quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Regulamentação da mídia (2) - (Roberto Romano)







Como fruto de meu último artigo (Regulamentação da mídia, 15/1), recebi uma torrente de insultos anônimos em meu endereço eletrônico. A reação prova a tese: os autoritários ignoram a fronteira do coletivo e do particular. Em vez de responder publicamente, eles ameaçam e insinuam retaliações. Volto ao tema sob outro ângulo para melhor determinar o que dele penso.
A imprensa surge com o Estado moderno. O mesmo ocorre com as táticas do poder para impedir a sua livre expressão. A importância dos panfletos políticos e religiosos é certa nos séculos 16 e 17. Basta recordar os libelos puritanos e textos como Le Reveille-Matin des François, que ampliaram rebeliões aristocráticas ou populares. No plano oposto surgem os jornais controlados pelo governo, criados para popularizar o poder oficial.
Richelieu (cardeal, primeiro-ministro de Luís XIII de 1628 a 1642) já domina o maniqueísmo da propaganda. "Aos que qualificavam a razão de Estado de 'razão do diabo' ou 'razão do Inferno' os panfletários de Richelieu replicam acusando-os de adotar 'a mais negra Teologia do Diabo'" (Thuau, Etienne: Raison d'État et Pensée Politique à l'Époque de Richelieu).
Thuau analisa estratégias cuja doutrina se resume em "governar e fazer acreditar" pelo controle estatal da palavra escrita. Diz ele: "É uma verdade reconhecida que a autoridade é inseparável das ideologias, dos mitos e das representações que os homens formam a seu respeito. O poder repousa na aliança do constrangimento e das crenças". O autor recorda Gabriel Naudé nas Considerações Políticas sobre os Golpes de Estado (1640): para manter a governabilidade o príncipe seria obrigado a mentir ao povo, "manejá-lo e persuadi-lo com belas palavras, seduzi-lo e enganar pelas aparências, ganhá-lo e colocá-lo a serviço de seus alvos por pregadores e milagres sob pretexto de santidade, ou por intermédio de bons escritores, silenciando os livrinhos clandestinos e manifestos, para levá-lo pelo nariz e fazê-lo aprovar ou condenar, só com a etiqueta da sacola, tudo o que ela contém".
O marketing político inicia ali a carreira cujo ápice ocorre sob Joseph Goebbels (ministro da Propaganda de Adolf Hitler). Controlar a imprensa é tarefa da grande ou mesquinha razão de Estado. Se o rótulo tem forma adocicada ("regulamentação social") ou ácida (censura), não importa. O alvo é calar a dissonância, silenciando críticas aos palácios e adjacências.
Richelieu reúne os auxiliares para examinar documentos oficiais, definindo a forma pela qual eles deveriam surgir como "notícias" no setor público, com o disfarce necessário. Ele já conhece a arte de reescrever a História e seus próprios textos. Os procedimentos usados no totalitarismo germinam no Estado absoluto. Ao reeditar seu discurso aos Estados em 1614, o cardeal modifica-o porque não coincide mais com sua nova política. Aqui não temos o único aspecto na genealogia que vai do Estado absoluto ao totalitarismo. Os "processos políticos" de Richelieu transformam os juízes em instrumento de terror contra os adversários. Para aquilatar a extensão e a profundidade dessa herança temos o livro de Hélène Fernandez-Lacôte Os Processos do Cardeal Richelieu, Direito, Graça e Política sob Luís, o Justo.
A função política ou econômica da imprensa, revolucionária ou governista, nem sempre suscita análises compreensivas. Basta recordar, no século 20, o crítico Karl Kraus. Em artigo intitulado A imprensa como alcoviteira, Kraus compara a jovem prostituta e o jornalismo oficialista, da Bolsa ou dos Palácios. A rameira seria moralmente superior ao que vende sua pena, pois ela "nunca sugeriu, como ele, assumir altos ideais". (Uso a tradução italiana, Morale e Criminalità.) A imprensa, com suas virtudes e seus defeitos, longe de ser odiada apenas pelos que agora se vendem ao governismo brasileiro, tem uma história densa e contraditória.
Recordo o autoritarismo dos que visam a impor silêncio a quem foge ao controle da norma formatada pelo marketing político e ideológico. Carl Schmitt, na luta contra a livre imprensa, chama os democratas de "classe discutidora", retirando o epíteto de Juan Donoso Cortés, autor do Discurso sobre a Ditadura, que inspira o fascismo. E também alimenta as ditaduras do século 20 na América do Sul e no Brasil. Com os tanques a discussão termina, vem o golpe de Estado "redentor". Mas nem todo golpe é cruento. A maioria é feita no silêncio dos gabinetes, nos acordos espúrios, nas alianças nefastas cujo nome ainda é "governabilidade". Quem aplica golpes eficazes conta com o sigilo cúmplice de todos, inclusive dos governados. É aí que os periódicos incomodam. Num país movido pela propaganda, desde a era Vargas com o DIP até hoje, a popularidade dos governantes é alvo perene, obtida à custa de ouro.
A mídia passa hoje por graves modificações. Se na cultura impressa existiu a figura do pedante, hoje na internet o pedantismo assume amplitude inaudita, unido à repetição de slogans e aos ataques às subjetividades que defendem posições adversas ao poder. Tudo indica que levará tempo para que a humanidade alcance uma síntese nova na ordem teórica e prática. Os jornais vivem uma situação inédita, com o aumento inusitado da comunicação eletrônica. As teses sobre a regulamentação da mídia, no Brasil, seguem a via coberta de ódio e dogmatismo.
Monopólios devem ser tratados com leis específicas, não podem servir de pretexto para impor ao público a visão de partidos ou seitas. Alguns veículos de comunicação, sobretudo na internet, se arrimam com ajuda oficial, reduzem seu papel à propaganda do governo e ao afogamento da crítica. Como se fosse destino, eles retornam ao tempo em que Richelieu pagava a jornais e jornalistas para combater os adversários do Estado.
Sobram ilhas de crítica e rigor intelectual na imprensa, mas é possível prever tempos escuros para as mentes lúcidas e honestas. Quem viver verá.
* Roberto Romano é filósofo, professor de Ética e Filosofia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e autor, entre outros livros, de 'O Caldeirão de Medeia' (Perspectiva).

