram exércitos de cada um dos Estados antes da ditadura Vargas (1937-1945). E uma das primeiras características de militares, sejam policiais ou não, é que são aquartelados. Vivem num mundo à parte, que, anedoticamente, entre os próprios militares, é regido pela máxima: se fica parado, pinte de branco; se se mexe, bata continência. O fato concreto é que é muito difícil, se não impossível, fazer civis, favelados ou não, pobres ou não, viverem num regime de quartel. Em algum momento uma centelha provoca uma explosão. Foi o que aconteceu no Rio.

A vida em quartéis é regida pelo ethos do que Michel Foucault chama de instituições totais. Elas cuidam das necessidades e regulam integralmente a vida de seus membros. Caem nessa categoria quartéis, asilos de "loucos" e prisões. Acontece que os cidadãos de uma sociedade democrática não estão interessados, nem preparados para isso, em viver numa instituição desse tipo, salvo se violarem a lei e forem declarados culpados por um tribunal, se legalmente insanos ou obrigados a fazê-lo, ainda que por pouco tempo - por mais autoritário que isso seja -, ao servir nas Forças Armadas, forçados que são pela legalidade do serviço militar obrigatório.

A vida numa comunidade - não importa se coesa ou não -, numa sociedade democrática, é regida por normas democráticas, que conflitam com o ethos militar. As pessoas podem beber (ainda que se espere que não bebam demais), cantar, dançar, falar alto, discutir e discordar, direitos que não fazem parte da vida de presos, alienados ou soldados.

E o resultado não custou a aparecer: tiroteio com morte de civis no Complexo do Alemão. Infelizmente, ficou mais fácil digerir o assunto porque os envolvidos na frente das armas eram pobres e favelados. Fossem de classe média, o escândalo em nossas mãos seria muito maior. Mas, infelizmente, a parte que cabe aos pobres nesse latifúndio é sempre a mais seca e agressiva.

O que não podemos, de fato, é continuar a conviver com a ideia de controlar comunidades civis manu militari.

Temos ainda um longo caminho a percorrer. O primeiro passo é aprender a não demonizar pessoas que têm comportamentos antissociais. Eles demandam punições legais, não repressão militar. Segundo, precisamos todos, civis e militares, aceitar a ideia de que numa sociedade civil democrática militares seguem ordens civis, e não o contrário. Nossos políticos, desde a criação do Ministério da Defesa, parecem não ter entendido isso, entregando seu comando a diversos políticos desprestigiados e/ou ineficazes. Tivemos uma má experiência com o último titular da pasta, que achava que um ministro "civil" da Defesa devia fantasiar-se de militar. Felizmente, parece que esses tempos se foram.

Militares são regidos por hierarquia e antiguidade. Celso Amorim, o atual ministro da Defesa, tem ambas. Os anos que acumulou como diplomata profissional lhe dão, no barato, 45 anos de serviço e 60 e muitos de idade. Preenche, portanto, os requisitos tão caros aos militares. Espero que se lembre também, e sobretudo, de que é um ministro civil.

Em diversas ocasiões protocolares na minha vida vi o secretário de Defesa norte-americano (que é civil) em solenidades militares, mas jamais de farda. No Chile, a ex-presidente Michelle Bachelet, que havia sido ministra da Defesa, não teve dúvidas quando um capitão - por acaso ou não, neto de Augusto Pinochet -, na Semana da Pátria chilena, fez um discurso pró-ditadura. Foi tratado como mandam as leis e os regulamentos. Na tarde do mesmo dia já havia sido transferido para a reserva.

Todas essas são noções que temos de aprender, civis e militares, para que tenhamos um convivência civil, democrática e igualitária (evito o termo republicana porque, de uns anos para cá, ele passou a ser utilizado para se referir a algo que ninguém sabe o que é, e, como tudo o que ninguém sabe o que é, pode querer dizer tudo, mas acaba não querendo dizer nada).

É urgente que uma convivência pacífica seja estabelecida entre cidadãos, bairros e favelas por meio de instituições civis e democráticas, caso contrário teremos repetições - e muitas - do que ocorreu estes dias no Complexo do Alemão. E esse não é, definitivamente, o caminho para reduzir a criminalidade nem para respeitar a cidadania.

Cientista político (ph.d. pela University of Chicago), é consultor em análise de risco político (Brasília)

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO