O Supremo falou: as políticas de ação
afirmativa são constitucionais. Elas consistem em tratar desigualmente os
desiguais, por um tempo e como meio, para que se consiga um fim fundamental,
que é promover a igualdade de direitos entre as pessoas. A unanimidade na
decisão é um sinal de que a sociedade brasileira, pelo seu maior tribunal, opta
pela inclusão social dos grupos que, ao longo da história, foram discriminados
negativamente.
Mas vale a pena ver algumas implicações
de longo prazo da decisão do STF. Comentei na semana passada que o Supremo dá
mais valor a direitos humanos do que aos políticos. Nossos juízes compreendem
melhor os direitos que têm pessoas - individuais ou mesmo muitos indivíduos -
como titulares do que os que têm a pólis, a sociedade inteira como sujeito: por
exemplo, o direito ao que se chama "democracia", o poder do povo.
Conta-se que certa vez Fernando Henrique Cardoso teria reclamado de uma
sentença do Supremo, má para as finanças governamentais, dizendo que "eles
não pensam no Brasil". Mudando o contexto, eu poderia sugerir que os
ministros pensam mais nos brasileiros do que no Brasil. Os brasileiros são
titulares dos direitos humanos. Estes têm sido tratados com esmero por nossa
corte suprema. Já o Brasil é a sociedade democrática que estamos construindo. A
esse respeito, o STF parece ter menos convicções. Tolerou, como observei aqui,
a concessão de dois governos estaduais a candidatos derrotados nas urnas. Se a
reflexão dos ministros desse à questão da democracia a atenção que tem dedicado
aos direitos humanos, isso não teria acontecido.
Talvez pela mesma razão, salvo erro
meu, os ministros não basearam seus votos sobre a ação afirmativa no artigo 3º
da Constituição, que define os "objetivos fundamentais" de nossa
sociedade. O Brasil assim se propôs em 1988 a "construir uma sociedade
livre, justa e solidária" e a "erradicar a pobreza e a marginalização
e reduzir as desigualdades sociais e regionais". Durante os primeiros anos
de vigência da Constituição, esses pontos ficaram de lado. O salário mínimo não
subia sequer o mesmo que a inflação, contrariando o artigo 7º da Carta, que diz
quais necessidades do trabalhador ele deve atender. Mas os "objetivos
fundamentais" do país foram se implantando. Por exemplo, é meta do Brasil
a integração latino-americana (artigo 4º). Disso, podemos sugerir que o
Mercosul e ações análogas sejam imperativo constitucional. Se um governo quiser
sair dele sem razões muitíssimo boas, o Supremo poderá impedi-lo. Ou, se
tivesse pretendido participar da invasão do Iraque, a corte suprema poderia tê-lo
proibido, dado o princípio constitucional da não-intervenção. Não quer dizer
que o Brasil não possa travar guerra alguma, nem ter conflitos políticos com os
países vizinhos; mas isso teria de ser bem justificado.
Entendo que as ações afirmativas visam
a erradicar a desigualdade acentuada. Aliás, a Constituição manda erradicar,
não só a miséria, mas a pobreza. Simplificando, é pobre quem vive da mão para a
boca. Poupa ou progride pouco. Tudo o que ganha vai para sua sobrevivência. Já
o miserável, trabalhando ou sem emprego, corta na própria carne. Alimenta-se de
suas reservas físicas. Degrada-se. Está abaixo da linha de sobrevivência. Até
se entenderia que a Carta priorizasse o fim da miséria. Mas ela não quer
erradicar só esse traço indecente de nossa sociedade. Ela propõe
"erradicar a pobreza". A Constituição quer uma sociedade brasileira
de classe média. Quando a presidente Dilma disse que esse era seu objetivo,
expressava a meta dos constituintes de 1988. Eles não quiseram o fim dos ricos.
Mas propuseram o fim da pobreza. Todos devem ter direito de ascender na vida e
de, poupando, adquirir bens duráveis. Se o farão, é outra coisa; mas a
sociedade deve dar-lhes oportunidade para isso, de modo que, se não o
conseguirem, tenham que culpar somente a si mesmos.
Exige-se, do governante, que aja para
reduzir a desigualdade injusta. É o que fundamenta - e limita - as ações desse
tipo. Quando se tornarem desnecessárias, não deverão persistir; mas não antes
disso. Assim, se é lícito adotar ações que ampliem a presença social de negros,
mulheres e egressos de escolas públicas, por outro lado serão inconstitucionais
medidas legais que direta ou mesmo indiretamente aumentem o protagonismo de
brancos, varões e formados por escolas caras. Evidentemente, ninguém colocará
isso às escâncaras; mas nosso país é perito em subsidiar os ricos e a classe
média em programas ditos sociais, que aumentam, em vez de diminuir, a
desigualdade. Parece-me legítimo interpretar a parte programática da
Constituição de modo a determinar ações dos gestores públicos, em especial,
penso eu, a das prefeituras.
Há dias, Laura Capriglione informou, no
jornal "Folha de S. Paulo", que a Prefeitura de São Paulo gasta
"per capita", no Jardim Europa, o dobro do que despende em bairros
pobres e necessitados da cidade. A Constituição permite contestar essa
política. É até plausível contestar políticas que, mesmo não agravando a
miséria, não a minorem. Talvez as consciências ainda não estejam maduras para
isso. Mas acredito que em breve, se os poderes eleitos na cidade ou no país não
explicitarem políticas de redução da pobreza, sobretudo a extrema, serão
cobrados para tanto, pela opinião pública, pelo voto popular e também pelo
Ministério Público e o Judiciário. Desde já, deveríamos exigir que cada plano
diretor diga como vai melhorar a condição de vida dos pobres. Leis ou atos que
aumentem a distância entre quem mora bem e quem mora mal devem ser declarados
inconstitucionais.
Renato Janine Ribeiro é professor
titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.
Fonte: Valor Econômico
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