Acabo de ler a biografia Marighella, o Guerrilheiro que Incendiou o Mundo,
de Mário Magalhães (Companhia das Letras, 2002, 732 pp.). Além de ser o melhor
relato da luta armada no Brasil no período do autoritarismo militar, apresenta
muita informação sobre a história do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e da
política brasileira. Suscita muitas reflexões sociológicas sobre a luta
política revolucionária. Mais especificamente: de que meios sociais provêm os
militantes que pretendem dirigir o povo, o proletariado ou o campesinato na
luta contra os opressores capitalistas ou latifundiários? Na Europa civilizada,
a luta pelo socialismo estava ligada à classe operária, a classe guia.
Sindicatos de trabalhadores estavam controlados pelos social-democratas. Havia
uma liderança operária ao lado de intelectuais revolucionários, como o próprio
Marx.
Lenin, porém, nunca acreditou que os operários, "deixados a eles
próprios", iriam mais adiante do que uma consciência sindical. O
socialismo viria de fora do proletariado. Seria uma construção de intelectuais
revolucionários. As revoluções seriam obra das massas, mas dirigidas por uma
minoria de revolucionários profissionais. Na sua maioria eram de classe média.
Havia também alguns aristocratas decadentes ou burgueses desajustados em sua
classe. E muitos judeus.
Os desenvolvimentos posteriores deram razão a Lenin, e não a Marx. Os
operários acomodaram-se à ordem capitalista afluente, suas lideranças sindicais
ascenderam no sistema político das democracias de massas. A partir da 1.ª
Guerra, mais e mais setores de classe média se radicalizaram. Distribuíram-se
entre o bolchevismo e o fascismo, ambos contra a ordem burguesa liberal.
A contestação ao mundo democrático capitalista ganhou dimensões mais nítidas
a partir da década de 1970. Em especial nas franjas ocidentais do capitalismo,
segmentos jovens de classe média intelectualizada lançaram-se à destruição da
ordem imperialista e de seus lacaios nacionais. Pouco a pouco, afastaram-se
inteiramente das massas. Passaram a confiar na força das armas. É verdade que
nem todas as organizações de esquerda - no Brasil, o partidão e seus desafetos
trotskistas - acreditaram na ilusão guevarista. Mas um número grande de jovens,
em geral neófitos na militância partidária, aderiu com entusiasmo à luta
armada. A cidade ou o campo poderiam ser o cenário principal.
"Mariga", para os experts, acreditava numa variante do modelo
chinês: a revolução começaria no campo, porém sob a forma de guerrilha, como em
Cuba. "As plantações dos fazendeiros devem ser queimadas, o gado dos
grandes pecuaristas, dos frigoríficos, das invernadas deve ser expropriado e
abatido para matar a fome dos camponeses (...), os grileiros e os
norte-americanos proprietários de terra devem ser tocaiados e mortos, assim
como os capangas dos fazendeiros." Para preparar a guerrilha agrária
dominicanos foram encarregados de um levantamento estratégico no Brasil
Central.
As ações concretas, contudo, limitaram-se ao meio urbano. Foram antes de
tudo atos de terrorismo (para desmoralizar a ditadura militar) e assaltos a
bancos (para sustentar os aparelhos e militantes clandestinos). Eram
principalmente estudantes, alguns secundaristas, ansiosos para pegar em armas.
Muitos foram para Cuba, para treinamento militar e de guerrilha.
Alguns vinham de família de classe alta, de círculos politicamente
dominantes, faculdades e estabelecimentos de ensino importantes, como o Colégio
Pedro II, no Rio de Janeiro. As redes de apoio incluíram ricos empresários,
médicos, psiquiatras, artistas, poetas e outros profissionais de relevo:
abrigavam feridos, escondiam armas e emprestavam automóveis. Alguns até mesmo
serviram de motorista para Carlos Marighella. A atração pela revolução, palavra
mítica, e por seus chefes admirados sempre rondou minorias dissidentes das
classes altas.
No caso da Aliança Libertadora Nacional, ou Ação de Libertação Nacional
(ALN), o recrutamento principal, fica evidente pela pesquisa de Mário
Magalhães, foi entre os jovens das classes médias intelectualizadas e das
classes altas, muitos dos quais de famílias tradicionais de nossa
intelligentsia. Mas eram minorias no conjunto dessas categorias
socioprofissionais. Operários, camponeses e dirigentes sindicais não quiseram
saber nada com a ALN.
O aspecto que nos parece mais destoante, se olharmos o passado de outros
países, é a forte relação dos dominicanos com a ANL, fato que pode ser
explicado pela mudança da orientação da Igreja Católica, ou seja, a opção
preferencial pelos pobres.
Uma última observação provocadora, mas não equivocada: em muitos pontos,
excetuando a ideia da guerrilha rural, os militantes da Ação de Libertação
Nacional, embora não o soubessem, estavam próximos do fascismo italiano,
particularmente do primeiro fascismo, o dos Fasci di Combattimento, que
precedeu a criação do Partido Nacional Fascista. Predominavam na ANL, além do
nacionalismo, o culto da ação, do heroísmo, a rejeição da política, o
voluntarismo, o romantismo, a exaltação da violência, o encanto pelas pistolas
e metralhadoras, o recrutamento na juventude, a rejeição total do
"legalismo" burguês. Essa linha, da valorização do pequeno grupo, das
minorias militantes que não esperam chegar a vez, tem uma longa história na
história da esquerda. Sempre dividiu "reformistas" e
"revolucionários", moderados e radicais. Os primeiros confiavam nos
Parlamentos, no voto, nos eleitores, nas transformações graduais. Os segundos,
na disposição revolucionária dos pequenos grupos, no triunfo da vontade. Mas
essa conclusão é minha. Derivou da leitura prazerosa do livro de Mário
Magalhães, que se limitou a relatar os fatos de modo objetivo e bem
fundamentado.
Cientista político, prof. titular do Depto. de Ciência Política da USP e da UNICAMP;
seus últimos livros sobre o assunto foram "Partidos, ideologia e
composição social" (2002) e "Mudanças na classe política
brasileira" (2006)
Fonte: O Estado de S. Paulo (28/11/12)
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