O Prêmio John W. Kluge, de 2012, concedido pela Biblioteca do Congresso, de Washington, ao sociólogo Fernando Henrique Cardoso, é-lhe outorgado "por uma vida de realizações no campo dos estudos humanísticos e das ciências sociais que não são abrangidos pelo Prêmio Nobel". Foi intenção do falecido magnata da comunicação, que dá nome ao prêmio e o criou, equiparar essa premiação à concedida pela Academia Sueca, fixando-o no montante equivalente, que é de US$ 1 milhão. Fernando Henrique Cardoso é o primeiro sociólogo e o primeiro brasileiro a recebê-lo. Anteriormente, foram premiados quatro historiadores, dois filósofos e um teólogo, sendo dois americanos, um francês, um irlandês, um polonês, um chinês e uma indiana.
O comitê do Prêmio Kluge ressaltou na obra de Cardoso o equilíbrio da profundidade da análise em relação com a evidência empírica. Ele é o primeiro ganhador do prêmio cuja obra científica é marcada pela interdisciplinaridade, abrangendo a sociologia, a ciência política e a economia, de que resulta uma análise sociológica original e profunda. No anúncio da premiação, o diretor da Biblioteca do Congresso ressaltou: "Sua aspiração fundamental é a busca da verdade sobre a sociedade do melhor modo que possa ser determinada, ao mesmo tempo que permanece aberto à revisão de conclusões na medida em que novas evidências se acumulam em decorrência de novas pesquisas ou de mudanças na realidade política e econômica".
Como ocorre com o Prêmio Nobel, a premiação de Cardoso é reconhecimento da qualidade da produção científica no Brasil na área das ciências sociais. Sua obra é o coroamento da linha de trabalho científico da chamada "escola sociológica paulista", que resultou da contribuição de cientistas como Claude Lévi-Strauss, Roger Bastide, Florestan Fernandes, Antônio Candido, Gioconda Mussolini, entre outros, da maioria dos quais Cardoso foi aluno e com os quais trabalhou.
Na obra de Fernando Henrique Cardoso, a interdisciplinaridade permitiu-lhe tratar de maneira criativa a diversidade histórica da sociedade brasileira e seu desenvolvimento desigual. Sua tese de doutorado sobre Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional é um marco na adoção do método dialético em estudos sociológicos. Ele conseguiu estabelecer, com originalidade, a relação entre capitalismo e escravidão, apesar do desencontro histórico que os opõe, e articular um caminho para a compreensão sociológica das determinações profundas de nosso crônico atraso social, político e econômico.
Por essa época, um dos temas dos cientistas sociais brasileiros era o do nosso atraso, o que chamavam de resistências à mudança. O grupo de Florestan Fernandes, na USP, do qual Cardoso fazia parte, dedicou-se aos diferentes agentes dessa resistência - operariado, jovens, Estado, empresariado. Coube a Cardoso realizar a pesquisa sobre os empresários e conhecer como eles próprios compreendiam mal seu papel histórico no desenvolvimento brasileiro. Ele termina seu livro sobre Empresário Industrial e Desenvolvimento Econômico com uma indagação que expõe o problemático impasse do Brasil de então e é o elo com seus estudos posteriores sobre a dependência: subcapitalismo ou socialismo?
Obrigado ao exílio no Chile pelo golpe de Estado de 1964, compreendeu que a nova realidade política e econômica, que se tornava a de toda a América Latina, pedia reinterpretação sobre as leis e tendências na cambiante situação histórica. Com Enzo Faletto, desenvolve uma das interpretações teóricas da chamada dependência. No seu entender, a dependência não fechava o caminho ao desenvolvimento econômico num cenário de consolidação do mercado interno e de globalização da economia. Ainda havia na situação de dependência lugar para uma práxis desenvolvimentista e transformadora, para crescimento econômico e desenvolvimento social. Sua versão da teoria, que se tornou referência de pesquisadores em muitos países, é um dos pontos destacados em sua biografia intelectual pelo comitê do Prêmio Kluge.
Uma característica da obra de Cardoso é a do conhecimento sociológico sobre a competência social de cada categoria para no conjunto da sociedade traduzir suas possibilidades históricas em realidade política, na construção da nação moderna e democrática. Ressalta a nota da premiação que o acerto de suas análises se confirmou na política modernizadora que imprimiu ao Estado quando ocupou a Presidência da República e na continuidade política que suas ações tiveram nos governos que o sucederam. Florestan Fernandes, seu professor, dizia que, não sendo a sociologia uma ciência experimental, a verificação do acerto de suas análises se dá na política.
No anúncio da premiação de FHC e na enumeração das razões em que se baseia, o diretor da Biblioteca do Congresso expõe uma biografia intelectual que em boa parte lembra o título de um livro de Max Weber, decisivo na formação de Fernando Henrique Cardoso: Ciência e Política - Duas Vocações, a vocação como chamamento e missão.
JOSÉ DE SOUZA MARTINS, SOCIÓLOGO, PROFESSOR EMÉRITO DA USP, É AUTOR DE UMA ARQUEOLOGIA DA MEMÓRIA SOCIAL: AUTOBIOGRAFIA DE UM MOLEQUE DE FÁBRICA (ATELIÊ EDITORIAL)
Fonte: Estadão/Álias (20/05/12)
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