sábado, 6 de outubro de 2012

Constuir o futuro (Gustavo Fonseca)

Em contexto de crise econômica e falência dos modelos clássicos de socialismo e liberalismo, papel do Estado volta à discussão em todo o mundo. Obra de Tony Judt oferece elementos para o debate  

Desde a queda do Muro de Berlim e o colapso da União Soviética, nenhuma questão ideológica divide mais os filósofos e cientistas sociais do que a velha dicotomia entre direita e esquerda, erigida nos idos da Revolução Francesa de 1789. Já foi dito com certo tom de ironia que, quanto mais à direita do espectro político, mais tende-se a querer anular as diferenças entre as duas vertentes, aproximando-as e relativizando suas particularidades sociopolíticas e econômicas. No entanto, de maneiras inesperadas, eis que surgem sinais claros do embate entre um espectro e outro. A declaração do candidato republicano à Casa Branca, Mitt Romney, de que 47% da população dos Estados Unidos têm mentalidade de “vítimas” é um desses casos e põe no centro da discussão o papel do Estado como mediador entre o mercado e a sociedade. 

Não por coincidência, o mesmo tema ganhou destaque em outras partes do mundo nos últimos anos, mesmo que em contextos diferentes. Na Europa, por exemplo, onde se estabeleceu o chamado Estado do bem-estar social nos 30 anos que se seguiram ao fim da Segunda Guerra, vem sendo traçado um quadro comparativo entre esse modelo e o implementado no Reino Unido pela primeira-ministra britânica Margaret Thatcher a partir de 1979, com menor presença do governo na economia e a defesa ferrenha do setor privado. Com a atual crise por que passa o Velho Continente, bem como o turbilhão econômico nos Estados Unidos iniciado pela bolha imobiliária, o assunto tornou-se ainda mais relevante, demandando dos chamados debatedores públicos um posicionamento. 

Entre eles, o historiador social-democrata Tony Judt (1948-2010), autor do já clássico Pós-guerra: uma história da Europa desde 1945, sobressai como partidário do Estado regulador visando a uma maior igualdade entre os cidadãos, mas sem prejuízo às liberdades individuais e ao direito à livre iniciativa. Nascido na Inglaterra e radicado nos Estados Unidos, Judt conhecia como poucos a realidade dos dois lados do Atlântico, o que lhe conferia um olhar privilegiado sobre os desafios que se impõem atualmente tanto na América quanto na Europa em busca de um modelo mais equilibrado que o construído sob o chamado consenso de Washington, com seus resultados sociais e econômicos trágicos. 

Acometido pela doença de Lou Gehrig, que o impedia de controlar o próprio corpo, tornando-o totalmente dependente de familiares e enfermeiros, Tony Judt dedicou os últimos meses de vida à reflexão deste momento transitório e, com o auxílio de ex-alunos, escreveu o livro O mal ronda a terra: um tratado sobre as insatisfações do presente, síntese das bases em que foram construídas as garantias do Estado de bem-estar social entre as décadas de 1940 e 1970 e o desmantelamento desse sistema nos últimos 30 anos pelos arautos do neoliberalismo. Como fio condutor da reflexão, o mundo que esta geração quer legar a seus filhos e netos. Uma preocupação que o próprio Judt, pai de dois adolescentes, carregava e que transpassa seus principais artigos e livros.

Neles, revela as razões que o levaram à social-democracia, muito além de uma mera escolha intelectual. Filho de judeus estabelecidos em área pobre de Londres, como relembra na coletânea de textos autobiográficos O chalé da memória, Tony Judt se viu beneficiado por políticas de inclusão e de seguridade social implementadas na Inglaterra na reconstrução do país nos anos que se seguiram ao fim da guerra. Tendo estudado em escolas públicas, com o auxílio governamental conseguiu se formar em uma das principais instituições de ensino superior do mundo, a Universidade de Cambridge, onde obteria o doutoramento em história. No artigo “Meritocratas”, incluído no mesmo livro, refaz sua trajetória acadêmica e se posiciona contra cotas estudantis baseadas em outros critérios que não o desempenho intelectual. 

Ciente já em seus anos de formação dos crimes perpetrados na União Soviética e nos países do Leste europeu sob o regime socialista, não abraçaria a esquerda radical como gerações anteriores de intelectuais, entre eles o recém-falecido historiador Eric Hobsbawm (1917-2012), marxista e filiado ao Partido Comunista britânico. No artigo “Eric Hobsbawm e o romance comunista”, que integra a antologia Reflexões sobre um século esquecido: 1901-2000, Tony Judt explicita suas discordâncias do velho mestre, num texto emblemático sobre as divergências entre os dois. Na verdade, divergências entre o modelo social-democrata e o socialista.