Incluir não é fácil (Renato Janine Ribeiro)




 
Circulou muito no Facebook uma recomendação do blog "Viajando com os filhos", que consistia em conselhos para lidar com a babá. A autora, que em São Paulo se hospeda num dos melhores hotéis da cidade, discutia passagem, hospedagem, comida e bebida de sua empregada. O texto é detalhista e chocante. A patroa chama a babá de gênero de "terceira necessidade" e fala dela como se fosse um animal. Curiosamente, não parece mesquinha: paga um excelente quarto de hotel para a empregada; o problema é que não tem noção de como lidar com um ser humano.
Por que discutir esse tema numa coluna dedicada à política? Porque, sem querer, o texto - que foi retirado do ar, quando o blog se deu conta da péssima publicidade que angariou com ele - mostra as dificuldades para se aceitar algo que, reconheço, é difícil: a inclusão social. Não me juntarei àqueles que - com razão - condenam a autora. O que quero entender é o que passa na cabeça de alguém que vive no privilégio e não consegue sequer entender o que é a passagem ao mundo do direito. Ou que, tendo a vantagem da riqueza numa sociedade com alto teor de exclusão, não percebe que, um dia, isso acabará. Antes que me chamem de petista, é bom lembrar que tal nível de exclusão acabou faz tempo nas grandes economias capitalistas. Se a autora vivesse nos Estados Unidos, Reino Unido ou França, primeiro, dificilmente escreveria o que escreveu; segundo, se o fizesse, pagaria por isso.
O assunto faz lembrar a declaração de Delfim Netto, em abril de 2011 (quem teve empregada doméstica, que é um "animal em extinção", teve; quem não teve, não terá) ou o artigo de Danuza Leão, de novembro, observando como viagens a Paris perdem o valor quando todos podem fazê-la. Mas são casos bem diferentes. Com seu conhecido humor e inteligência, o ex-ministro anotou um fato: os empregos domésticos se extinguem, justamente porque uma pessoa cuidar da vida íntima de outra é quase humilhante e por isso, nos países desenvolvidos, se encarece ou se extingue. Danuza Leão dizia que há prazeres que dificilmente comportam o acesso de todos: o Louvre não pode, gostemos ou não disso, receber 100 mil pessoas por dia. Daí, ela conclui - o que endosso - que ler um livro pode ser bem melhor. Delfim e Danuza disseram coisas pertinentes, ainda que a formulação não tenha sido feliz. Já o post da blogueira não é reflexão, é sintoma, e suscita outra discussão.
A inclusão social mexe em nosso imaginário
Ao longo dos séculos e milênios, o que hoje chamamos de inclusão social se estagnou, cresceu raramente e com frequência recuou. Mas, nas últimas décadas, a integração dos miseráveis na sociedade (civil? de consumo? a diferença é importante) se acelerou intensamente - em muitos países. Aqui, em cinco anos do governo Lula, 50 milhões passaram das classes D e E para a C. Esse aumento de justiça social impõe mudanças de atitude radicais no interior da sociedade. Os mais vulneráveis se fortalecem. Socialmente, o dado principal é que recusam o papel subalterno ou subserviente que sempre foi o dos pobres em nosso país.
Se esse processo é amplamente positivo, ele tem seus senões, também pensando no plano social. Um diz respeito à própria condição dos ex-miseráveis. Eles parecem dar maior importância ao aumento do consumo, e junto com ele ao do crédito e do endividamento, do que ao acesso à educação e à cultura - da mesma forma, por sinal, que os gestores da economia e da política. Daí que a conquista de espaços sociais pela nova classe média continue frágil. Hoje, pode ser que muitos salários estejam subindo mais porque a economia está aquecida do que porque os seres humanos, que eventualmente chamamos de "mão de obra", se qualificaram como sujeitos de sua existência. Mas há outro problema, eticamente mais grave. Para as classes tradicionalmente ricas - ou "dominantes" - o ingresso em seu território de quem era não pessoa é chocante. Isso não quer dizer que os privilegiados sejam maldosos, de tão egoístas. O que falta é noção dos limites recíprocos que constroem uma sociedade decente. Obviamente, não merece elogio, nem sequer pena, quem age assim. Até porque essas pessoas, se viajam a países ricos, sabem que não podem tratar dessa forma as pessoas lá, mesmo as menos ricas. Seguem então um duplo padrão - assim como respeitam a lei de trânsito na Flórida e não no Brasil. Mas quem deseja mudar a sociedade não pode ficar na condenação ou no repúdio. É preciso compreender. Sem entender o que está ocorrendo, é difícil agir para mudar. Este é um campo importante para a pesquisa.
Mesmo assim, há medidas concretas e urgentes a tomar. Têm que ficar claros, para todos os brasileiros, valores como a liberdade e a igualdade. Isso depende do "governo", dos órgãos de defesa dos direitos humanos, do Ministério Público e do Judiciário mas, mais que tudo, do esforço da sociedade. É preciso difundir a ética nas escolas. Ela não pode ficar nas mãos só das Igrejas e das famílias; deve ser estudada, com uma abordagem leiga e universal, no ensino básico, isto é, da alfabetização até a conclusão do ensino médio. Deve haver também uma preocupação das empresas, que são responsáveis por boa parte da socialização das pessoas. Uma corporação ou organização não pode tolerar atitudes antiéticas de seus funcionários, sobretudo de seus dirigentes. Estas são políticas públicas, não apenas estatais. Além disso, politicas de combate aos privilégios devem ser adotadas - tanto de quem usa um cargo público para levar vantagem, quanto de quem utiliza sua riqueza para desprezar o próximo. Porque a batalha se trava, afinal, nos corações e mentes.
Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. 
 Valor Econômico - 28/01/2013

Sonhos de um escritor pop (Juca Magalhães)


Eu vivo sempre no mundo da lua

Porque sou aventureiro
Desde o meu primeiro passo
Pro infinito

Guilherme Arantes, Nosso Lindo Balão Azul

Desde pequeno sempre tive costume de me entreter com histórias, começou com revistas em quadrinhos, os chamados “gibis” – que, aliás, adoro até hoje – e por volta do final da infância vieram os livros. Havia editoras que circulavam listas de suas publicações quando eu estava no primário, foi assim que fiquei conhecendo “A Turma do Posto Quatro”. Ainda lembro, especialmente, a deliciosa emoção quando chegava pelo correio o pacote com os livros. Depois de ler um bocado, comecei a querer subverter a lógica de consumidor e fornecedor; devia ter lá pelos dez, doze anos no máximo.

 
Como tinha mais fantasia do que experiência de vida, enfiei em meu primeiro roteiro as coisas mais bestas que me rodeavam. Imaginei um misterioso caso de sequestro – era muito falado o do menino Carlinhos - em que eu e meus amiguinhos da época – Zeller, Flávinho, Teba, sei lá mais quem – ajudávamos, nada mais nada menos, do que Didi e os Trapalhões a resgatar o filho do primeiro que havia sido raptado. Daí a confusão ia parar na fazenda Fundão dos Índios, onde a coisa virava faroeste e nossa turma recebia o reforço de minhas irmãs e meus primos Felipe, Edilson e Everaldo.

Aquele meu primeiro esforço literário foi escrito à caneta esferográfica em algum dos meus rabiscados cadernos de escola – desenhar era outro hobby para espanar o tédio - e eu me sentia feliz da vida de poder arrumar para aquelas linhas bem traçadas uma utilidade mais nobre e divertida do que as aulas de caligrafia. Não pergunte por que me aborrecia estudar ou porque eu detestava a escola; posso me considerar hoje um cidadão de meia idade bem resolvido com isso e desajustado com o resto, mas nunca consegui chegar a uma boa resposta. Aliás, cheguei sim, mas...

