Convenhamos, não era
um símbolo que primasse pela originalidade ou pela ousadia. Não era inusitado,
não era inventivo, era apenas óbvio. Mesmo assim, foi ele que vingou. Na falta
de um logotipo mais profissional, mais publicitário (a indústria do marketing
só chegaria mais tarde àquelas plagas), foi esse o símbolo adotado pelo Partido
dos Trabalhadores, o PT, bem no seu início, no começo dos anos 80: uma estrela
branca, banal, sobre fundo vermelho.
Diz a lenda que quem
costurou a primeira bandeira do partido foi dona Marisa Letícia, em pessoa, a
mulher do líder metalúrgico de cognome Lula, astro maior do partido da estrela.
Desde então, a marca do PT ficou inscrita no DNA da democracia que sobreveio à
ditadura militar no Brasil. Não dá para entender o Brasil de hoje sem entender
o PT e sua estrela. O PT é um dos construtores, se não o principal, do Estado
de Direito em que hoje vivemos por aqui. A começar da derrubada da ditadura.
Foram as greves do
Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo, lideradas por Lula, que
puseram contra a parede o aparato repressivo do regime militar, forçando o
recuo definitivo. Mais tarde, a campanha por eleições diretas, as Diretas-Já,
que levou milhões de cidadãos às ruas em 1984, tinha José Dirceu na organização
logística de todo o movimento - revelava-se ali o estrategista e empreendedor
arguto, ambicioso e brilhante, o principal articulador da máquina partidária e
do que ele gostava de chamar de "arco de alianças" que conduziria
Lula à Presidência da República em 2002. Em 1988, a nova Constituição
brasileira saiu do Congresso com a inconfundível impressão digital da estrela
branca sobre fundo vermelho.
A história é
conhecida. Está aí para ser vista e reconhecida. Gerações de excelentes quadros
políticos se formaram na militância de esquerda e, cedo ou tarde, acabaram
passando por organizações clandestinas e pelas instâncias do PT, onde aprenderam
quase tudo o que sabem. São gestores públicos, intelectuais, parlamentares, até
mesmo jornalistas, veja você, alguns já passados dos 80 anos, outros ainda na
casa dos 30, que conheceram o Brasil e seus excluídos desfraldando a bandeira
vermelha com a estrela branca. Aprenderam política no PT. Nos movimentos
sociais, aprenderam a solidariedade, a justiça, a disciplina, a ousadia.
Depois, no exercício de cargos públicos, aprenderam que a competência técnica
não pode esperar, conheceram os estilos de governança e o imperativo da
conciliação.
O PT alcançou o
poder, abrandou o sectarismo e, mais maduro, ajudou então a moldar as próprias
instituições da República, com acertos notórios. No Supremo Tribunal Federal
(STF), hoje tão rigoroso e elogiado, a maioria dos atuais ministros foi
indicada por governantes petistas. A Polícia Federal, hoje tão implacável e
festejada, cresceu e se fortaleceu sob governos petistas. O Estado brasileiro
está melhor, o que também é mérito da estrela branca sobre fundo vermelho.
A despeito de um
muxoxo aqui, de um nariz torcido acolá, todo mundo sabe disso. Os agentes
políticos, os de direita e os de esquerda, têm plena noção de que o
protagonista maior da evolução democrática pós-ditadura atende pelo nome de
Partido dos Trabalhadores. Só quem parece não estar à altura desse fato
histórico é, ironicamente, o próprio PT. Com reações destemperadas, como que
regurgitadas de uma adolescência que já passou, mostra que talvez não entenda
bem o seu próprio papel e o seu próprio lugar.
A pior dessas reações
foi a conclamação de uma onda de manifestações públicas em protesto contra
decisões do Supremo Tribunal Federal no julgamento do mensalão. É compreensível
que muitos petistas se sintam indignados ao ver uma figura pública do porte de José
Genoino condenada pelo crime de corrupção, e isso com o voto do ministro Dias
Toffoli, o mesmo que, até outro dia, trabalhava para o partido da estrela. É
compreensível, mas a indignação não autoriza ninguém a fazer comício contra o
Supremo. Há canais legais para pedidos de reconsideração judicial. Se, em lugar
de discutir o processo e seus eventuais erros tópicos, o PT ergue palanques
para contestar a legitimidade da própria Corte, como se ela não passasse de um
instrumento de perseguição partidária, estamos diante da ameaça de ruptura
institucional.
Nesse ponto, a
postura da presidente Dilma Rousseff, de respeito declarado ao STF, contrasta
com os arroubos irrefletidos - e serve para enquadrá-los. Dilma leva em conta
que a mesma Corte que condenou uns absolveu outros, inclusive alguns militantes
do PT. Logo, se devemos aceitar com um sorriso as absolvições, temos de acatar
também as condenações e interpor os recursos que o direito processual admite.
Fora disso, resta o tumulto.
O PT parece não saber
como agir. Vive um refluxo amargo, um atordoamento, embora siga acumulando
vitórias eleitorais. Esta semana ficou ainda mais tonto. Foi apanhado no
contrapé por outro cruzado de esquerda, com novas denúncias de corrupção. Uma
investigação da Polícia Federal revelou irregularidades escabrosas
comprometendo servidores públicos de alta patente no governo federal. O que
fará o PT em seu inferno astral? Atos públicos? Vai acusar os policiais de
sanha persecutória? Ou vai exigir mais transparência? Ou vai punir, pelo seu
próprio estatuto, os filiados envolvidos?
O PT precisa arcar
com a responsabilidade de fortalecer a democracia que ajudou a conquistar. Eis
o seu lugar e o seu papel. Se não enfrentar e sanar agora, já, os seus próprios
desvios, o partido da estrela branca emoldurada de vermelho acabará por queimar
sua reputação em praça pública. Será uma pena. A pior de todas as penas.
Eugênio Bucci,
jornalista, é professor da ECA-USP, da ESPM
Fonte: O Estado de S. Paulo (29/11/12)
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