Um lugar comum da análise política, de que CPIs sabe-se como começam, mas não como terminam, acaba de confirmar-se cabalmente. O curioso é que a movida crucial do tabuleiro não se deu por um ator em princípio diretamente ligado à CPI do turno, mas por um agente externo: o ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes. Afirmou ele à TV Globo: "Eu entendi, depreendi desta conversa, que ele estava inferindo que eu tinha algo a dever". É muita hipérbole para uma denúncia de tamanha gravidade.
De qualquer modo, a despeito do estupefato causado, alguns elementos deste enredo não são nada novos. Ao revelar ter sido supostamente alvo de chantagem por parte de um politicamente ativo ex-presidente da República, o magistrado reiterou um padrão de conduta que marcou sua trajetória à frente da Corte Suprema do país.
Primeiramente, apresentou-se de novo como campeão do Estado de Direito contra ataques supostamente desferidos por um líder carismático pouco afeito a formalidades. Tal postura marcou a passagem de Mendes pela presidência do STF, quando bradou contra excessos de Lula como presidente-em-campanha em prol da eleição de sua pupila. Em outubro de 2009, observou: "Estão testando a Justiça Eleitoral e o Ministério Público Eleitoral. É uma situação que, se se tornar repetida e sistêmica, há de merecer reflexão. É uma viagem feita com recursos públicos. Nem o mais cândido dos ingênuos acredita que isso é uma fiscalização de obras". Conclamava a Justiça Eleitoral a perscrutar os passos do presidente e sua candidata, falando da cadeira de juiz em termos próprios a um promotor.
Em segundo lugar, Mendes sempre foi um juiz loquaz, dentro ou fora dos autos, mas normalmente de forma crítica ao governo Lula e a seus procedimentos. Partiu dele a sugestão de que a oposição questionasse a licitude da troca de partido, num momento em que ela sangrava com a debandada de parlamentares para as agremiações conservadoras da base governista. Disse, numa sessão em que se discutia outro tema (a cláusula de barreira), em dezembro de 2006: "Se considerarmos a exigência da filiação partidária como condição de elegibilidade e a participação do voto de legenda na eleição do candidato, tendo em vista o modelo eleitoral proporcional adotado para as eleições parlamentares, essa orientação que admite não haver reflexo no mandato quanto à opção por uma nova agremiação partidária afigura-se amplamente questionável. Assim, a meu ver, o abandono de legenda deveria dar ensejo à perda de mandato". Logo depois, o PFL consultou o TSE sobre o tema - logo ele, partido tão beneficiado pelo troca-troca partidário à época em que era base de Fernando Henrique Cardoso.
Tendo Gilmar Mendes se destacado como o "líder da oposição no STF", sua disposição para embaraçar Lula neste momento não surpreende. Seu oposicionismo se coaduna com a intempestiva revelação do alegado fato apenas mais de um mês depois do ocorrido. Um timing como esse é mais propício à estratégia política que ao zelo republicano. Ademais, pode-se questionar: não seria dever legal do magistrado ter de imediato denunciado o suposto achaque? Submetida a chantagem, mas sem qualquer responsabilidade pública, Carolina Dieckmann foi mais rápida.
Lula, por seu turno, deve ter notado quanto seu estímulo à criação da CPI pode ter-se mostrado uma ação temerária. Mais do que isto: político ativo que é, empenhado na campanha eleitoral deste ano, não poderá furtar-se - mais cedo ou mais tarde - a dar de viva voz sua versão do ocorrido. Postar-se olimpicamente acima disto seria possível para um ex-presidente de pijamas, mas não para um que se empenha em seguir influente. Ora, se a versão da "Veja" é - como alega a nota da assessoria do ex-presidente - "inverídica", mas Gilmar Mendes a confirmou depois também à "Folha" e à "Globo", então alguém mente. Ou, pelo menos, distorce os fatos.
O imbróglio engolfou também a Nelson Jobim, patrocinador do encontro. Indicado ao Supremo por Fernando Henrique, de quem fora ministro, atuou na Corte por cinco anos, ainda durante a gestão tucana; presidente do STF já durante o governo Lula, aposentou-se da magistratura e foi, depois, incorporar-se ao ministério do petista. Assim como Mendes, em seus nove anos na Corte Jobim foi um ministro do Supremo ativista e loquaz, embora nem oposicionista, nem governista. Afinal, mais do que uma agenda partidária, Jobim tinha uma agenda própria. Ironicamente, a confusão lhe atingiu justo no momento em que iniciava de forma mais aberta um processo de construção de seu nome como uma possível alternativa do PMDB para as próximas disputas presidenciais. Poucas situações lhe seriam tão constrangedoras quanto esta, de ter de desmentir seu ex-colega de toga, porém dizendo que não formula juízo sobre quem diz a verdade no caso. Seja como for, única testemunha do encontro, até agora Jobim sustenta a posição de Lula, não a de Mendes.
Já para os oposicionistas assumidamente partidários, os do Congresso, a situação é de deleite. No momento em que a CPI dava sinais de que em vez de pizzas, enviaria tucanos ao forno, surge um evento retumbante que coloca petistas na defensiva. Em vez de apenas acuar seus adversários, passam a ter de defender seu líder máximo, apresentando suas credenciais de político que sempre respeitou a via institucional, rejeitou a tese do terceiro mandato etc. Com efeito, a jogada de Mendes logrou gerar algo novo no embate partidário. Pela primeira vez, desde 2002, Lula deixa de ser um trunfo para o PT, convertendo-se num peso. Até à época do mensalão ele pôde colocar-se antes como vítima de traições do que como promotor dos malfeitos. Esta mudança de status só aumentará a pressão sobre o ex-presidente, para que dê pessoalmente sua versão dos fatos. Caso não o faça, o peso da suspeição sobre si se fará sentir ao longo dos próximos meses, contagiando não só a CPI e o julgamento dos réus do mensalão, mas as eleições municipais. Lula corre o risco de sair deste processo menor do que entrou.
Cláudio Gonçalves Couto é cientista político, professor da FGV-SP
FONTE: VALOR ECONÔMICO