Um dia meu mundo caiu: alguma das muito sensíveis e observadoras professoras nos espezinhou com a informação – sei lá por que – de que os pequenos livros de bolso da Ediouro que nós adorávamos não eram escritos por fedelhos bobocas como a gente. Apesar da linguagem descolada e de toda fantasia, o autor era nada mais, nada menos, que um adulto! Consequentemente, um sujeito careta e cheio de regras como ela própria. A danada devia estar querendo enquadrar a molecada e deve ter saboreado minha expressão de decepção. 

Apesar de tudo, dei um jeito da turma salvar o filho do Didi das garras dos malvados sequestradores piratas do Rio Fundão, não sem a ajuda de cowboys americanos,índios botocudos e da polícia que, como sempre, só chegava no final para prender os meliantes.

Numa de minhas tradicionais pescarias nas manhãs de sábado pelos parcos sebos de Vitória dei de cara com um daqueles livrinhos da Turma do Posto Quatro. Resolvi descobrir afinal quem era aquele autor que eu ainda admirava e guardara na memória do coração.
                                                                                          
                     
Helio do Soveral Rodrigues de Oliveira Trigo (1918-2001) tem até um blog muito bacana o homenageando e o apresenta como “o maior escritor pop do Brasil”, a iniciativa internéktica chama-se “Memorial Soveral” e é escrito por Dagomir Marquezi, um especialista na obra desse autor hoje tão pouco lembrado. Soveral era nascido em Potugal, mas emigrou com a família para o Rio de Janeiro ainda criança e morou em Copacabana por aproximadamente sessenta anos. Começou na imprensa e foi, por exemplo, o último repórter a entrevistar Noel Rosa. Veio a falecer aos oitenta e dois anos em Brasília, cidade onde residiu no final da vida para ficar perto da filha.

Foram trinta e cinco volumes da Turma do Posto Quatro publicados entre 1973 e 1979 – aliás, com o pseudônimo de Luiz do Santiago - o que prova que minhas contas estavam certas: no final de 1979 eu era ainda um pirralho completando quatorze anos. Mas Helio do Soveral escreveu também a série “Os Seis” com grande sucesso e pseudônimo de Irani de Castro, além de zilhões novelas para o rádio, chanchadas famosas, histórias em quadrinhos para as revistas Spektro e Pesadelo que eu também lia avidamente. Enfim, como pode uma pessoa povoar incógnita tanto a nossa vida? Fico pensando o quanto Soveral me influenciou para além daquela minha primeira investida literária...

Essas influências a que somos expostos, sugerem direções, resoluções e a infinita busca por expressão. Ser original não é fácil, apenas o somos na medida em que traduzimos antigas ideias numa linguagem atual, em contexto moderno. Não sei se realmente criamos alguma coisa. Queremos o que a maioria honesta quer: viver dignamente fazendo o que gostamos e nos identificamos. Eis a importância de exercer a criatividade: buscar lá dentro quem você realmente é. Sem isso o povo pira, vemos exemplos grotescos da loucura humana todos os dias.

Por isso tantas pessoas dizem que não se deve abandonar os sonhos, porque só alcançamos nossa essência quando transformamos sonhos em realidade. Não porque sonhar seja algo assim tão transcendental, mas porque no processo dessa transformação somos obrigados a amadurecer. Além do mais, e se estivermos mesmo todos ataviados a sonhos dos quais não podemos despertar? Como numa prisão?

Pois, (ora) nem mesmo Helio do Soveral conseguiu transformar todos os seus sonhos em realidade, naquela que deve ser sua última entrevista, concedida à Dagomir Marquezi e publicada na revista VIP de maio de 1998, com relação ao reconhecimento público e financeiro é perguntado ao autor:

- E se você fosse americano?

- Ah, aí eu estaria vivendo num palácio...

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Prisioneiros de si mesmos (José de Souza Martins)



As primeiras consequências das medidas legais que permitem o internamento compulsório de viciados em drogas ganha melhor sentido em conexão com a decisão do novo prefeito de São Paulo de remover, pela força, se preciso, moradores de áreas de risco. Em casos assim, o poder público discerne onde faltam as condições sociais e pessoais de discernimento e decisão. São episódios, ainda que entre si muito diferentes, de um mesmo processo de mudança de mentalidade. Passado o longo, compreensível e necessário porre de exageros liberalizantes que sucedeu à embriaguez autoritária da ditadura, a sociedade vai aos poucos retornando ao normal e ao cenário de sobriedade e coragem de que as políticas públicas carecem.
Nessas medidas, os governantes demonstram reconhecer a necessidade e até a urgência de redefinir e fazer valer regras em relação aos desvalidos que, por um fator ou outro, tornam-se vulneráveis a diferentes modalidades de risco, violência e degradação. Não será o traficante de drogas que definirá regras de direito e de saúde pública para os que a vida lançou na sarjeta. A defesa do suposto direito do drogado à droga e ao desvalimento da moradia no deus-dará da rua sujeita-se a ser cumplicidade com o tráfico e seus interesses anti-humanos e antissociais. Nem será o acaso desastroso da especulação imobiliária e da marginalização que regulará os direitos dos que, vivendo do suor do próprio rosto, não conseguem um canto para reclinar a cabeça. Nem conseguem moradia em condições e lugares apropriados para abrigar a família, atirados no monturo, nos terrenos que a especulação descartou porque perigosos.
Por seu lado, a sociedade demonstra idêntica compreensão dessas graves anomalias sociais, manifestando-se por meio daqueles que são os legítimos porta-vozes das vítimas. No caso das áreas de risco, os próprios moradores. No caso dos viciados em drogas, que socialmente se reconhece como desprovidos do discernimento para tomar as apropriadas decisões que seu caso pede, os familiares. São os filhos, pais, irmãos, aqueles que pelos vínculos de sangue a lei e a tradição reconhecem como revestidos de responsabilidade e autoridade para zelar, como tutores, dos que em suas famílias são destituídos das condições pessoais e sociais da lucidez, da vontade e até da razão.
Em todas as sociedades, o querer tem limites e regulação. Não por uma questão de poder, que no mais das vezes é um poder derivado da vontade coletiva. Mas por uma questão de autoridade, responsável pela vida e pela segurança do próximo. As decisões aqui referidas restauram a autoridade dos valores que são essenciais à segurança de todos. No caso dos drogados, a sociedade tem, sim, o direito de resgatar e recuperar, através da família e dos serviços públicos competentes, aqueles que foram sequestrados pelo tráfico e reduzidos a condições sub-humanas de vida pelo vício. Mesmo que as vítimas estejam à vista e à mão nas ruas, nos guetos do falso refúgio em que se juntam, na peculiar sociedade que formam, tornaram-se imunes à ação comunicativa que as humaniza. Nisso reside seu sequestro, na muralha de fumaça e pó que as aprisiona dentro de si mesmas. A sociedade tem o direito de zelar por sua própria sobrevivência e continuidade. Por isso mesmo, tem o direito de chamar à razão e à responsabilidade social os que dela se extraviam, sobretudo nos caminhos da autodestruição. Episódios até de violência autodefensiva são próprios das sociedades, valores mesmo primitivos da condição humana, preço que todos pagamos pela vida compartilhada e seus benefícios.
A mãe de uma das vítimas, mãe favorável ao internamento compulsório do filho, contesta a animada cidadã da terceira idade que se opõe com veemência à política que agora está sendo posta em prática. Quem tem mais direito de decidir o destino da vítima, qual a voz de maior autoridade: quem teve o filho roubado pelo tráfico, escravizada na cotidiana via-crúcis de procurar o filho e tentar trazê-lo de volta à rede de relações sociais baseadas no pressuposto do amor, ou a militante movida por relações de interesse político, que não tem filhos capturados pelo vício e diverte sua terceira idade com os supostos direitos de filhos alheios? Terceira idade que ela quer para si, mas não quer para os outros, os condenados à morte social.
No entanto, a idosa tem suas razões, ainda que razões menores. Escaldados por duas décadas de autoritarismo e por reiterados indícios de que o autoritarismo persiste dissimulado, seja no comportamento de agentes públicos, seja na própria resistência férrea das instituições à sua atualização democrática, temos medo. Medo de que atos, decisões e políticas adotados em nome do bem comum não sejam mais do que ocultas manobras do que Erving Goffmann chamou de conspiração alienativa. Em seu estudo sobre os manicômios, mostrou que basta a conspiração de duas pessoas, um médico e um parente, para que uma terceira pessoa seja declarada louca e confinada.
* José de Souza Martins é sociólogo, professor emérito da USP e autor, entre outros livros, de Fronteira - A Degradação do Outro nos Confins do Humano(Contexto)

