terça-feira, 9 de outubro de 2012

O partido: uma crônica (Iuri Müller)

As bandeiras vermelhas fizeram parte da minha infância. Tremulavam nas ruas em tempos de eleições, em Santa Maria, em Porto Alegre. Eram centenas e às vezes milhares. Traziam a estrela do Partido dos Trabalhadores, traziam os nomes de Lula, Tarso, Olívio, Valdeci. Tremulavam também nas janelas dos carros, em largas carreatas que cortavam os bairros de Santa Maria – regiões da cidade que eu nunca havia passado antes, lugares que pareciam receber muito bem aquela movimentação toda. Havia quem acenasse das casas, quem tirasse o carro da garagem para se juntar aos festejos. Com mais bandeiras vermelhas.
Em anos não eleitorais, as bandeiras seguiam presentes em algum lugar da casa. Em posição de descanso, quem sabe de vigília: carregavam as recordações do último pleito, dos comícios e das noites de vitórias ou de desilusões. Anos ou meses depois, deixariam o conforto das paredes para retornarem ao cansaço das campanhas eleitorais. Imaginei que essa seria a realidade do cotidiano político. Mas é claro que uma criança de onze anos entendia muito pouco daquilo tudo: sobre quem eram as figuras para as quais gritávamos, sobre as complexidades de uma conjuntura política. Mas, entre a incompreensão e o desconhecimento, me julgava petista, igual.
No colégio de classe média-alta em que estudava, éramos poucos que nos identificávamos assim: três ou quatro apenas, nos primeiros anos em que se começava a discutir política dentro da sala de aula. Não sei quem compreendia menos do processo todo, mas o grosso dos fatos parecia bem assimilado mesmo para os delinquentes juvenis: Lula poderia enfim ser eleito presidente do Brasil, Fernando Henrique Cardoso entregaria o mandato após privatizar metade do país, em Porto Alegre uma multidão de jovens (nós ainda éramos crianças) latino-americanos montavam barracas no tal do Fórum Social Mundial. Nós acreditávamos que o Brasil estava mudando; todos os demais sustentavam que estávamos loucos e que faltava pouco para a consagração do caos.
O petismo naqueles tempos não surgia do vazio: no meu caso, era a aceitação do discurso de uma mãe professora, de uma avó paterna igualmente apegada ao magistério e de certa desconfiança em relação aos jornais que, me parecia, tratavam aquelas mudanças todas com muita superficialidade. Mas é claro que a força das bandeiras podia mais: estar quase que sufocado em meio a um vendaval de panos vermelhos numa praça era uma experiência fascinante. Como também empolgavam os debates realizados em locais públicos, onde os que governavam sempre pareciam até amedrontados com os gritos e canções que partiam do nosso lado. O desfecho natural, acreditava eu, seria crescer, compreender de fato aquele envolvimento e seguir empunhando a bandeira vermelha.
Não ousaria tentar explicar a crise do PT contemporâneo através da minha curta história de vida: o fato é que, não de uma hora para outra, os gritos murcharam, as bandeiras rarearam, os comícios se esvaziaram, os nomes perderam força. Não se trata de uma decepção linear, não se trata de uma crise qualquer. Mas os resultados eram visíveis na rua e quem poderia ter se tornado um militante talvez não o fizesse porque faltavam motivos para crer. Quatro anos de Jornalismo na universidade e algum envolvimento com o Movimento Estudantil reforçaram as dúvidas, afastaram-me dos símbolos. Ainda que fosse impossível deixar de acompanhar de perto as alterações de rumo, as alternativas que surgiam, a ampla coalizão polítca que toca um projeto – hoje questionável – de Brasil.
No último domingo, um domingo de eleição, reencontrei a minha mãe depois de um par de semanas. Ela trazia um adesivo do PT na blusa, apesar de ter passado a campanha inteira afastada de qualquer mobilização. Fez-se o seguinte diálogo:
- Adesivo numa hora dessas?
- Sou fiel ao meu partido.
- Ele não foi exatamente fiel a ti, acho que vocês merecem ao menos um relacionamento aberto.
- Ainda assim, como não votar no PT aqui em Santa Maria?
No dia seguinte às eleições municipais (Fortunati abençoado em primeiro turno, Russomano fora do páreo, Freixo com a sua derrota mais do que digna, Schirmer outra vez eleito na província), a Zero Hora não escondeu os seus sorrisos para publicar um gráfico: desde a eleição de Tarso Genro para a Prefeitura de Porto Alegre, em 2000, a votação do Partido dos Trabalhadores não deixou de diminuir na Capital. Ontem, Adão Villaverde alcançou menos de 10% dos votos e o PT estreou o sentimento de não estar presente nem em um segundo turno eleitoral. Pela trigésima vez, surge a mesma constatação, que talvez persista infinitamente por um estranho gesto de autoengano: algo grave ocorreu, certa mudança grande aconteceu.
Tanto tempo depois, não sei o que fiz com as minhas bandeiras. Sim, tive mais de uma. Uma tradicional, com o fundo vermelho, a estrela amarela, as duas letras pintadas de preto. E outra, confeccionada talvez nos últimos suspiros da década de 1990, com o retângulo branco e a estrela vermelha, sem inscrições. Não vou procurá-las, mas sei que ainda estão dentro de casa: não me mudei nesses anos todos, e confesso que tampouco deixei de votar no PT nas últimas eleições. De todo modo, existem outras bandeiras, assim como existe muito mais além da política tradicional. Assim como devem existir mil crônicas perdidas por aí, perdidas no esforço de se explicar o PT, o que ocorreu com o partido, o que aconteceu conosco.

Um comentário:

  1. Porto Alegre me surpreendeu... sempre ouvi dizer que era a cidade mais politizada do Brasil, e para minha surpresa (negativa), constatei uma baita ignorância do povo, que afirmavam nas ruas, supermercados, clubes, parques, que não votariam na Manuela pois ela é nova. Manuela teve que gravar várias propagandas na televisão citando casos de prefeitos eleitos novos... mas tudo em vão... em contrapartida, os Portoalegrenses elegeram o judoca João Derly como vereador com mais de 14 mil votos, sendo o segundo mais bem votado na capital.... e ai pergunto.... onde está a experiência neste vereador?

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