Os "ismos" políticos têm sido comuns na América Latina: peronismo na
Argentina, getulismo no Brasil, priismo no México. Designam momentos.
Manifestações de populismo que, nos tempos da 2ª Guerra Mundial, eram a
forma limitada de participação do povo no processo político. O oposto
dos tempos da dominação oligárquica, da cidadania seletiva e restrita.
Os trabalhadores atra-vessariam ainda os tempos da Guerra Fria cerceados
nessa forma limitada de manifestação política, expressando-se na
palavra de quem trabalhador não era, os burocratas da intermediação
política e sindical.
Quando terminou a Guerra Fria, com o fim da União Soviética, a América
Latina se viu politicamente enriquecida pela ascensão de partidos e
grupos políticos que expressavam acima de tudo o querer de populações
socialmente residuais, as que não dispuseram antes de canais próprios de
expressão da vontade política. Eram aqueles grupos cujas carências não
tinham tido abrigo na polarização artificial do pós-guerra,
transformados agora em novos e diferentes sujeitos do pro¬cesso
político. Mas sujeitos estranhos aos quadros ideológicos e teóricos da
política.
A era pós-ditatorial, aquela que se seguiu às ditaduras militares dos
anos 1970 e 80, abriu, primeiramente, espaço para partidos de
conformação europeizada e de ideologia mais ou menos social-democrata,
modernizantes. Chegaram ao poder em diferentes países com a missão
histórica de trazê-los para o mundo moderno, para os valores universais
da cidadania, dos direitos sociais e dos direitos individuais.
Cometeram, porém, o erro de ignorar aqueles grupos residuais e suas
carências pré-modernas, seu modo comunitário de viver, sua mentalidade
pré-política, sua ação política por meio dos movimentos sociais, o
poderoso ativismo de seu atraso social e político. É verdade que, na
perspectiva modernizante, não havia como conciliar a ideia de missão
civilizadora com o tradicionalismo dos grupos humanos retardatários da
história e confinados nas graves limitações de compreensão das mudanças e
sua aceitação.
Os supostos representantes da civilização não conseguiram incorporar a
seu projeto político os supostos representantes da barbárie, uma
polarização clássica dos dilemas latino-americanos. E vice-versa. Há
cerca de dez anos, participei em São Paulo de um encontro de
ex-presidentes de repúblicas latino-americanas que passaram por essa
experiência e fizeram tardiamente a descoberta do erro cometido. Como
ouvi de Carlos Mesa, da Bolívia, homem culto, com doutorado na França,
filho de magistrado, que deixou a presidência nos tumultos sociais que
acabariam levando ao poder Evo Morales, representante dos cocaleiros.
Expressão do politicamente improvável, se vista na perspectiva das
grandes tradições políticas.
O caso de Lula não é diferente. Sua trajetória difere completamente das
trajetórias políticas brasileiras. Não só porque se trata de um líder
sindical operário, mas também porque chegou ao poder apoiado na
aglutinação de grupos políticos com visões de mundo e orientações
ideológicas contraditórias e interesses e projetos políticos
desencontrados e até antagônicos. E o que levou ao desastre do mensalão e
ao divórcio do lulismo em relação ao petismo. Uma expressão da nova
realidade social e política brasileira. Como não é diferente o caso de
Lugo, no Paraguai, bispo católico, que teve que deixar o sacerdócio e
acabou tendo que deixar o poder, numa trajetória pouco republicana e até
pouco política.
Cada um desses grupos da nova era política definiu o seu "ismo":
chavismo, lulismo, luguismo, sandinismo, todos proclamando-se variantes
do socialismo. É um novo populismo, diferente do populismo anterior
porque já não tem como meta deixar-se manipular pelos políticos em troca
de demandas sociais restritas. Diferente porque passou a querer o
próprio poder. Essa mudança definiu uma era, que tem sido a era do
ismismo, isso dos ismos referidos à invenção de heróis fundado¬res, como
o Chávez do chavismo e o Lula do lulismo. Ou referidos a heróis míticos
da me-mória nacional, como o Sandino do sandinismo ou José Marti, do
socialismo cubano.
O ismismo pode estar chegando ao fim ou ao seu momento crítico porque
seus heróis não são imortais. Além do que, o carisma não é transferível,
dizia Max Weber. O ismismo está nos hospitais e até nas UTIs, ou tem
por eles passado com frequência, emblemáticos sinais de finitude: Fidel,
Chávez, Lula, Dilma, o câncer cobrando seu tributo. Mas está também
limitado pelos compromissos das políticas de coalizão e do poder
compartilhado, mas corporativo. A visão política do mundo decorrente
dessa politização fragmentária e personalista está contida no seu tênue
discurso social, o da inclusão. Um discurso conservador que é também a
nova expressão do capitalismo subdesenvolvido e terceiro-mundista. Seu
projeto histórico é apenas ou sobretudo incluir e integrar. Não se trata
de superar e de transformar, mas de aderir.
José de Souza Martins, sociólogo e professor emérito da USP, é autor de A política do Brasil lúmpen e místico (Contexto)
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