Os peemedebistas querem o poder, mas para que mesmo? (José Álvaro Moisés)

Em poucos dias, o comando do Senado e da Câmara dos Deputados estará em mãos do PMDB, o principal aliado do governo Dilma Rousseff. Em caso de impedimento da presidente da República, o partido deterá agora três cargos na linha de sucessão - basta lembrar que o vice-presidente é o peemedebista Michel Temer. Quase 40 anos após ter se apresentado ao eleitorado brasileiro com o slogan "Vote no MDB, você sabe por que", é preciso perguntar sobre os seus objetivos políticos: o partido quer o poder, ou melhor, quer compartilhar o poder, mas para que mesmo?
Partidos existem para disputar o poder, mas na democracia representativa a premissa é que essa disputa tem por objetivo realizar as preferências políticas dos eleitores. Isso deveria ser claro para um partido cujo papel na transição do autoritarismo para a democracia é a sua principal herança política, como lembra a ação de homens como Ulysses Guimarães, Franco Montoro e Mário Covas. Mas, desde que renunciou a disputar a Presidência da República, o PMDB assumiu um perfil mais fisiológico do que programático e apoia qualquer governo que se disponha a dar-lhe cargos em troca de apoio no Congresso Nacional, independentemente da ideologia ou do programa desse governo.
Embora legítimos, os acordos para a formação das coalizões de que tem participado o PMDB são feitos a portas fechadas, sem suficiente esclarecimento para os eleitores sobre as suas implicações, deixando a sensação de que os entendimentos visam apenas cargos públicos e não uma contribuição própria para as políticas públicas. O que o PMDB acrescentou, por exemplo, em termos de inovação ou aperfeiçoamento das políticas ao ocupar ministérios como o de Minas e Energia, Previdência, Turismo e outros? Aparte os escândalos da pasta do Turismo, essa pergunta não tem resposta.
A chegada de Renan Calheiros à presidência do Senado e de Henrique Alves à da Câmara só aumenta as preocupações. Ambos estão envolvidos em escândalos sobre uso irregular de recursos públicos e o primeiro acaba de ser denunciado pelo Ministério Público ao Supremo. Isso explica os movimentos nas redes sociais denunciando a impropriedade de políticos de ficha suja ocupar cargos de direção do parlamento, cujas distorções fazem dele uma das instituições menos confiáveis pelos brasileiros. E nem Renan nem Alves parecem talhados para adotar medidas necessárias à recuperação dos poderes do Legislativo, como cumprir a regra de que medidas provisórias só podem ser examinadas em caso de relevância e urgência, reivindicar o direito de o parlamento decidir em definitivo o Orçamento da União, acabar com os atos secretos e conter os excessos corporativistas dos parlamentares.
PROFESSOR DO DEPARTAMENTO DE CIÊNCIA POLÍTICA, DIRETOR DO NÚCLEO DE PESQUISA DE POLÍTICAS PÚBLICAS UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO - 
Fonte: O Estado de São Paulo

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

A triste sina da democracia brasileira (Luiz Werneck Vianna)


De fato, para quem é leitor da mídia eletrônica e de alguns notáveis do colunismo econômico da grande imprensa, se vale o que é dito, parece que estamos em meio a mais uma floração do nacionalismo tanto nos rumos atuais da política interna quanto nos da externa, embora não se precisem a sua natureza nem as forças contra as quais se opõe. Nesse vasto material, nas citações abundantes dos colunistas de maior renome, em suas interpretações sobre o estado de coisas no mundo, uma ausência pode ser considerada sintomática, a de Jürgen Habermas, tido - o que ninguém lhe nega - como um dos maiores pensadores contemporâneos.

Faz sentido, Habermas, a seu modo, um herdeiro das tradições libertárias da filosofia clássica alemã, é um cosmopolita e, como tal, refratário à estatolatria, patologia que encontra terreno fértil nos contextos nacionais de capitalismo politicamente orientado, aberto ou encapuzado, como aqui. De outra parte, e em igual medida, é também refratário às concepções sistêmicas que confiam ao mercado o destino das sociedades, na crença de que ele conhece mecanismos de autoajuste. Tudo contado, sua obra monumental se aplica na valorização da política, da democracia como prática de homens dotados de autonomia para agir e pensar livremente, e não à toa ele se voltou, em plena maturidade, para o estudo do Direito e dos direitos, com ênfase especial nos direitos humanos, seara propícia à sua perspectiva universalista.

Nossos maîtres à penser, senhores da língua franca dos economistas - hoje, dominante na comunicação -, na contramão das correntes intelectuais que sondam as possibilidades de evasão dessa gaiola de ferro que construímos para nós mesmos, sem controlar o alcance das nossas micro e macrodecisões, reagem ao cenário da globalização numa aceitação tácita do mundo tal como ele se nos apresenta. Diante dela, o esforço concentra-se na busca de janelas de oportunidade para uma inscrição com grandeza na economia-mundo, sob a pilotagem de peritos nas navegações de longo curso exigidas pelas peripécias do mercado. Nos dias que correm, sob a condução geral da presidente Dilma Rousseff, ela mesma uma economista, falante da língua franca dessa grei, por livre escolha em diálogo permanente com alguns dos seus membros mais eminentes.

Mas, além desses personagens, há outros, no caso, os maiores interessados no sucesso dessa navegação de longo curso, os empresários das grandes empresas, nem sempre inteiramente nacionais, das finanças, das empreiteiras e do agronegócio. Para eles franqueia a cornucópia dos recursos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e do financiamento estatal a fim de alavancarem os seus empreendimentos no País e fora dele, como na África e na América do Sul, quando, especialmente estes últimos, são revestidos do manto de aura que os identifica como portadores do interesse nacional, parceiros na política de projeção do poder estatal.

