Evitar a responsabilização de autoridades faz com que o Brasil se assemelhe a um Estado absolutista
Em artigo jocoso, "Apenasmente" Cajazeiras, o professor Eugênio Bucci
analisou recentemente as acusações contra Luis Inácio da Silva. Ele
compara o político popular ao personagem da novela O Bem-Amado, Odorico
Paraguaçu. Boa dose de injustiça ressalta do texto, mas vários elementos
devem nele ser levados em conta, como a crítica dos que eximem a priori
o ex-presidente de toda responsabilidade pelos malfeitos cometidos em
seu governo. Lula, escreve Bucci, "teria tudo para enfrentar com
grandeza as denúncias que dele se aproximam, sobretudo as mais recentes.
Em vez disso, prefere se refugiar no mito de si próprio, um mito que,
convenhamos, além de precocemente instalado, é oco". Discordo da última
frase e me apoio no antropólogo Malinowski: "O mito é um subproduto
constante de uma fé viva que precisa de milagres, de um estado
sociológico que tem necessidade de precedentes e de um código moral que
exige uma sanção". A taumaturgia cortesã se opõe à racionalidade da
ordem política e jurídica. Não existe mito oco ou inocente.
Dois pilares, na república democrática, garantem o direito e a
liberdade. O primeiro é a transparência dos atos políticos. Tal
princípio é reforçado pela norma segundo a qual em todo processo os
fatos devem ser descritos à exaustão (quid facti), sem os obstáculos das
seitas, partidos, governantes poderosos. Os tribunais e seus
integrantes (polícia, ministério público, advogados de defesa) precisam
apurar os atos, os documentos, os testemunhos para definir uma narrativa
sólida, contrária ou favorável ao acusado, do humilde cidadão ao
poderoso. Outro item é a busca de situar os fatos sob a lei que os
sanciona positiva ou negativamente (quid juris). Na Constituição
brasileira estão previstos os casos em que governantes, atuais ou
pretéritos, devem responder perante a nação. Nenhum parágrafo afirma que
um líder, por sua popularidade ou grandeza, deve escapar da pesquisa
dos fatos e das normas jurídicas. A Constituição, no entanto, não é
espelho fiel do que ocorre na política nacional. Falar no Brasil em
responsabilização de grandes líderes é anátema que faz surgir de
imediato, nos lábios de quem manda na esquerda e direita, a ladainha
sobre a intangibilidade do acusado, sua condição de pessoa acima das
outras. Semelhante traço oligárquico impede a soberania popular, gera os
tutores do País.
Enquanto não existir responsabilização das "autoridades", o Brasil será
um anacrônico e virulento Estado absolutista no qual o soberano jamais é
o povo e sim o ocupante do trono e seus cortesãos. O gestor e o
político não podem ter contra si nenhuma acusação ou dúvida. É o que
manda a fórmula restritiva "ilibada reputação" (illibatus, no latim bem
conhecido pelos nossos poderosos significa "íntegro", "completo").
Quando um prócer de qualquer partido ou ideologia sofre acusações que
chegam à sociedade ele deixa - mesmo que inocente - de ser "ilibado",
condição a que retorna se a Justiça assim o decidir. Quem paga impostos
ou aceita obedecer às leis sob autoridades espera que os dirigentes
sejam ilibados. Para manter um cargo é preciso que o funcionário, mesmo
na chefia do governo, seja responsável e responsabilizado. Essa doutrina
foi compendiada por John Milton e acolhida nas democracias: "Se o rei
ou magistrado provam ser infiéis aos seus compromissos, o povo é liberto
de sua palavra". (The Tenure of Kings and Magistrates).
É evidente que a imprensa não pode ser instância julgadora. Ela, não
raro, abusa ao veicular acusações. Mas é também evidente que os
julgamentos podem deixar de existir se atos que atentem contra o Estado e
a sociedade não forem trazidos ao eleitor. Quando um político é acusado
de negligência ou crime, para manter a fé pública o correto é
investigar as denúncias até que prova cabal ou juízo as dissolvam. O
político representa o Estado e deve ser íntegro. Caso contrário,
desaparece a base legitimadora do poder que se regula pela democracia e
se justifica pelo direito.
No Brasil, o poder público está sempre em crise, o que evidencia o
frankenstein jurídico e institucional do nosso Estado. Apesar de sinais
que anunciam melhorias na ordem política, como a lei de improbidade
administrativa, a lei da ficha limpa, a lei de acesso à informação e
outras, a fé pública é frágil entre nós. Combater a descrença da
cidadania exige apurações isentas e responsáveis, sem truques afetivos e
propaganda enganosa. A cada novo dia é preciso mostrar, por atos e
palavras, que existe compromisso ético. Sem tais atitudes públicas e
particulares, a governabilidade é impossível. Estado desprovido de fé
pública não pode ser um regime livre e responsável.
A governabilidade tem como pressuposto a obediência, pela cidadania
soberana, das leis elaboradas no Parlamento e destinadas à execução pelo
governo. Se os eleitores não podem confiar na abrangência universal das
referidas normas, se existe suspeita de que elas não valem para todos e
para cada um dos cidadãos, se existem pessoas acima da lei, some a
governabilidade. Bismarck dizia que duas coisas o cidadão ignora porque,
caso contrário, jamais aceitaria: o modo pelo qual são produzidas as
salsichas e as leis. Ele usa a figura médica antiga que une o poder
político ao "regime". As leis alimentam o corpo político e devem ser
controladas pelo juízo público. Este último requer ética e decoro dos
políticos, estejam eles no poder ou fora dele. Bismarck foi contrário à
democracia, inimigo da soberania popular. Se aplicarmos seu exemplo, no
entanto, as nossas salsichas e as leis não passariam nunca pelo controle
das secretarias de abastecimento. Nossos políticos, que se julgam acima
do povo, provam apenas que elas surgem com o prazo vencido, apodreceram
porque supõem o absolutismo ou a oligarquia. Não valem para uma
república democrática.
Roberto Romano é filósofo, professor de Ética e Filosofia na Unicamp e
autor, entre outros livros, de O caldeirão de medeia (Perspectiva)
Fonte: Aliás / O Estado de S. Paulo (16/12/12)
Nenhum comentário:
Postar um comentário