terça-feira, 29 de maio de 2012

A armadilha do mensalão (Raymundo Costa)


Lula deixou a Presidência da República bem avaliado como nenhum outro presidente antes dele, tanto que elegeu a sucessora até como certa facilidade. O sucesso eleitoral, aparentemente, teve um efeito perverso sobre o ex-presidente. Lula é popular, acertou nas medidas contra a crise de 2008 e praticamente nomeou seu sucessor no Palácio do Planalto. Mas nada disso assegura ao ex-presidente o dom da infalibilidade, como parecem acreditar parte do PT, de seus auxiliares no Instituto Lula e ele mesmo, a julgar por seus últimos atos.

Lula abusa de seu prestígio, segundo se avalia entre os amigos mais próximos, aqueles que não consideram dogma cada afirmativa do ex-presidente. Já há algum tempo Lula tem "exorbitado" e tomado decisões sem se importar com opiniões saídas do seu entorno. Pouca arbitragem, muito arbítrio. Como acertou antes e é popular, tem crédito junto à banca. Mas isso não quer dizer que esteja sempre certo, como demonstram as principais decisões tomadas por ele desde que deixou o Palácio do Planalto.

A última foi a iniciativa de conversar reservadamente com ministro Gilmar Mendes, ex-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), no escritório do ex-ministro da Defesa Nelson Jobim. Especialmente se foi para tratar, de fato, do adiamento do julgamento processo do mensalão, previsto para começar em agosto e se estender durante parte do período eleitoral.

PT reclama que Lula "exorbitou" no caso Gilmar Mendes

Pouco importa se a iniciativa da conversa foi de Lula - como publicado - ou de Gilmar, como sugerem os petistas (a ideia de que o encontro foi casual ofende a inteligência alheia). O PT e o ministro do Supremo têm um longo contencioso que não recomendava nenhum tipo de conversa secreta neste momento, quando o picadeiro que se arma em Brasília é para abrigar o espetáculo do julgamento do mensalão - seja em casas alugadas por acusados, pelo trânsito frenético de advogados autorizados no processo ou pelas insinuações que jorram aos borbotões da CPI do Cachoeira e excitam a imaginação dos mais crédulos.

Gilmar nunca foi propriamente um entusiasta dos governos do PT, e chegou a ser acusado de pedir vistas a um processo, nas eleições de 2010, a pedido do candidato tucano José Serra. Em geral, diverge por convicção. É até difícil imaginar a razão que o teria levado a relatar a conversa com Lula ao presidente do Supremo, Ayres Brito, ao procurador-geral da República, Roberto Gurgel e ao advogado-geral da União, Luiz Inácio Lucena Adams, se não fosse para se preservar.

Não há nada ilegal no fato de Lula e Mendes terem uma conversa reservada. Mesmo que nessa conversa tenha-se abordado o a conveniência de adiar o julgamento do processo do mensalão, já que é real a possibilidade de o ambiente de disputa eleitoral, no segundo semestre, de alguma maneira, contaminar a votação. O momento (da conversa) é que é inconveniente. O que de maneira nenhuma pode ser considerado admissível é tentativa de influenciar, mediante outros pretextos que não o bom argumento, a decisão de um juiz da suprema corte, como Gilmar declarou. O que falta em relação à conversa entre Lula e Mendes é clareza, transparência. Uma coisa é certa: os dois achavam que tinham algo a dizer ou ouvir do outro, ou simplesmente queriam saber o que o outro tinha a falar, tanto que resolveram se encontrar.

Na sexta-feira 25, havia uma expectativa favorável ao adiamento do julgamento, entre alguns dos 38 acusados remanescentes do mensalão (da "Quadrilha dos 40" denunciados pelo Ministério Público Federal, um morreu e outro fez acordo). Ontem, havia desolação. A revelação da conversa entre Lula e Gilmar Mendes provocou a reversão de sentimento dos mais esperançosos. Independentemente de Lula, advogados haviam registrado impressão de que havia, entre ministros do Supremo, inquietação quanto ao fato de o julgamento do processo do mensalão ocorrer às vésperas do período eleitoral. Agora, o STF parece sem outra saída a não ser julgar logo, como previsto.

Uma decisão perigosa, não só por misturar Justiça e política. José Dirceu, apontado pela Procuradoria Geral da República como sendo o "chefe da quadrilha" dos 40, tem repetido a quem quiser ouvir que não quer "um julgamento que seja político", quer "um julgamento técnico". Segundo Dirceu, um julgamento político vai "deslegitimizar" a decisão do STF. Por outro lado, é lamentável que o PT e dirigentes da CPI continuem insinuando que "surgirão fatos" na comissão de inquérito capaz de abalar o Judiciário. Ou a CPI abre o jogo, ou para de fazer sugestões sobre um inquérito cujo teor é desconhecido até dos acusados.

O envolvimento de Lula numa suposta tentativa de adiar o julgamento é mais uma das "exorbitâncias" apontadas no PT e, com mais loquacidade, entre os aliados. Outra é a forma como retirou a senadora Marta Suplicy da disputa a prefeito de São Paulo. A ex-prefeita, nome mais bem cotado no PT, segundo as pesquisas, foi avisada de que estava fora por meio de uma auxiliar do ex-presidente da República. Ela não gostou, fingiu que aceitou o "dedaço" de Lula e agora não perde oportunidade para boicotar a pré-campanha de Fernando Haddad, o nome escolhido pelo ex-presidente.
Haddad pode ganhar a eleição, o que certamente os áulicos do ex-presidente dirão que é mais uma prova de sua clarividência e genialidade político-eleitoral. O problema não é esse, para quem tem que carregar um candidato pesado e tentar jogá-lo no segundo turno. O problema é que Lula não ouviu ninguém para indicá-lo.

Lula também ajudou na criação da CPI do Cachoeira. Estimulou deputados que o procuraram, para saber o que fazer, a assinar o requerimento. A CPI então parecia conveniente ao PT, embaralhava o julgamento do mensalão, levava o senador Demóstenes Torres ao patíbulo e ainda criava dificuldades políticas para o governador de Goiás, Marconi Perillo (PSDB), desafeto do ex-presidente da República. Bom demais para ser verdade. Coisa de amador.

Valor Econômico
29/05/2012 

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