Com essa manobra ideológica, tais personagens são alçados, sob a mediação do Estado, da dimensão da economia para a da política, apresentados como "campeões", heróis-empresários que desbravam o mundo em torno, não na busca de território, como na atuação de um barão do Rio Branco e suas motivações ibéricas, mas como novos bandeirantes que levam à frente o capitalismo brasileiro em nome da representação de presumidos interesses gerais da sociedade.

Nessa roupagem, o nacional é subsumido à lógica da modernização econômica, que, na nova tradução que lhe concede o governo Dilma, passa a ser um processo conduzido condominialmente pelo poder político, pela tecnocracia e pelo grande empresariado, novo ator ativo na tomada de decisões, ao contrário dos surtos modernizantes anteriores, em que o poder político agia monocraticamente. Sob esse estatuto de acento bismarkiano, o nacional se apresenta sem vínculos com a agenda da sociedade civil, que se tem orientado, desde a democratização do País, em torno da agenda de direitos. Nesse registro, quando muito, a sociedade civil é vista como uma beneficiária indireta dos êxitos da acumulação capitalista resultante dos empreendimentos econômicos bem-sucedidos no interior de nossas fronteiras e fora delas.

Trata-se, pois - e isso precisa ser declarado em alto e bom som - de um projeto nacional grão-burguês, que manipulações ideológicas ora em curso pretendem aproximar retoricamente da configuração do ideário nacional-popular.

O ideário nacional-popular começou a tomar forma a partir dos últimos meses do segundo governo Getúlio Vargas, encontrou sua expressão nos últimos anos da democracia de 1946 e foi sustentado por intensa participação popular em favor de mudanças sociais de largo alcance até ser varrido do léxico político brasileiro pelo regime militar. Não há o nacional-popular sem a presença e a voz da sociedade e dos seus setores subalternos.

Dez anos atrás, em seu belo discurso de posse, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, logo depois de evocar - sem o citar - as lições de Gilberto Freire sobre o sincretismo e a mestiçagem como a contribuição original brasileira ao mundo, dizia que "(a nossa) política externa refletirá também os anseios que se expressaram nas ruas".

As ruas estão, há tempo, silenciosas e mal têm notícias dos feitos do nosso Estado e das nossas grandes empresas, aqui e lá fora, com seus consultores e suas elites dirigentes imersos em cálculos de macroeconomia e artes afins, empenhados em realizar um projeto de País às nossas costas, no qual só há lugar para as razões instrumentais que nos elevem ao estatuto de grande potência mundial, triste sina que, mais uma vez, acomete a democracia brasileira.

* É professor-pesquisador da PUC-RIO.

Fonte: O Estado de S. Paulo

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

A devoção como política (Eugênio Bucci )

O livro de memórias de Fernando Gabeira, Onde Está Tudo Aquilo Agora? - Minha Vida na Política (Companhia das Letras, 2012), narra os descaminhos da militância de esquerda como se relatasse os descompassos de uma seita primitiva. Em trechos espirituosos, ou mesmo espirituais, o autor aponta a associação fervorosa entre o engajamento na guerrilha e o fanatismo dos crentes. "Minha experiência tinha um ardor religioso", escreve ele sobre o período em que, jornalista bem empregado no Jornal do Brasil, resolveu mergulhar de cabeça na clandestinidade, com nome de guerra e documentação falsa, pouco tempo depois da decretação do AI-5. "O batismo com um novo nome era apenas o começo. Novos valores iriam compor meu universo, uma nova fraternidade se instalaria nas relações com os companheiros de luta e simpatizantes que se arriscavam para nos proteger." Nascia ali, para o narrador, uma comunidade de feitio religioso.
Gabeira, ex-guerrilheiro do MR-8 que tomou parte no sequestro do embaixador americano Charles Elbrick, não hesita em apontar a devoção como ingrediente indispensável na têmpera dos que, como ele, queriam ser soldados do povo. Até nos aspectos mais prosaicos. Por exemplo: ele detestava acordar cedo, mas se resignou a esse dever revolucionário graças à consciência transcendente de que tinha a História em suas mãos. "Acreditar nas premissas da revolução, saber que estávamos construindo o futuro, que o socialismo compensaria a todos segundo seu trabalho, o comunismo a todos segundo suas necessidades - tudo isso ajudava a enfrentar a aspereza de saltar da cama. Tudo isso e um café amargo."
Na saborosa narrativa de Onde Está Tudo Aquilo Agora?, "acreditar nas premissas da revolução" equivale a crer em Deus, como se os neurônios ativados no cérebro do militante que acorda bem cedinho fossem os mesmos que se acendem na cabeça de um místico em oração. A chave para ingressar no combate armado seria (também) de fundo religioso, e não só racional ou "científica".
Ao contar da freira caridosa que cuidava dele num leito de hospital na Ilha das Cobras - em consequência de um tiro que levou nas costas quando foi preso -, o ex-preso político não perde o humor e tece um inspirado paralelo entre suas velhas convicções materialistas e a fé em geral. "Ela (a freira) era muito gentil, tratava-me como se eu fosse uma alma penada precisando de conforto. E tão generosa que não tive coragem de tocar no tópico 'crença religiosa': nada de discussão, defesa do materialismo." Em outra passagem, chama de "mitologia" a idolatria dos que tombaram em armas contra "o capitalismo, o imperialismo e outros ismos". Dessa "mitologia" ele retirava suas forças "para suportar a dor".
O olhar, mais do que crítico, ferino, com que Fernando Gabeira soube se afastar do fanatismo dos vigilantes da ortodoxia já fez escola. Sua tanga de crochê no célebre "Verão da Anistia" ganhou o status de marco simbólico na agenda da reconstrução da democracia brasileira (a tanga, aliás, é personagem de Onde Está Tudo Aquilo Agora?; Gabeira zomba do pessoal que achava que aquela indumentária sumária não era "coisa de homem"). Outro livro dele, O Que É Isso, Companheiro?, hoje clássico, não foi outra coisa senão um libelo contra a caretice ultraconservadora da militância - conservadora porque baseada em dogmas comportamentais. Só por essa lucidez, que o distingue e o dignifica, Fernando Gabeira merece ser lido uma vez mais.
Antes dele, é bem verdade, outros já haviam anotado - e muito bem - os mesmos traços irracionais e irracionalistas da militância daqueles tempos. Betinho foi um deles. Após abandonar o maoismo, ele acabou se tornando um símbolo suprapartidário de solidariedade e grandeza. Antes, porém, teve a coragem de elaborar uma crítica interna impiedosa. Em depoimento publicado no volume 1 de Memórias do Exílio, obra coletiva organizada por Pedro Celso Uchôa Cavalcanti e Jovelino Ramos (publicado originalmente em Portugal, em 1976, e em 1978 no Brasil, pela Editora e Livraria Livramento Ltda.), Betinho denuncia a religiosidade das organizações comunistas: "Ao chegarmos a adotar o maoismo como religião em 1968-1969", diz ele, "tínhamos uma base para isso. Por que fomos nós e não os outros grupos? Nós saímos da Ação Católica e os outros, não. Depois de Cristo, deu-se o vazio, mas o maoismo chegou e o camarada Mao pegou de novo a bandeira".
Por essas e outras, ele conclui, taxativo: "A tendência geral da esquerda brasileira é religiosa. É equívoco pensar que a esquerda é antirreligiosa. A tendência geral da esquerda na América Latina é ser religiosa. Porque ela vem de um padrão dogmático".
Com todo o respeito a Betinho, talvez não se deva ir tão longe com essa generalização. É preciso admitir, nem que seja por uma cautela metodológica, a possível presença de alguns ateus autênticos dissolvidos nos tais "movimentos sociais organizados". Mas, a despeito de eventuais ateus ou agnósticos, a postura devocional parece dar a tônica nesses ambientes.
A histeria com que certos militantes se recusam a debater em público as mazelas dos partidos de esquerda chama a atenção - não por ser uma demonstração virtuosa de disciplina partidária, mas por ser um sintoma de silêncio obsequioso. Estamos falando, pois, de servidão, de adoração, de culto. Estamos falando de condutas reverenciais, não de atitudes de livres-pensadores.
Não estamos falando sequer de política, pois a política que se rende a tantos dogmas deixa de ser política para se converter em fundamentalismo. É aí que surgem esses fiéis ardorosos que acreditam piamente na infalibilidade dos caciques, mesmo quando os caciques carregam nos bolsos fatias do erário. Sobre tamanha devoção valeria pensar um pouco mais. E ler Gabeira.
* Eugênio Bucci é jornalista, professor da ECA-USP e da ESPM.
Fonte: O Estado de S. Paulo (24/01/13)

