O livro de memórias de Fernando Gabeira, Onde Está Tudo Aquilo Agora? -
Minha Vida na Política (Companhia das Letras, 2012), narra os
descaminhos da militância de esquerda como se relatasse os descompassos
de uma seita primitiva. Em trechos espirituosos, ou mesmo espirituais, o
autor aponta a associação fervorosa entre o engajamento na guerrilha e o
fanatismo dos crentes. "Minha experiência tinha um ardor religioso",
escreve ele sobre o período em que, jornalista bem empregado no Jornal
do Brasil, resolveu mergulhar de cabeça na clandestinidade, com nome de
guerra e documentação falsa, pouco tempo depois da decretação do AI-5.
"O batismo com um novo nome era apenas o começo. Novos valores iriam
compor meu universo, uma nova fraternidade se instalaria nas relações
com os companheiros de luta e simpatizantes que se arriscavam para nos
proteger." Nascia ali, para o narrador, uma comunidade de feitio
religioso.
Gabeira, ex-guerrilheiro do MR-8 que tomou parte no sequestro do
embaixador americano Charles Elbrick, não hesita em apontar a devoção
como ingrediente indispensável na têmpera dos que, como ele, queriam ser
soldados do povo. Até nos aspectos mais prosaicos. Por exemplo: ele
detestava acordar cedo, mas se resignou a esse dever revolucionário
graças à consciência transcendente de que tinha a História em suas mãos.
"Acreditar nas premissas da revolução, saber que estávamos construindo o
futuro, que o socialismo compensaria a todos segundo seu trabalho, o
comunismo a todos segundo suas necessidades - tudo isso ajudava a
enfrentar a aspereza de saltar da cama. Tudo isso e um café amargo."
Na saborosa narrativa de Onde Está Tudo Aquilo Agora?, "acreditar nas
premissas da revolução" equivale a crer em Deus, como se os neurônios
ativados no cérebro do militante que acorda bem cedinho fossem os mesmos
que se acendem na cabeça de um místico em oração. A chave para
ingressar no combate armado seria (também) de fundo religioso, e não só
racional ou "científica".
Ao contar da freira caridosa que cuidava dele num leito de hospital na
Ilha das Cobras - em consequência de um tiro que levou nas costas quando
foi preso -, o ex-preso político não perde o humor e tece um inspirado
paralelo entre suas velhas convicções materialistas e a fé em geral.
"Ela (a freira) era muito gentil, tratava-me como se eu fosse uma alma
penada precisando de conforto. E tão generosa que não tive coragem de
tocar no tópico 'crença religiosa': nada de discussão, defesa do
materialismo." Em outra passagem, chama de "mitologia" a idolatria dos
que tombaram em armas contra "o capitalismo, o imperialismo e outros
ismos". Dessa "mitologia" ele retirava suas forças "para suportar a
dor".
O olhar, mais do que crítico, ferino, com que Fernando Gabeira soube se
afastar do fanatismo dos vigilantes da ortodoxia já fez escola. Sua
tanga de crochê no célebre "Verão da Anistia" ganhou o status de marco
simbólico na agenda da reconstrução da democracia brasileira (a tanga,
aliás, é personagem de Onde Está Tudo Aquilo Agora?; Gabeira zomba do
pessoal que achava que aquela indumentária sumária não era "coisa de
homem"). Outro livro dele, O Que É Isso, Companheiro?, hoje clássico,
não foi outra coisa senão um libelo contra a caretice ultraconservadora
da militância - conservadora porque baseada em dogmas comportamentais.
Só por essa lucidez, que o distingue e o dignifica, Fernando Gabeira
merece ser lido uma vez mais.
Antes dele, é bem verdade, outros já haviam anotado - e muito bem - os
mesmos traços irracionais e irracionalistas da militância daqueles
tempos. Betinho foi um deles. Após abandonar o maoismo, ele acabou se
tornando um símbolo suprapartidário de solidariedade e grandeza. Antes,
porém, teve a coragem de elaborar uma crítica interna impiedosa. Em
depoimento publicado no volume 1 de Memórias do Exílio, obra coletiva
organizada por Pedro Celso Uchôa Cavalcanti e Jovelino Ramos (publicado
originalmente em Portugal, em 1976, e em 1978 no Brasil, pela Editora e
Livraria Livramento Ltda.), Betinho denuncia a religiosidade das
organizações comunistas: "Ao chegarmos a adotar o maoismo como religião
em 1968-1969", diz ele, "tínhamos uma base para isso. Por que fomos nós e
não os outros grupos? Nós saímos da Ação Católica e os outros, não.
Depois de Cristo, deu-se o vazio, mas o maoismo chegou e o camarada Mao
pegou de novo a bandeira".
Por essas e outras, ele conclui, taxativo: "A tendência geral da
esquerda brasileira é religiosa. É equívoco pensar que a esquerda é
antirreligiosa. A tendência geral da esquerda na América Latina é ser
religiosa. Porque ela vem de um padrão dogmático".
Com todo o respeito a Betinho, talvez não se deva ir tão longe com essa
generalização. É preciso admitir, nem que seja por uma cautela
metodológica, a possível presença de alguns ateus autênticos dissolvidos
nos tais "movimentos sociais organizados". Mas, a despeito de eventuais
ateus ou agnósticos, a postura devocional parece dar a tônica nesses
ambientes.
A histeria com que certos militantes se recusam a debater em público as
mazelas dos partidos de esquerda chama a atenção - não por ser uma
demonstração virtuosa de disciplina partidária, mas por ser um sintoma
de silêncio obsequioso. Estamos falando, pois, de servidão, de adoração,
de culto. Estamos falando de condutas reverenciais, não de atitudes de
livres-pensadores.
Não estamos falando sequer de política, pois a política que se rende a
tantos dogmas deixa de ser política para se converter em
fundamentalismo. É aí que surgem esses fiéis ardorosos que acreditam
piamente na infalibilidade dos caciques, mesmo quando os caciques
carregam nos bolsos fatias do erário. Sobre tamanha devoção valeria
pensar um pouco mais. E ler Gabeira.
* Eugênio Bucci é jornalista, professor da ECA-USP e da ESPM.
Fonte: O Estado de S. Paulo (24/01/13)
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