Pela "governabilidade", PT e PSDB sacrificaram seus programas de
esquerda ou centro-esquerda
O segundo turno das eleições paulistanas retoma o dramalhão dos Montecchios
contra os Capuletos, sem casal inocente para ser lamentado. PT e PSDB têm
origens próximas e fontes comuns de pensamento. Ambos surgem como alternativas
de esquerda ao "socialismo real", seus programas pretendem mudar as
formas capitalistas no âmbito e limites do Estado democrático. Os dois partidos
foram e são próximos da social-democracia europeia, com variantes próprias à
cultura política brasileira.
O PT retoma três paradigmas de sociedade e de Estado. O primeiro é a
doutrina clássica do poder político que deve ser colhido eleitoralmente. Mas
para a representação marxista radical o Estado é ilegítimo, mesmo com eleições
e demais ritos burgueses. Representantes dessas tendências estão no PT. Existem
também os trotskistas, que postulam a luta revolucionária no plano
internacional. Daí sua suspeita contra o PT e o sindicalismo nacionalista que o
inspira. Alguns remanescentes da Quarta Internacional desconfiam de Lula: ele
seria um líder pré-fabricado (José Nêumanne Pinto esclarece o tema em O que Sei
de Lula). Os herdeiros de Trotski representam setores críticos contra os
dirigentes partidários. PSTU e PSOL formalizam expulsões ou rupturas com o
partido. Mas não poucos trotskistas, a exemplo de Palocci, se acomodam à burocracia
partidária. Tal fusão heteróclita é relevante na construção do poder interno do
petismo.
Também na origem do PT estão as formas da cultura católica de esquerda. Boa
parte desse setor se forma nos anos 1960, quando a Igreja modifica seus elos
com a sociedade capitalista nas encíclicas sociais e no Vaticano 2, sobretudo a
declaração conciliar Gaudium et Spes. Nos inícios daquela década surge a Ação
Popular (AP), inspirada nas ideias de Teilhard de Chardin e de Hegel, lidos
pelo jesuíta Henrique Vaz. Ela opera com as ações juvenis católicas
especializadas (JEC, JUC, JOC). A máxima expansão do movimento dá-se antes de
1964, quando a presidência da UNE é conquistada por José Serra. Após o golpe a
Ação Católica sofre uma "intervenção branca" da CNBB e a AP perde seu
elemento de mobilização política. Após o Congresso da UNE em Ibiúna, e com as
guerrilhas, a AP deixa de ser estratégica para os religiosos. Com seu
desaparecimento os católicos não estabelecem partido próprio, anseio que vem
desde o Império. Os militantes e intelectuais cristãos encontraram no PT a
oportunidade de agir num coletivo político não comunista e livre da Igreja, que
na época sofre o Termidor dirigido por João Paulo II.
O PT é uma bricolagem de segmentos diferentes, um campo de lutas interno e
externo. O equilíbrio de vários modelos, desejos, paixões, idiossincrasias, é
nele muito difícil. A luta entre tendências conduz a direção ao uso do segredo
contra as bases, aos atos impostos verticalmente, às alianças alheias ao
espectro ideológico indicado no programa. O PT foi produzido como alternativa
política para setores da esquerda, dos antigos comunistas aos católicos.
Conduzir um programa unitário com tantas divergências doutrinárias e
imaginários distintos é um desafio.
O PSDB teve sua origem no PMDB e foi liderado por setores políticos da
esquerda marxista, mas também acolhendo intelectuais católicos de origem (caso
de José Serra) e acadêmicos cuja produção teórica se desenvolveu fora dos
parâmetros filosóficos do chamado "materialismo histórico e
dialético". Já na ditadura civil-militar foi instaurado o Cebrap, think
tank que até hoje possui relativa força na orientação programática tucana.
Espécie de laboratório social e universitário, ele gera ideias, táticas e
estratégias do partido. Sua figura maior é Fernando Henrique Cardoso, político
hábil e pesquisador com ideias próprias. Sua colaboração para a "teoria da
dependência"o tornou conhecido nacional e internacionalmente, dando-lhe
credenciais para a carreira de governante.
Os dois partidos, na Presidência da República, se renderam à lógica do
conservadorismo que rege os tratos entre o poder central e as regiões
brasileiras, dominadas por oligarquias truculentas e corrompidas. Ambos
precisaram rasgar os alvos éticos em proveito da "arte do possível"
(o termo é de Bismark). Nas alianças pela "governabilidade", as duas
agremiações sacrificaram no altar do realismo político seus programas
anteriores, de esquerda ou centro-esquerda. Oligarcas notórios (ACM, Sarney,
Jader Barbalho, Quércia, Maluf, para citar apenas alguns) serviram aos dois
partidos e deles se serviram ao longo dos 16 anos de administração
tucano-petista. Ficam os eleitores paulistanos com a tarefa de fornecer alento
suplementar para as duas siglas. Essas, em nome do poder, desfiguraram suas
propostas originais para a sociedade. Esperemos que, depois do aperto sofrido
por ambas, elas repensem táticas e estratégias, tornando-se menos dependentes
das raposas que ainda dominam a política nacional e paulista.
Professor de Ética e Filosofia na Unicamp, autor de O Caldeirão de Medeia (Perspectiva)
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