O sucesso do filme Lincoln, de Steve Spielberg, inspirou uma série de
artigos nos Estados Unidos ressaltando a importância da política, quando
é realizada por pessoas generosas com o objetivo de melhorar a vida de
milhões.
Os articulistas esperam que a exibição do filme leve os espectadores a
lamentar a mediocridade da atmosfera política de hoje e que desperte o
desejo de elevar seu nível por meio da própria participação.
Não vi o filme, apenas as entrevistas de Spielberg e de Daniel
Day-Lewis, que interpreta Lincoln. Consegui, entretanto, o livro que, de
certa forma, inspirou o filme: Team of Rivals, The Political Genius of
Abraham Lincoln, de Doris Kearns Goodwin. A autora se estende também na
biografia dos três candidatos que disputaram com Lincoln no Partido
Republicano. Todos jovens ambiciosos e capazes, admirados pelos seus
eleitores.
Não posso prever que efeito o filme terá nos Estados Unidos. Noto apenas
que a época empurrava para a grandeza: todos saíram de casa e cruzaram
os Estados Unidos para construir sua carreira. E havia um grande tema
esperando por eles: a escravidão.
Os grandes temas ajudam, quando os políticos são capazes. Joaquim
Nabuco, no Brasil, enriqueceu sua trajetória na luta contra a
escravidão. Lincoln é produto de outra cultura e se insere de modo
especial no momento político americano. Mas, como a reflexão sobre a
política trata de variáveis universais, pode ser que desperte algum
interesse no Brasil.
Vivemos um momento estranho. Dois presidentes, José Sarney e Lula,
defendem-se reciprocamente com o argumento de que estão acima de
suspeitas ou investigações. Sarney conferiu a Lula a condição de
inalcançável e este, por sua vez, no auge do escândalo no Senado,
afirmou que Sarney não deveria ser tratado como uma pessoa qualquer.
Criaram uma irmandade dos intocáveis. Sarney já tem um museu dedicado à
sua vida; Lula está a caminho de construir o seu.
Além de intocável e com um museu ainda em vida, Sarney também é imortal.
Essa condição ainda falta a Lula, mas não me surpreenderia se o amigo
conseguisse para ele uma cadeira na Academia de Letras.
Na década de 1960, escrevi um artigo ironizando as pessoas que se
achavam especiais porque moravam em Ipanema. Até hoje rola pela
internet. Jovem existencialista, mostrava a futilidade de se julgar
especial por pertencer a algum lugar ou grupo ou mesmo por alguma
condição nata. Era a forma de negar a importância das opções cotidianas,
a construção de nossa realidade por meio das escolhas mais intrincadas.
Sarney e Lula não reivindicam uma vantagem nata, muitos menos a que
decorre do pertencimento a um grupo ou lugar. Eles se reclamam
intocáveis pelos serviços prestados ao País. E nisso reside seu erro
monumental. Não existem serviços prestados ao País que possam garantir
uma condição acima de qualquer suspeita. E, se foram prestados com essa
expectativa, corrompem as suas próprias intenções generosas.
Sarney e Lula fizeram nesse aspecto particular um pacto pelo atraso. Com
o domínio do Congresso que o primeiro exerce e a popularidade do
segundo, continuam com potencial de mobilizar a maioria. Mas sempre
existirá uma minoria, resistindo com a frase tantas vezes subversiva:
somos todos iguais perante a lei.
Compreendo que há uma luta política. Os governistas precisam proteger a
imagem de Lula, pois ela é a garantia de futuras vitórias eleitorais. O
desgaste de Lula enfraquece um projeto de poder.
Não compreendo, entretanto, o argumento que nos faz retroceder ao
período anterior à Revolução Francesa. Esse desejo de poder estendido ao
controle da biografia, da inevitabilidade da morte, do alcance da lei, é
um desejo patético.
Mesmo aqueles que acham que o mundo começou com o nascimento de Lula, em
Garanhuns (PE), ou com o nascimento de José Ribamar, em Pinheiro (MA),
deveriam ser sensíveis à bandeira da igualdade.
A fraternidade dos intocáveis é uma construção mental que rebaixa as
conquistas do movimento pela democratização no Brasil e nos divide entre
semideuses e seres humanos.
Na verdade, o argumento dos dois presidentes aprofunda a desconfiança na
política e nos políticos. Por isso a chegada de Lincoln, o filme,
apesar de uma cultura e uma época diferentes, pode ser um pequeno sopro
de ar fresco na sufocante atmosfera política brasileira.
Nem nos Estados Unidos nem aqui é possível repetir a grandeza política
de Lincoln. Já no segundo capítulo do livro de Doris Goodwin é possível
imaginar como Lincoln brigaria feio com os marqueteiros modernos: ele se
recusava a dramatizar ou sentimentalizar sua infância na pobreza.
Ainda assim, com todas as ressalvas, precisamos de outras épocas, outros
líderes, para ao menos desejar algo melhor do que o que estamos
vivendo. Não me refiro, aqui, à satisfação majoritária com as condições
materiais de vida. Muito menos quero dar à trajetória democrática no
século 21 a dramaticidade de um tempo de guerra e escravidão.
Quando um presidente do Brasil diz uma barbaridade, sentimos muito.
Quando dois presidentes dizem a mesma barbaridade, isso nos obriga a
apelar para tudo, até para um bom cinema.
Depois do cha cha cha della secretaria, Lula se vê em apuros com as
denúncias de Marcos Valério. Concordo com os petistas de que não se deva
confiar nele, embora tenham confiado tão profundamente em 2003. Mas a
melhor maneira de desconfiar é analisar as acusações, apurando-as com
cuidado. É assim que se descobre o que é verdade e o que é mentira.
Fora disso, só construindo uma redoma onde Lula e Sarney possam estar a
salvo dos percalços que ameaçam os simples mortais. E criar essa visão
religiosa de uma santíssima dualidade. E ninguém se ajoelha e reza
diante dela, porque a ferramenta hoje não é oração do passado. Basta um
#tag.
Se Sarney e Lula se contentassem com um museu e a condição de imortais,
tudo estaria bem. Mas, mexeu com a igualdade, mexeu com todos nós.
Fonte: O Estado de S. Paulo
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