O fim do mundo até que pode estar próximo, mas não será agora, já
deixada para trás a presumida data fatídica do calendário maia. E se a
sociedade brasileira está fadada a conhecer grandes tumultos, prestes a
converter a multidão em potência demiúrgica de uma grande transformação,
ainda não foram registrados os indícios promissores de evento tão
espantoso, nem se deram a conhecer os seus profetas. Por toda parte, dos
sertões mais remotos às periferias dos grandes centros urbanos, de
Sinop a Lucas do Rio Verde, ao Complexo do Alemão, dos intelectuais
enredados em seus afazeres e rotinas cinzentas do mundo acadêmico, dos
movimentos sociais ao sindicalismo, nem as antenas mais sensíveis têm
sido capazes, até então, de captar, vindos daí, sinais da tormenta
anelados pelos que em desespero com o atual estado de coisas no mundo
preferem qualquer outro a este aí.
Desejos fortes, quando contrariados, podem dar asas à imaginação, que
passa a ver o seu objeto mesmo onde ele não está, tomando-se a nuvem por
Juno, que, ao menos, na mitologia condena o seu autor a um resultado
infeliz. Assim é que alguns pintam com cores fortes a controvérsia entre
o Supremo Tribunal Federal (STF) e a Mesa Diretora da Câmara dos
Deputados sobre os efeitos da decisão condenatória emanada na conclusão
da Ação Penal 470 como uma crise institucional a semear impasses
catastróficos nas relações entre os Poderes Legislativo e Judiciário - o
gatilho tão esperado para o "fim do mundo"? -, como se não coubesse a
este último o papel de intérprete constitucional da lei.
De fato, sem que se incorra aqui na prática que se dissemina no nosso
colunismo político de se arvorar, mesmo quando pagão no tema, nas artes
intrincadas dos julgamentos nos tribunais, houve, sim, uma intervenção
hermenêutica do STF, necessária, nas claras palavras do seu decano, o
ministro Celso de Mello, a fim de harmonizar o sentido de diferentes
disposições legais da Carta de 88 e do Código Penal quanto à perda de
mandatos eletivos. Por maioria, como se sabe, aquele tribunal julgou
incompatível com o exercício de um mandato político o parlamentar que,
por meio de uma sentença criminal, seja destituído dos seus direitos
políticos.
Diante da decisão, vozes interessadas em degradar o histórico julgamento
da Ação Penal 470, no curso do qual se fizeram ouvir razões fortes em
defesa da República e de suas instituições com uma ênfase desconhecida
nos tempos presentes, acusam-no de fazer parte de mais um capítulo da
judicialização da política, uma vez que por meio dela o Judiciário
estaria usurpando prerrogativas do Legislativo e desobedecendo ao que
seriam as rígidas fronteiras a discriminarem os territórios próprios a
eles. O refrão do bardo seria bem lembrado: chamem o ladrão, pois nessa
versão é o STF que atenta contra a República.
Com efeito, o tema da judicialização da política é perturbador,
especialmente na sociedade brasileira, em que esse fenômeno
especificamente contemporâneo já afeta a quase totalidade das relações
sociais, da saúde às questões ambientais, passando pelos direitos das
minorias - vide a decisão do STF sobre as relações homoafetivas -, e,
sobretudo, no desempenho da Alta Corte nas ações levadas a ela para a
avaliação da constitucionalidade das leis, quando se confronta com a
decisão do legislador. O senador José Sarney, em rompante manifestação
feita no recinto do Senado, atribuiu a voga do processo da
judicialização a uma autoria certa. Em suas palavras, a que não faltam
boas razões, "quem inventou isso foi o PT, que na oposição a qualquer
problema batia na porta do Supremo", e que estaria, agora, provando do
seu veneno (O Globo, 20/12, página 38).
Sobre a matéria, o deputado Miro Teixeira, no seu décimo mandato pelo
Rio de Janeiro, é mais reflexivo, conferindo à chamada judicialização da
política um caráter positivo, dado que "serviria de contraponto aos
grandes grupos que controlam o parlamento". Mais que isso, indo ao cerne
do problema, identifica que na raiz do fenômeno da judicialização
estaria a "servidão voluntária" a que se teria sujeitado o Congresso
Nacional ao Poder Executivo, "em uma renúncia evidente ao poder que lhe
foi conferido" (in coluna de Rosângela Bittar, Valor, 19/12).
Nessas reações de dois políticos relevantes, são suscitadas topicamente
as questões que são objetos da bibliografia clássica sobre o assunto: o
da agenda da igualdade e dos novos direitos a ela associados, e o das
novas relações entre o Executivo e o Legislativo vindas à tona desde
que, no segundo pós-guerra, se institucionalizou no Ocidente o sistema
do Welfare State (Estado de bem-estar social). Foi, de fato, o PT que
difundiu entre nós a agenda igualitária, não se furtando à sua
judicialização, como no caso das ações civis públicas em questões de
saúde, educação e meio ambiente, com frequência em associação com o
Ministério Público, assim como tem sido ele, para os fins dos seus
propósitos partidários, quem avassalou o Legislativo, tal como dá
noticia a Ação Penal 470.
Como nas lições de Mauro Cappelletti, o Judiciário como Terceiro Gigante
nasce dessas grandes transformações (Juízes Legisladores?, Porto
Alegre, Sergio Antonio Fabris Editor, 1993), a que, evidentemente, não
fomos imunes. Não estamos à beira do fim do mundo, mas de um recomeço
dele, inclusive no campo das relações entre os Poderes, cuja marca nova é
a da colaboração, e não a do insulamento, e devemos reconhecer com John
Forejohn, cientista político americano bem conhecido dos nossos
acadêmicos, que, sob as novas circunstâncias do século, "é simplista
demais restringir a política ao processo legislativo" (Judicializing
Politics, Politicizing Law - in 65, Journal of Law and Contemporary
Problems, 41, 2003).
Luiz Werneck Vianna é professor-pesquisador da PUC-Rio
Fonte: O Estado de S. Paulo (29/12/12)
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