Cientista social e escritor, autor da obra que inspirou "tropa de elite"
critica inércia federal e herança da constituição de 1988
Cassiano Elek Machado
SÃO PAULO - Às vésperas de completar seus 60 anos, Luiz Eduardo Soares
resolveu fazer um balanço do tema com o qual vem convivendo
cotidianamente há muitas décadas, a segurança pública.
O antropólogo não ficou muito satisfeito. Contabilizou problemas sérios
nas esferas municipal, estadual e federal, na atuação da esquerda e da
direita, em governos como o de Fernando Henrique Cardoso, "inerte", e no
de Dilma, "que representa um retrocesso na área".
Soares não é um crítico de gabinete. Já colocou mãos na massa, tanto no
governo do Rio, seu estado natal, quanto no segundo governo Lula, quando
foi, por menos de um ano, secretário nacional de Segurança Pública.
Também escritor, co-autor das obras que deram origem aos filmes "Tropa
de Elite", ele trabalha atualmente num livro que procura sintetizar sua
visão sobre a violência no país, e que deve ser lançado neste semestre
pela Companhia das Letras.
Parte das ideias que ele apresentará no trabalho, seu nono livro,
aparecem num artigo que ele escreveu para a revista "Interesse
Nacional", que será lançada amanhã.
Soares questiona em especial a arquitetura institucional da segurança
pública brasileira, que pouco avançou desde a promulgação da
Constituição, que completa 25 anos em outubro.
Em entrevista à Folha, ele fala sobre esta inércia que faz do Brasil o
"segundo país mais violento do mundo", comenta a retomada do aumento dos
homicídios em São Paulo e faz um balanço de cinco anos das UPPs, as
Unidades de Polícia Pacificadora, do Rio, onde "não há um só crime
importante sem a participação da polícia".
Folha - Em um artigo recém-publicado, o sr. comenta que na
Constituição "não ousamos tocar no cordão umbilical que liga as Polícias
Militares ao Exército". Por que o sr. acredita que após 25 anos este
ponto ainda não tenha sido revisto?
Luiz Eduardo Soares - Esse é o grande enigma. Já escrevi muito a
esse respeito, mas nunca me dei por satisfeito. Sempre me pergunto: como
é possível que um país que se transforma todo o dia possa enfrentar um
de seus maiores problemas, a insegurança pública, com instituições
organizadas pelo passado. Claro, na transição era preciso aceitar as
imposições dos militares. Mas se passaram 25 anos. Não há como
justificarmos nossa inércia com temores de golpes militares.
Que forças políticas sustentam essa inércia?
Diria que os conservadores nunca se movimentaram por temerem que a
situação se agravasse. Já as esquerdas não foram capazes de formular uma
proposta para a segurança pública. De um lado, por preconceito que vem
da tradição marxista, que vê polícia como instrumento de dominação de
classe. Outros acham que não devemos gastar energia porque para reduzir a
violência se deve investir só em educação.
E o governo?
Os governos estaduais se sentem constrangidos, como se estivessem sob
ameaça das forças policiais. Os governadores acabam adotando discursos
mais realistas do que o do rei. Já o governo federal acaba avaliando que
mesmo necessárias, as reformas não seriam convenientes. Mais
responsabilidade à União significa mais cobrança.
Quando o governo Dilma completou nove meses o sr. escreveu um artigo
para a Folha classificando o início da gestão como decepcionante em
termos de segurança pública. Que avaliação faz hoje?
O governo Dilma representa um passo atrás. Era possível cobrar o governo
Lula pela timidez, que não lhe permitiu avançar para promover as
reformas, por razões que também imobilizaram Fernando Henrique Cardoso.
No segundo governo Lula, foram tomadas medidas significativas. Ainda que
insuficiente, o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania
significou algo. Mas Dilma decepciona porque até os avanços foram
desorganizados. É retrocesso sem avanço.
O sr. fala em seu artigo sobre a necessidade de reformar o artigo 144 da Constituição. Que pontos teriam de ser mexidos?
O artigo 144 atribui pouca responsabilidade à União com relação à
segurança pública. A União tem sob sua responsabilidade somente duas
polícias, a Rodoviária e a Federal. Elas são importantes, mas longe de
cobrir todo o espectro de desafios que a sociedade enfrenta.
E qual o papel do município?
Ele praticamente não existe, o que contradiz o processo histórico
brasileiro recente. Depois da Constituição de 1988, municípios passaram a
ter envolvimento crescente em áreas como saúde e educação. O artigo 144
diz que municípios só podem formar guardas municipais, cuja missão é
cuidar das estátuas e prédios municipais. Mas as guardas municipais
estão se proliferando pelo país, como no caso de São Paulo, onde há
quase 10 mil guardas.
Isso não é inconstitucional?
É polêmico. Qualquer cidadão pode prender qualquer outro cidadão que
esteja cometendo um crime, desde que isso seja feito em flagrante.
Pode-se argumentar que os guardas municipais só prendem em flagrante, e
que quando o fazem agem como cidadãos. Mas é claro que na prática muitos
estão armados, usam distintivos e atuam como policiais.
De que modo a redistribuição das forças policiais e a intensificação do papel da União poderiam melhorar a segurança?
Para dar um exemplo, a União deveria supervisionar a educação e formação
dos policiais. Hoje estes pontos são decididos de modo autônomo pelas
instituições de cada Estado. Temos situações como a dos policiais
contratados para as UPPs, no Rio, que estão sendo capacitados em três
meses.
Três meses mesmo para quem nunca foi policial?
Sim. É inacreditável. Nas polícias temos um quadro babélico. Um Estado
pode formar um policial em um ano. Outro, em dois meses. Já aconteceu no
Rio de policiais serem formados em um mês. E não é só o tempo. Não há
nenhuma padronização de currículo. Não defendo a imposição de um
currículo único, mas um ciclo básico nacional seria razoável.
As UPPs estão prestes a completar cinco anos. Que balanço seria possível fazer delas?
É um projeto muito importante, mas não representa política pública
porque não se universaliza. Isso não será alcançado sem reformas. Com as
polícias do Rio será impossível. Apesar de terem milhares de
profissionais honestos, as polícias do Rio têm outros milhares
envolvidos em crimes. Não há um só crime importante no Rio sem a
participação da polícia.
E qual a sua avaliação do quadro da segurança de São Paulo, que vive a retomada do crescimento dos homicídios?
Para agradar setores da opinião pública que pedem políticas duras e para
evitar constrangimentos com as forças policiais, os governos acabaram
tolerando a brutalidade policial. Como os números caíram, não por conta
da brutalidade, os governos acabaram tolerando a violência. A
valorização da Rota pelo secretário anterior endossava certa postura na
qual a corrupção não é tolerada, mas a brutalidade sim.
A resolução que estabelece que PMs não podem prestar socorro às vítimas é uma mudança importante?
Sim. O novo secretário de São Paulo, que não conheço, me pareceu muito
bem intencionado. Esta medida busca claramente conter as chacinas.
Fonte: Folha de S. Paulo (13/01/13)
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