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Marina Silva faz discurso histórico ao reunir-se com apoiadores de novo partido


Acabo de ouvir a fala da Marina Silva, em reunião em São Paulo, com gente do país todo. Gente comum e políticos conhecidos. Gente, que como disse a Marina não estão ativos em uma militância, “mas estão em suas casas, em seus quintais, preparando as suas fantasias, elaborando seus sambas enredos, mas não tem ainda um centro organizado aonde ir”.
E que centro seria este? “A sociedade diversa não cabe dentro de um partido”, ensina Marina. Para ponderar que se a decisão for a de criar um partido é preciso que fique claro que “não vamos criar uma ilusão.” Ela ensina que não será um partido perfeito porque a busca da verdade, tão necessária, não está com ninguém, mas sim entre as pessoas. “Está na experiência já vivida com outros partidos… Sábios são aqueles que aprendem com os erros dos outros. Estúpidos são aqueles que não aprendem nem com os seus próprios erros”.
Marina disse que infelizmente teve que sair do PT, partido que ajudou a criar e onde esteve por 30 anos. Porque ele não foi capaz de se reelaborar, de se resignificar e assumir as utopias do século XXI. “Não é hora de nos juntarmos, mas de nos dispersarmos. E um paradoxo, mas é uma dispersão agregadora”, disse. Ela usa a figura de que só é possível dispersar uma ideia, uma ideologia, uma utopia, se houver muita gente junta, capaz de produzir energia para propagá-la.
“Somos pontinhos gravitacionais, onde ao redor destes pontinhos outras pessoas se juntam e a gente vai criando uma nova superfície”.
Marina chama este movimento de ativismo autoral. São pessoas capazes de um engajamento que não são dirigidos por um Sindicato, um Partido, uma ONG. Podem até fazer parte, mas está além delas. Elas se envolvem porque têm compromisso com a sua própria militância.
Para ela é preciso que haja um chamamento da sociedade para fazer política, onde o partido seja apenas um instrumento. “Todos nós aqui podemos ter causas diferentes. Mas uma coisa nós todos concordamos. Nós somos a favor de um Brasil Sustentável. De um Brasil economicamente Próspero, socialmente Justo, politicamente Democrático e culturalmente Diverso. É isso que nos une”, disse.
Marina Silva enfatizou que “o processo será de todos, senão não será realmente novo”. Queremos ajudar na construção de uma nova cultura política e acredita que o movimento está maduro para tomar a decisão que precisa no dia 16 de fevereiro.
Um dos pontos altos do discurso foi quando ela avaliou a sociedade e a política calcada no ego e buscou um novo uso do carisma, que elege políticos em todo o planeta. “O carisma agora precisa ser usado para incentivar as pessoas para que não dependam do carisma”.
Na mesma linha que outros pensadores, ela enxerga que vivemos um momento novo que ela chama de “autorismo político”, onde, cada um pode ser o protagonista da sua história. Ela prega que seja um ativismo forjado na independência, na autoria de pensamento, na responsabilidade daquilo que faz e decide. Este, ensina, é o novo sujeito político do século XXI.
“Se não for assim não daremos conta do recado de transformar um mundo em crise, na economia, na política, nos valores, na relação do homem com a natureza e do homem com ele mesmo. Este é o grande desafio”, diz.
Ela lembrou que o PSDB construiu estabilidade econômica. O PT justiça social, trabalhando ao longo do tempo a inclusão. Agora, chegou o momento do ideal da sustentabilidade. “Não é concorrer a eleição pela eleição.  Precisamos de uma nova cultura política. O nosso desafio é de fazer com que o país seja próspero, mas ao mesmo tempo em que preserve o imenso patrimônio que é seu, mas que também é o equilíbrio do planeta.”
Para Marina, os jovens são os maiores porta-vozes disto que ela chama de uma nova utopia. E clamou pela emergência da situação. “Os trabalhadores precisam de água, de terra fértil, ar puro. Os empresários também. Os jovens precisam, os idosos e crianças também. Os animais também e as árvores também. É uma luta de todos. Nós vivemos uma emergência. E numa emergência, ninguém pergunta quem é branco, quem é preto, ateu, religioso, para arrombar uma porta na hora do incêndio”, disse.
Ela disse que será preciso ter maturidade para, em cima de princípios duradouros sermos capazes de fazer alianças pontuais para construir uma grande frente para a sustentabilidade. “Está na hora de nos juntarmos. De formarmos uma rede que seja capaz de colocar em movimento estes novos valores. De ter um Partido que esteja a serviço dos ideiais de um movimento e não o contrário. Não houve um dia, nos últimos dois anos, em que entrei nas redes sociais e não houvesse um apelo para criar um partido. Vocês é que definiram que este movimento deveria deslanchar num partido”.
Cerca de 350 pessoas participaram da reunião e outras 200 acompanharam via net. Dentre os participantes destaque para o vereador paulistano Ricardo Young, o deputado federal Walter Feldman, a educadora Neca Setúbal e o presidente da Natura Guilherme Leal.

No dia 16 de fevereiro, em Brasília, nova reunião irá definir o destino do Movimento Nova Política e a criação de um partido.

