Nenhum outro partido tem raízes populares comparáveis às do PT. Não há
outro líder político brasileiro com a história de Lula. Essas duas
credenciais, no entanto, têm sido utilizadas para negar, encobrir e/ou
justificar práticas flagrantemente contrárias ao próprio ideário
republicano de que o partido e seu líder maior se diziam os mais
legítimos defensores. Não se trata de práticas episódicas, mas de ações
sistemáticas pelas quais instituições e recursos públicos são postos a
serviço dos interesses do PT e de seus membros.
É uma tragédia política, porque todo país civilizado precisa de uma
esquerda verdadeiramente republicana e democrática. E o PT, que poderia
representá-la, afasta-se cada vez mais dessa possibilidade. O partido
adquire semelhanças crescentes com o velho PRI mexicano - pela
interpenetração de partido, Estado e sindicatos - e com o peronismo
argentino - pelas mesmas razões, acrescidas da mística criada em torno
de seu líder maior.
A possibilidade histórica de o PT representar uma esquerda democrática e
republicana se perdeu - resta saber se definitivamente - em meio à sua
transformação num partido pragmático e organizado. O velho PT sectário,
fechado dentro da esquerda, e consumido por uma vida interna tão
vibrante quanto entrópica, cedeu lugar a uma organização partidária
orientada para acumular recursos financeiros, ganhar eleições e governar
com amplas alianças.
A experiência em governos estaduais e municipais de grandes cidades
tornou o partido mais realista e moderado. O acesso a fundos e empregos
públicos em cargos de confiança substituiu, em boa medida, para uma
parte importante da militância, os estímulos morais que a crença ingênua
num difuso ideal socialista oferecia ao petismo original. O horizonte
político-teórico convergiu para o projeto de colocar o "Lula lá". Toda
discussão sobre socialismo e democracia, ética e política foi posta à
margem.
Quando o PT chegou ao governo federal, abriram-se portas ainda mais
largas para fortalecer a máquina partidária, organizações e movimentos
ligados ao partido. Além disso, criaram-se perspectivas de ascensão
social sem precedentes para quadros e militantes partidários. Por meios
formalmente legais (nomeação para cargos de confiança, transferência de
parte da contribuição obrigatória às centrais sindicais, etc.) ou
inteiramente ilícitos, o governo Lula atuou com desenvoltura, em todas
as frentes, para contemplar o conjunto dos apetites. O presidente foi
pródigo, pelo menos na complacência com o malfeito. Como houve maior
redução da desigualdade e da pobreza em seu governo, qualquer crítica
passou a ser "udenismo golpista".
O paradoxo desse processo é que a incorporação do PT ao governo e às
elites políticas - um elemento indispensável e positivo da
democratização do País -, ao invés de fortalecer, enfraqueceu as
instituições e a ética republicanas. Um conservador cínico diria que
esse foi o custo inevitável para domesticar o partido. Para quem não é
uma coisa nem outra, cabe fazer duas perguntas: era realmente
inevitável? E, mais importante, devemo-nos conformar com esse custo,
mesmo sabendo que ele se pode perpetuar e crescer?
Há exemplos históricos recorrentes de que a ascensão de novos grupos
sociais à elite política vem acompanhada de aumento da corrupção. Esta
frequentemente ganha caráter sistemático quando a democratização da
elite se faz pela entrada de partidos de massa e corporações sindicais.
Dessa perspectiva, a Europa é a exceção no mundo ocidental. Nos Estados
Unidos, essa foi a regra, em particular nas grandes cidades industriais
do norte, como Nova York e Chicago. Na América Latina também, salvo no
Chile e no Uruguai.
Essa constatação, porém, não isenta os atores políticos de
responsabilidade. No caso do PT, sobressaem dois movimentos
concomitantes ao longo de sua história: de um lado, seus líderes e sua
militância, com honrosas exceções, jamais assumiram como patrimônio
coletivo da democracia brasileira a construção institucional feita a
partir da Constituição de 1988 (valeram-se dessas instituições, isso
sim, seletiva e instrumentalmente, como é notório na relação
esquizofrênica do partido com o Ministério Público e a imprensa); de
outro, curvaram-se à lógica da conquista e manutenção do poder quando
esta se chocou com princípios éticos em episódios cruciais da trajetória
do partido.
Nunca será demais lembrar de Paulo de Tarso Venceslau, militante
histórico da esquerda e então secretário de Finanças de São José dos
Campos, que em 1995 levou ao conhecimento de Lula denúncias sobre um
esquema de corrupção orquestrado por Roberto Teixeira,
empresário-compadre do líder maior do partido, em prefeituras do PT.
Para apurar as denúncias criou-se uma comissão que recomendou punição a
Teixeira. Nada foi feito. Três anos depois, Venceslau seria expulso do
partido. Dos membros daquela comissão, o único a se insurgir foi Hélio
Bicudo. E se outros tivessem tido a sua coragem? E se Lula tivesse dado o
exemplo, cortando na própria carne? A verdade é que não dá para se
esconder atrás da história e da sociologia para justificar tudo isso que
está aí.
Coragem cívica anda em falta. Não se espere isso dos apparatchiks da
máquina petista. O que mais constrange é o silêncio dos intelectuais
próximos ao partido. Uma exceção é Eugênio Bucci. Leia-se e releia-se o
seu O inferno astral da estrela branca" (29/11, A2). Diz ele que o PT
"precisa arcar com a responsabilidade de fortalecer a democracia que
ajudou a conquistar". O difícil é que isso implica enfrentar a herança
de Lula e José Dirceu, sem os quais, para o bem e para o mal, o PT não
seria o que é hoje.
Uma coisa é certa: o PT não mudará enquanto estiver no Planalto. Caberá
aos eleitores fazê-lo descer novamente à planície. Pois só a derrota
ensina.
Fonte: O Estado de S. Paulo
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