segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Eleição é uma catástrofe (Renato Janine Ribeiro)


Eleições democráticas são catástrofes - só que previstas e controladas. Isso explica por que podem suscitar um certo medo. Foi meu caso, confesso: temi a ascensão, que parecia resistível, mas irresistida, de Celso Russomanno à prefeitura de São Paulo. Nada tenho contra ele pessoalmente, mas temi a vitória de um candidato menos preparado, com propostas vagas e algum apelo autoritário.
Também senti medo nas primeiras eleições após a ditadura. Afinal, levaram Collor à Presidência; no Estado e na cidade de São Paulo, elegeram governantes próximos do regime autoritário. Mas desde 1994 no Brasil, desde 2002 no Estado e desde 2000 na cidade em que vivo, não senti mais medo de quem ganhasse as eleições. Tenho minhas preferências a cada pleito, mas não veria ameaça à democracia, em 2010, se elegêssemos presidente Marina Silva ou José Serra.
Uma eleição é uma catástrofe controlada, repito. Mal comparando, é uma vacina. Vacinas podem produzir efeitos parecidos aos da doença para a qual elas existem. Só que os produzem de modo contido, reduzido, com a finalidade de proteger-nos dela. Uma eleição é assim. A certa altura, tudo parece possível, inclusive a destruição do que existe. Direitistas temem a demagogia, o confisco dos bens, uma tributação mais elevada. Esquerdistas receiam o fim dos programas sociais, a truculência policial contra os movimentos reivindicatórios. Daí, os medos. Para proteger sua riqueza, a burguesia evitou o sufrágio universal ao longo do século XIX. Acreditava que, se todos votassem, a maioria de pobres aprovaria leis que, reduzindo a desigualdade social, tirassem parte de sua riqueza. Para isso, também se valeu dos Senados. Como essa câmara revisora costuma ter mandato mais longo, podia retardar a aprovação de leis populares. Isto é, se o povo votasse pela redistribuição de renda, precisaria renovar a decisão daí a mais quatro anos, a fim de ter também o Senado do seu lado.
O fantasma da destruição aparece no magnífico livro de Georges Bataille, "O erotismo". Em certas sociedades do Oriente, diz ele, quando morria o rei seguiam-se cinco dias sem lei. Roubava-se, fazia-se sexo sem levar em conta as proibições. Depois, assumia o novo monarca. Ninguém era punido pelos dias de anomia. Eles eram uma espécie de carnaval, em que os interditos estavam levantados. Mas talvez esse intervalo desse novo vigor à ordem institucional. Porque as pessoas tinham vivido essa liberdade sem limites, talvez com prazer, mas depois com saciedade.
Talvez um poder precise - para ser legítimo, para convencer o povo de que ele vale a pena - passar assim pelo risco. Quem sabe, até pelo risco de um quase-aniquilamento. Pode parecer estranho, numa coluna sobre política, eu falar de morte, mas não podemos esquecer que ela é nosso destino, que ela é a única certeza. Os Estados são também mortais, embora possam alongar a duração de sua vida indefinidamente - mas um dia hão de morrer. Quando, a cada quatro ou cinco anos, vivemos uma pequena morte deles, conseguimos encompridar sua vida. É como se, a cada eleição, renovássemos sua apólice de vida. Pode ser que mudemos tanto o Estado que ele renasça como uma fênix, o pássaro mítico que se imolava numa fogueira cada quinhentos anos para daí ressurgir, novo em folha. Pode ser que apenas concedamos um novo mandato ao que já existia. Mas passar pelo risco é fundamental.
Isso, porque nos últimos séculos se tornou norma um regime político que, por milênios, foi desconhecido ou existiu de forma apenas residual: o dos governos eleitos. Ele permite que a oposição chegue ao poder. Antes, isso só era possível aliciando o herdeiro do trono. Não foi raro. Na Inglaterra, Ricardo Coração de Leão se rebelou contra o pai. A herdeira Maria Stuart foi executada para não ameaçar a rainha Elisabeth. Finalmente, o filme "A loucura do rei George" mostra bem o ódio que podia existir entre o pai rei e o filho herdeiro. A oposição apoiava o príncipe contra o rei, ou o príncipe montava um partido contra o próprio pai. Mas nunca se sabia em que data se daria a sucessão. Em suma, alterar o governo era quase um golpe de Estado.
Não vamos esquecer que, para levar em conta só o último meio século, vimos muitos nascimentos - e mortes - de Estados. Primeiro, as antigas colônias europeias conquistaram a independência. Mas também alguns países deixaram de existir, sobretudo em função da queda do comunismo. Tchecoslováquia, Iugoslávia e União Soviética se dissolveram, enquanto a Alemanha Oriental se extinguia. Estados podem morrer. As duas uniões, governadas de Belgrado e Moscou, se desfizeram com grandes danos - milhares morreram, milhões caíram na miséria. Por isso é importante tentar garantir a vida dos Estados.
Uma das conquistas da democracia é que a oposição - que no passado podia ser punida com a pena de morte, sendo confundida com a traição ao rei - se tornou algo não apenas aceito, mas essencial para os regimes políticos que pretendam ser legítimos. Mesmo assim, o momento em que o poder é posto em jogo constitui um risco, ainda que atenuado, de morte. É uma morte regrada. Existem regras para disputar o poder. É uma morte reversível. O candidato ou partido derrotado terá nova chance daí a alguns anos. E, mais importante que tudo, é uma morte-vacina. Porque ela nos vacina contra a morte do Estado. Justamente porque o governo muda sem enormes traumas, o Estado permanece. O Brasil é nosso país, seja governado pela direita ou pela esquerda. E assim, sabendo embora que nosso Estado é mortal como nós, vamos conseguindo uma sobrevida para ele, mandato após mandato.
Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.
Fonte: Valor Econômico

Nenhum comentário:

Postar um comentário