Veja a integra da fala de Marina Silva aqui

http://vimeo.com/57985010

Por Bell Pereira (portal  http://falagente.com)

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Cresce o suspense em torno de 2014 (Renato Janine Ribeiro)

No começo do ano, há poucas semanas, parecia certa uma tranquila reeleição de Dilma Rousseff em 2014. O candidato do PSDB seria Aécio Neves, que concorreria não tanto para vencer, mas para marcar posição com vistas a 2018 - renovando também as lideranças do partido de oposição, após três derrotas sucessivas de grandes nomes seus, ambos paulistas. Esse roteiro continua provável, mas já não é tão certo. As chances de Dilma e Aécio diminuíram.
Dilma se enfraqueceu porque os problemas na economia - vale dizer, no crescimento econômico - começam a preocupar. A economia é o segredo do sucesso dos governantes, numa época em que a confiança dos eleitores neles se reduz ao crédito que se pode ter na compra de bens a prazo, o que por sua vez resulta da irrigação de dinheiro, do aumento da produção e da inclusão social. Essas condições podem ser fruto da competência do governante - de sua "virtù", como diria Maquiavel - mas também podem decorrer de uma conjuntura de sorte, que o pensador florentino chamava de "fortuna". Lula mostrou "virtù" não se apavorando ante a crise mundial de 2008, não reagindo (como fariam os tucanos) com um forte aumento da taxa de juros - mas também se beneficiou de um quadro afortunado, porque não enfrentou a série de crises mundiais que se abateu sobre seu antecessor FHC.
Aécio se enfraqueceu porque, segundo a "Folha de S. Paulo", Serra radicaliza na sua intenção de disputar, mais uma vez, as eleições presidenciais: ele até deixaria o PSDB, se não lhe derem a candidatura. Essa notícia mostra um partido potencialmente dividido, porque Aécio teria ainda menos razões para retirar o nome em favor de quem já foi duas vezes derrotado no pleito presidencial. Com isso se enfraquecem Serra, Aécio, o partido.
A economia é o terreno movediço da fortuna
Dilma estaria fraca, o que é muito curioso, não por seu desempenho na política, mas na economia. Ora, é sabido que ela gosta da economia; que prefere uma visão técnica, gerencial, das questões a uma visão política. Política aparece para Dilma em seu pior sentido: o do toma-lá-dá-cá, o da construção da governabilidade mediante concessões. Aliás, é dessa mesma forma que a maior parte da população vê a política; talvez a popularidade presidencial se deva a essa coincidência do seu modo de ser com o da maioria do povo. Presidenta e povo convergem numa certa repulsa aos políticos. "Política", aqui, é a submissão do melhor e mesmo do bom ao possível. Quem tem valores fortes geralmente sente repugnância por isso. Parece ser o caso dela. E, mesmo assim, neste momento Dilma está melhor no quadro político do que no econômico. Não tem um rival forte à sua direita, a oposição de esquerda é microscópica e a causa ecológica muito fraca, dois anos apenas depois da avalanche de votos em Marina Silva.
Já a economia é a praia de Dilma Rousseff. A presidenta representa uma visão que, curiosamente, está perto do modo que, anos atrás, era a marca registrada de José Serra, na oposição interna ao governo FHC: o ideal de uma economia desenvolvimentista, pondo a regulação do Estado e o apetite dos atores privados a serviço de uma estratégia que aumente o crescimento e reduza a pobreza. (Não por acaso, jogo com o título do best-seller de 1975, que projetou o Cebrap de FHC e Serra, "São Paulo: crescimento e pobreza"). Não por acaso, me ocorreu escrever este artigo depois de ler uma entrevista do economista de esquerda Carlos Lessa, que foi professor de Dilma mas também padrinho de casamento de José Serra, e declara ter votado no candidato tucano.
Em suma, Dilma vê a economia não como fim em si, mas como o melhor instrumento técnico para fazer uma política que só é chamada de esquerdista porque, em nosso país, o mero propósito de construir uma nação de classe média soa radical - e talvez seja mesmo. Ora, é essa agenda que poderia ser comum ao maior número possível de pessoas, que poderia ser o ponto de encontro dos "homens de boa vontade", superando as pautas político-partidárias de interesses mesquinhos - essa agenda das pessoas que "pensam no Brasil", para usar uma expressão do então presidente Fernando Henrique Cardoso, numa crítica a uma sentença do Supremo Tribunal Federal - que está em risco. E está em risco porque a economia é uma caixa-preta.
Fala-se tanto em competência a respeito da economia mas, na verdade, ela é o movediço terreno da fortuna. Não se diz que os mercados "estão nervosos"? Nervosismo é o contrário da racionalidade. Daí que, apesar do cabedal de simpatia e da vantagem política em que está Dilma, com o PIB baixo as coisas se tenham tornado delicadas para ela. Não há melhor sinal disso do que a possível crise no abastecimento de energia. Esqueçam o sinônimo "luz" e pensem no sentido forte da palavra "energia": é isso que pode nos faltar. Simbolismo forte, não é? E pode faltar caso faltem chuvas, que não dependem de nenhum político, mas da sorte. Se Dilma se enfraqueceu, foi devido a golpes da fortuna.
E Serra? Seu jogo é arriscado. Fernando Henrique, que apoia Aécio, e Alckmin, que não apoia ninguém, parecem cansados de avalizar suas pretensões presidenciais. O pior para Serra será assumir o rótulo de ingrato, em relação aos correligionários, de desleal ao partido e de egoísta na aspiração ao Planalto. Com isso, ele pode tirar votos de Aécio, mas dificilmente conseguirá a candidatura tucana e, se a obtiver, sofrerá um intenso fogo amigo. Por hábil que seja Serra, que movimenta o xadrez político como poucos - dotado que é de muita "virtù" -, ele pode estar batendo no teto. Hoje, Dilma ainda vence Aécio, mas os dois enfraquecidos.
Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.
Fonte: Valor Econômico (21/01/13)

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Petistas e tucanos de ponta (José Roberto de Toledo)