Pragmático, Tony Judt não apenas opta pela social-democracia como ressalta sua viabilidade hoje em dia no Ocidente, ao contrário do socialismo, uma posição que Hobsbawm teimava em aceitar. Em outro texto provocador, “Sobre intelectuais e democracia”, publicado no Brasil pela revista Piauí em abril, Judt vai além e argumenta que imaginar mundos melhores não é o principal desafio dos pensadores neste início de século, mas sim evitar piores. Ou seja, para ele, em última instância, ser de esquerda atualmente é defender a manutenção de mecanismos e instituições erigidas a duras penas no século 20 como meios de garantir maior justiça social e igualdade entre os cidadãos, como a previdência pública, as leis trabalhistas, serviços gratuitos – como escolas e hospitais – de qualidade etc.

Desnecessário dizer que tais ideias têm na Europa acolhida muito melhor do que nos Estados Unidos, onde a simples menção a maior regulamentação da economia, ampliação de políticas públicas ou aumento de impostos é tachada como iniciativa socialista. Inclusive por grande parte dos 47% citados por Romney, que seriam na verdade os maiores beneficiados de medidas típicas de um Estado de bem-estar social. Como a reforma da saúde proposta por Barack Obama, pela qual 30 milhões de cidadãos passam a contar com seguro subsidiado pelo Estado. Romney, claro, já declarou que se eleito trabalhará para que o Congresso derrube a reforma, que se coloca entre os americanos e seus médicos, segundo ele. 

Desigualdade social No Brasil, sem a tradição do Estado de bem-estar social como em vários países europeus, mas também sem a polarização norte-americana entre uma parcela a favor de mais intervenção estatal (democratas) e outra contra (republicanos), fenômeno curioso aconteceu nos oito anos de governo Lula. Mesmo adotando postura neoliberal em sua política econômica, o ex-presidente conseguiu cumprir a promessa de redução das desigualdades sociais e aumento da renda média da população. É verdade que para isso ajudou e muito o crescimento mundial – particularmente da China – durante a maior parte de seu mandato. Mas sem medidas como o Bolsa Família e os ganhos expressivos do salário mínimo não haveria tamanha melhora nos indicadores socioeconômicos brasileiros.

Já a sucessora de Lula, Dilma Rousseff, vem expandindo o papel do Estado na economia (mas sem prejuízo das políticas sociais), em nítida ruptura com as diretrizes de seu mentor. No entanto, apesar das medidas vinculadas à escola desenvolvimentista de Celso Furtado, a presidente também abre espaço à iniciativa privada nas concessões públicas, que ela insiste em tentar diferenciar das privatizações. Dessa maneira, como Lula inovou ao conciliar uma política econômica conservadora com programas sociais dignos de um Estado de bem-estar social, Dilma vem somando paradigmas desenvolvimentistas com a mais óbvia feição neoliberal: a privatização de setores-chave da economia, sobretudo ligados à infraestrutura, gargalo que freia o crescimento produtivo do país.

Como social-democrata, Tony Judt repudiava as privatizações e tanto em Pós-guerra quanto em O mal ronda a terra enfatizou as consequências catastróficas da política privatista adotada por Margaret Thatcher na Grã-Bretanha. O comunista Eric Hobsbawm, por sua vez, também sempre se posicionou contra a Dama de Ferro. O contexto brasileiro de 2012, porém – ambos reconheceriam –, é bem diferente do britânico nos anos 1980, assim como a visão de Dilma e de Thatcher sobre o espaço público e o privado. Se a inglesa via o Estado como um entrave que deveria ser minimizado para a expansão do capitalismo, a brasileira o vê como peça fundamental não apenas para a justiça social, mas também para o progresso econômico. Ainda que para isso tenha de contar com o setor privado como parceiro de investimentos em áreas estratégicas, como fez o governo social-democrata do socialista Felipe González na Espanha de 1982 a 1996.

Por suas singularidades, a gestão Dilma Rousseff surpreende quem esperava se tratar de um governo de continuidade ao do ex-presidente Lula. Mais que isso. Ao estreitar a relação entre o Estado e a iniciativa privada, apesar das turbulências inevitáveis, Dilma lança alternativa na América Latina ao esquerdismo estatizante e antidemocrático de Hugo Chávez, como bem reconheceu o candidato de oposição à Presidência da Venezuela, Henrique Capriles. Afinal, o velho socialismo e a velha social-democracia talvez tenham ficado no século 20, com seus erros e acertos. Reconhecê-los e aprender com eles é responsabilidade não apenas do governo, mas sobretudo da intelectualidade. O tipo de tarefa a que Tony Judt e Eric Hobsbawm sempre responderam prontamente.

ESTADO DE MINAS

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