O
humor inglês às vezes é tão refinado que não parece humor. Os
historiadores ingleses, quando decidem surrar um “companheiro”, o fazem
com a elegância de alguns humoristas. Parece que estão elogiando,
quando, na verdade, estão demolindo. Porque falta, pelo menos entre os
melhores intelectuais, o achincalhe (o linchamento). Não se usa a
palavra “néscio” para arrolar os equívocos de um pesquisador. Mostram,
detalhadamente, os supostos equívocos.
“Eric Hobsbawm e o romance do
comunismo” é uma resenha-ensaio de 13 páginas publicada no excelente “O
Século XX Esquecido — Lugares e Memórias” (Edições 70, 462 páginas,
tradução de Marcelo Felix), do historiador inglês Tony Judt. Trata-se de
uma crítica elegante, polêmica, cáustica e contundente.
Judt começa elogiando: “Hobsbawm é o
historiador mais conhecido do mundo” e “escreve melhor” do que seus
pares. “É um mestre da prosa inglês. Escreve história inteligível para
um público que sabe ler. As primeiras páginas de sua autobiografia
["Tempos Interessantes”, 472 páginas, Companhia das Letras] são talvez
as mais belas que Hobsbawm escreveu.”
O livro “Tempos Interessantes” foi
resenhado de forma laudatória no Brasil. Por isso o texto de Judt é uma
lição de crítica e, mesmo, coragem, porque está criticando um ícone, e
com certa aspereza, apesar do respeito. “Falta alguma coisa. Hobsbawm
não era só um comunista. Ele ‘continuou’ comunista durante sessenta
anos. Não demonstra qualquer arrependimento. Ele insiste desassombrado
que ‘o sonho da Revolução de Outubro ainda está algures dentro de mim’.”
Judt não diz, nem precisa, que Hobsbawm é um dinossauro, ou pior do que
um dinossauro, porque, embora fossilizado, é brilhante.
Judt pergunta: “Por que é que ainda
parece acreditar que o preço em vidas humanas e sofrimento sob Stálin
teria valido a pena caso os desfechos tivessem sido melhores?” Hobsbawm
não responde adequadamente, porque, se o fizesse, teria de assumir, de
frente, o stalinismo ou renegá-lo. “Ele consagra muito tempo a descrever
as suas lealdades [ao comunismo], mas na verdade nunca as explica.”
A indiferença de Hobsbawm pelos crimes
do stalinismo talvez seja explicada por uma questão pessoal, apontada
por Judt: “Ele não se comove muito nem com os entusiasmos dos seus
antigos camaradas, nem com os seus crimes. Outros deixaram o partido
desesperados, por este ter significado tanto para eles; Hobsbawm foi
capaz de ficar [no Partido Comunista] porque, pelo menos na sua vida
quotidiana, ele significava tão pouco”.
Ao apontar Hobsbawm como “mandarim
comunista”, Judt mostra o desprezo do intelectual-militante “pela classe
servidora inculta, socialmente insegura mas economicamente ambiciosa,
dos funcionários e vendedores”. “A classe britânica dos mandarins, nas
universidades como na função pública, era com frequência atraída pela
União Soviética (embora à distância): o que ali viam era o
aperfeiçoamento, planeado a partir de cima, pelos que sabiam mais — um
conceito familiar.”
Não parece brutal, mas é, o ataque de
Judt ao dizer que Hobsbawm é “romântico”. “Romanceou bandidos rústicos, e
de forma brilhante mas implausível transferiu para rebeldes do campo a
autoridade moral de proletários industriais. Romanceia o Partido
Comunista Italiano de Palmiro Togliatti — o que, à luz de revelações
recentes, fica mal com a insistência de Hobsbawm de ‘não nos iludirmos,
mesmo com as pessoas e as coisas com que mais nos importamos na vida’.”
O marxista inglês “ainda romanceia a
União Soviética. ‘Fossem quais fossem as suas fraquezas, a sua mera
existência provava que o socialismo era mais do que um sonho’, afirmação
que só pode fazer sentido hoje se dita com intenção amargamente
irônica, o que duvido”. Hobsbawm assinala que não quer pertencer ao
clube dos ex-comunistas. O reparo de Judt: “Mas os ex-comunistas — Jorge
Semprún, Wolfgang Leonhard, Margarete Buber-Neumann, Claude Roy, Albert
Camus, Ignazio Silone, Manès Sperber e Arthur Koestler — escreveram
alguns dos melhores relatos dos nossos terríveis tempos. Assim como
Soljenitsine, Sakharov e Havel (que Hobsbawm, de modo elucidativo, nunca
menciona), eles são a República das Letras do século XX. Ao excluir-se
de tal companhia, o próprio Hobsbawm provincianizou-se a si mesmo”.
A prosa de Hobsbawm, em geral límpida,
fica sobrecarregada quando se trata de discutir questões que envolvam o
partido. “Sempre que Hobsbawm entra numa zona politicamente sensível,
remete-se a uma linguagem encapotada, inexpressiva, que evoca o discurso
do partido. ‘A possibilidade de ditadura’, escreve em ‘A Era dos
Extremos’, ‘está implícita em qualquer regime baseado num partido único,
irremovível’. A ‘possibilidade’? ‘Implícita’? Como Rosa Luxemburgo lhe
poderia ter dito, um partido único irremovível é uma ditadura.”
Hobsbawm diz que “agora” é possível
dizer que a orientação stalinista para que os comunistas atacassem os
socialistas (e social-democratas), em 1932, “era de uma idiotice
suicida”. Judt comenta: “Agora? Toda a gente a achou criminosamente
estúpida na altura, e continuou a achar desde então — toda a gente, isto
é, exceto os comunistas”.
Judt escreve ensaios e resenhas, com o
mesmo equilíbrio e respeito, sobre Arthur Koestler, Primo Levi, Hannah
Arendt, Albert Camus, Louis Althusser, Edward Said, Leszek Kolakowski
(há pouco falecido). O historiador discute a queda da França (em 1940),
Tony Blair, a Guerra dos Seis Dias de Israel, a crise que envolveu
Kennedy, Kruschev e Cuba, Kissinger, Guerra Fria, a morte da América
liberal e Europa versus América. A conclusão discute o renascimento da
questão social.
Fonte: Revista Bula.
Nenhum comentário:
Postar um comentário