A Folha de S.Paulo é "a vanguarda entre os veículos da imprensa
empenhados em isolar o governo da opinião pública". Num país em que a
oposição não tem peito nem engenho para fazer oposição, as redações
jornalísticas se encarregam de jogar as autoridades no descrédito. É
assim, ao menos, que pensam os entusiastas do governo federal. Para
eles, os jornais cumprem o papel que deveria ser dos partidos de
oposição. Inconformados, os representantes do Palácio do Planalto
contra-atacam, como fez o líder do partido do governo na Câmara dos
Deputados, diante de mais uma reportagem crítica lida em plenário por
algum adversário mal-agradecido. "Sinceramente, não encontramos aqui um
pensamento inédito", disse o parlamentar governista. Segundo ele, a
imprensa apenas requenta fatos velhos para agredir quem trabalha sem
descanso para melhorar a vida dos brasileiros. Os governantes, segundo
essa visão, não passam de vítimas da maledicência, padecem sob o
bombardeio de uma campanha articulada para desacreditá-los. O líder do
partido do governo, no mesmo pronunciamento em que reclamou das notícias
requentadas, foi severo e categórico em seu diagnóstico: os órgãos de
imprensa "são o grande veículo dessa campanha articulada".
Antes de qualquer interpretação apressada, vamos esclarecer. As
declarações transcritas no parágrafo acima não re¬produzem falas de
integrantes do governo Dilma Rousseff. São anteriores. Também não trazem
recortes dos inflamados discursos de entusiastas do primeiro ou do
segundo governos de Luiz Inácio Lula da Silva. Nem de beneficiários das
duas gestões de Fernando Henrique Cardoso, ou do breve mandato de Itamar
Franco, ou de Collor, ou mesmo de José Sarney. Elas vêm de um período
ainda mais antigo, vêm dos tempos da ditadura militar.
Quem disse que a Folha é "a vanguarda entre os veículos da imprensa
empenhados em isolar o governo da opinião pública" foi João Baptista
Figueiredo, o mesmo que chegou a ocupar a Presidência da República entre
1979 e 1985. Ele disse ou, mais exatamente, ele escreveu isso um pouco
antes de ser empossado ditador, num relatório que entregou, em 1977, ao
então ministro da Justiça, Armando Falcão. Naquela temporada, Figueiredo
era o chefe do temido SNI, o Serviço Nacional de Informações, e
enxergava no diário paulistano um criadouro de oposicionistas ou, nas
palavras dele, "o esquema de infiltração mais bem montado da chamada
grande imprensa". Se as coisas não iam bem, a culpa deveria ser das
redações. O episódio pode ser lido com mais detalhes no livro Folha
(páginas 67 e 68), escrito pela jornalista Ana Esteia de Sousa Pinto,
que chegou em dezembro às livrarias com o selo da Publifolha.
Quanto ao governista que reclamou das "campanhas articuladas" contra o
governo, de nome Cantídio Sampaio, ele foi líder da Arena, a Aliança
Renovadora Nacional, o partido que apoiava a ditadura militar. O
arenista enunciou seu juízo sobre a imprensa também em 1977, ao
protestar, na Câmara dos Deputados, contra a extensa cobertura que os
jornais tinham dedicado ao lançamento da Carta aos Brasileiros, do
professor e jurista Goffredo Telles Júnior, no dia 8 de agosto, na
Faculdade de Direito do Largo São Francisco. Em sua Carta, hoje célebre,
Goffredo conclamou os compatriotas a exigir com ele o fim do regime de
exceção, numa guinada decisiva para a conquista da democracia no Brasil.
O deputado governista, acuado, sem outros argumentos, pôs a culpa no
noticiário, como relata Cássio Schubsky em Estado de direito já! - Os
trinta anos da Carta aos Brasileiros (a partir da página 219), lançado
em 2007 pela editora Lettera.doc.
Tudo isso é passado, claro. A ditadura acabou e, com ela, caiu em desuso
a doutrina de segurança nacional que consistia em pôr toda a
responsabilidade pelos males nacionais nos "inimigos infiltrados" dentro
dos meios de comunicação. Espantosamente, porém, tudo isso ainda é
presente. A velha doutrina se retirou, é fato, mas as teorias de que ela
se serviu, como a da "notícia requentada", ou a da "campanha
articulada" para "isolar o governo da opinião pública", continuam na
ativa. Toda semana, a gente dá de cara com tentativas de demonizar
jornalistas para inocentar governantes, num furibundo fanatismo
anti-imprensa. Presentemente, essas tentativas gostam de se declarar "de
esquerda", mas são apenas obscurantistas, como eram nos tempos da
ditadura. São apenas autoritárias, intolerantes e mal-intencionadas.
Nesse ponto, só o que mudou no Brasil foi a cor da gravata.
Eugênio Bucci foi editor da revista Teoria e Debate e Presidente da Radiobrás no governo Lula. Atualmente é jornalista e professor da ESPM e da ECA-USP.
Fonte: Revista Época
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