Existe uma diferença sutil mas fundamental entre o combate à ditadura e a
luta pela democracia. Todos os partidos, grupos e movimentos da
esquerda revolucionária brasileira combateram - com suor, sangue e muito
idealismo - a ditadura militar dos anos 60 e 70, mas nenhum deles
lutava pela democracia. O enfrentamento à repressão militar não tinha o
propósito de restauração da democracia burguesa, como era chamada de
forma depreciativa, o objetivo era trocar a ditadura deles pela nossa
(eu no meio) - a ditadura do proletariado -, supostamente a base para a
construção do socialismo, exceção do Partido Comunista Brasileiro,
estigmatizado como reformista, que defendia a democratização como uma
etapa necessária para a futura implantação da ditadura do proletariado.
Para ser fiel à história, portanto, não se pode agora apresentar os
antigos militantes da esquerda revolucionária como atores centrais na
construção da nova democracia brasileira, os jovens Dilma Roussef e José
Dirceu, para citar os nomes mais destacados da atualidade (não da
época), foram presos, arriscaram a vida e a segurança pessoal para
derrubar a ditadura mas pretendiam mesmo implantar um outro Estado
autoritário. Por isso, não podem ser colocados ao lado de Ulisses
Guimarães, Marcos Freire, Fernando Lira, Jarbas Vasconcelos, Roberto
Freire e Pedro Simon, para citar alguns daqueles democratas que lutaram,
através dos meios legais (às vezes clandestinos), também com grande
risco, para a restauração democrática no Brasil. Luiz Inácio Lula da
Silva, liderando o novo sindicalismo brasileiro, teve um papel relevante
na redemocratização, introduzindo uma fenda nos pilares do "milagre
econômico" que dava sustentação política à ditadura militar.
Se a esquerda revolucionária em geral não contribuiu, os grupos da luta
armada atrapalharam o processo de redemocratização, com sua tática
militarista, provocaram o efeito inverso: a intensificação da repressão,
fortalecendo segmentos mais reacionários e violentos da ditadura na
disputa interna de poder. E não faltaram entre os guerrilheiros aqueles
que desejavam mesmo o aumento da repressão, inspirados na tese do
"quanto pior melhor". A ditadura caiu por fatores totalmente alheios à
estratégia e à tática da esquerda revolucionária brasileira, e apesar
dela, a democratização resultou da combinação de múltiplas condições
favoráveis, incluindo o próprio esgotamento do modelo econômico, que
provocou a insatisfação da sociedade e o desgaste dos militares,
ampliando os espaços da luta política.
Depois da Anistia (1979), é verdade, a esmagadora maioria da esquerda
passou a assumir a democracia como um valor e um objetivo fundamental da
sociedade, se engajando na transição que encerraria o ciclo militar.
Mas, àquela altura, as ditaduras - aqui e alhures - já estavam
desmontando. Agora, consolidadas as instituições democráticas no Brasil,
nenhuma força política, de direita ou de esquerda (seja lá o que isso
signifique), defende alguma forma de ditadura. Mas as posturas políticas
do presente não podem alterar as concepções e atitudes do passado nem
devem confundir o debate atual que prepara e define o futuro.
Sérgio C. Buarque é economista e consultor
Fonte: Jornal do Commercio (PE)
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