Na batalha por corações e mentes, o PT perdeu a ponta da pirâmide econômica e o PSDB está cada vez mais dependente dela. Essa reviravolta numa parte pequena mas influente da sociedade brasileira ajuda a espalhar fagulhas entre os dois partidos.
Pela primeira vez, há mais brasileiros com renda superior a 10 salários mínimos que se dizem tucanos do que petistas: 23% a 13%, segundo o Ibope. Não é nada trivial. Parece ter chegado ao fim uma supremacia de 15 anos do PT no segmento onde se concentram, por exemplo, leitores de jornais e revistas.
A virada começou no auge da simpatia pelo PT, quando o então presidente Lula batia recordes de aprovação e a economia crescia num ritmo mais chinês que europeu.
Em março de 2010, o PT atingiu seu pico de popularidade. Um em cada três brasileiros declarava simpatia pelo partido. Mas entre os eleitores mais ricos o petismo estava decadente havia anos. Desde junho de 2001, quando 35% do topo da pirâmide se disseram simpatizantes, o PT vinha com viés de baixa nesse extrato.
O movimento custou a ser percebido porque o sobe e desce dos índices mascarava as tendências de longo prazo. Ao mesmo tempo, a perda dos eleitores com renda mais alta era compensada pelo crescimento do PT na base da pirâmide.
Quando Dilma Rousseff assumiu sua candidatura à Presidência, no começo de 2010, a penetração petista na elite econômica já estava reduzida a 22%. Ao fim da campanha eleitoral, sete meses depois, a taxa havia caído para 16%. Hoje é de 13%. Apesar disso, a perda de simpatia do PT nada tem a ver com Dilma.
O declínio nessa ponta vem dos câmbios da direção partidária que desembocaram, em 2005, no escândalo do mensalão. O desgaste é cumulativo. A cada disputa eleitoral os adversários tiram a casca da ferida e o PT sangra novamente. Foi assim em 2010 e em 2012 - com a ajuda do julgamento do mensalão pelo STF.
Os ex-petistas do topo da pirâmide se espalharam. Muitos se desencantaram com a política e viraram sem-partido, outros migraram para pequenas legendas e alguns até tucanaram.
Só a partir de 2010 o PSDB cresce entre quem tem renda superior a 10 salários mínimos - e apenas entre eles. Em menos de 3 anos, a preferência tucana pulou de 7% para 23% nessa elite, que passou a ter um peso muito maior entre os simpatizantes do partido. Ou seja, o PSDB percorreu o caminho do PT no sentido oposto.
Em 2004, o professor David Samuels, da Universidade de Minnesota, escrevia que os petistas eram diferentes dos outros brasileiros: "São mais instruídos e politicamente conscientes do que a média. (…) Acreditam que a participação do indivíduo na política pode fazer diferença". Se houve tal diferenciação, ela se diluiu.
O petismo perdeu influência justamente nas camadas citadas por Samuels. Ao mesmo tempo, absorveu lulistas - eleitores pragmáticos, cativados pela inclusão social via consumo. O resultado é que o petismo mudou. Com uma base menos rica, mais nordestina e, principalmente, mais numerosa, colecionou vitórias nas urnas. Mas, depende cada vez mais do vaivém da economia.
Fonte: O Estado de S. Paulo

Dilma precisa de coragem para colocar em prática o que fala (Carlos Lessa)

ELEONORA DE LUCENA
DE SÃO PAULO
A presidente Dilma Rousseff é desenvolvimentista, mas continua fazendo uma política de estabilização. Ela tem boas ideias, porém "não tem coragem de pô-las em prática". O diagnóstico é de Carlos Francisco Theodoro Machado Ribeiro de Lessa, ex-professor de Dilma na Unicamp na disciplina de economia brasileira.
Ex-presidente do BNDES (governo Lula), Lessa, 76, afirma que a desnacionalização explica em parte o baixo crescimento brasileiro. Defende medidas de longo prazo e a ampliação do investimento público.
Ex-reitor da UFRJ, ele dá nota 9 para o discurso da presidente e 6 ou 5 para a sua prática. Eleitor de Serra, de quem foi padrinho de casamento, Lessa ataca a privatização no setor de energia e o modelo adotado a partir dos anos 1990. A seguir, os principais pontos da entrevista.

Alexandre Campbell - 17.jan.03/Folhapress

Cerimônia de transferência de cargo na presidência do BNDES, em que assumiu oficialmente o Professor Carlos Lessa, em 2003
MODELO BRASILEIRO
A grande pergunta que não é colocada é: para onde nós vamos? Se tivermos mobilização nacional, um entendimento claro de qual é o projeto nacional e coerência dos diversos personagens em relação a isso, a possibilidade de construí-lo aumenta enormemente. Na minha visão, o Brasil continua apostando na ideia da globalização, apesar da crise mundial dessa globalização. Isso significa fazer um tipo de política que está a serviço das diretivas gerais e não das especificidades de cada país.
DESNACIONALIZAÇÃO
A desnacionalização trouxe uma porção de defeitos. O mais elementar é que ela confirma cada vez mais a dependência de suprimentos do exterior e a necessidade de investir voltado para fora. Se se depende de suprimentos do exterior, se depende de exportar frango, açúcar, café, minério de ferro etc. O país fica cada vez mais amarrado à opção de globalização, amarrado para ser um componente da periferia mundial. Os países do centro desenvolvem atividades voltadas para o mercado interno, com tecnologia própria e tecnologia de ponta. Quando há desnacionalização, o país passa a ser apenas um comprador de tecnologia, na melhor das hipóteses.
BAIXO CRESCIMENTO
A desnacionalização explica muitas coisas. E o setor público não investe com clareza para apontar para onde o Brasil irá. Na verdade, o setor público continua prisioneiro do acordo de Washington. Continua usando o modelo de metas da inflação, apesar de os europeus já estarem abandonando esse modelo. O Brasil continua fazendo uma política que prioritariamente é de estabilização, não de desenvolvimento. Mas faz um discurso a favor do desenvolvimento.
DESENVOLVIMENTISTA
Foi minha aluna, é inteligente, gosto como pessoa. Tem ideias, em princípio, boas. Ela não tem coragem de pô-las em prática. Faz o enunciado, mas não o coloca em prática. Não gosto de dar nota. Mas, em relação às coisas que ela sugere, daria nota 9. Para o que ela faz dou nota 6 ou 5.
Ela diz que é necessário abaixar a taxa de juros. Concordo integralmente. Então é preciso fazer uma política consistente para baixar para valer. Teria que mexer na taxa de juros do BC, na dívida púbica, tornar cada vez mais difícil haver essa corrida em cima dos títulos de divida pública. Tinha que lançar a proposta de imposto de exportação para poder voltar a desvalorizar o câmbio para valer. Elevar o dólar de R$ 2 para R$ 3. É muito? Note que, no Planalto, a borrachinha de apagar e o lápis ambos são chineses.
INVESTIMENTO PÚBLICO
O investimento público sofre limitações terríveis. Eu apostava que a economia do petróleo ia ajudar o Brasil encontrar uma frente de expansão. Não encontrou. Ao contrário, o que vejo é um discurso cada vez mais duvidoso em relação à Petrobras.
PETROBRAS
Vejo a Petrobras vendendo refinarias no exterior, dizendo que está perdendo dinheiro com gasolina, que está perdendo dinheiro com gás de cozinha. Isso faz os empresários brasileiros duvidarem de que a Petrobras toque para frente o seu programa. Aí, se a Petrobras não vai, sou eu, dono da lanchonete da esquina, que vai apostar no crescimento brasileiro? Quem está apostando para valer no crescimento brasileiro? Hoje eu diria: ninguém. Há um ano eu diria que era o pessoal do petróleo com o Pré-Sal. Essa senhora que preside a Petrobras está mostrando uma vulnerabilidade terrível.
ENERGIA
O Brasil há 25 ou 30 anos atrás vinha construindo uma estrutura energética que era a melhor do planeta, que quase não dependia de petróleo, carvão, gás. Era basicamente elétrica e mais de 80% gerada por hidroeletricidade. Veio uma coisa surrealista: foi reduzido espetacularmente o peso da energia elétrica dentro da matriz. Começa com Collor, avança com Fernando Henrique e é absolutamente confirmada nos governos Lula e Dilma. Para mim, é ininteligível. Tínhamos um dos melhores sistemas de eletricidade do planeta e o domínio completo da construção de usinas hidrelétricas e redes. Foi tudo desmantelado.
PRIVATIZAÇÃO
No caso da energia elétrica, [a privatização] é um desastre de proporções colossais. O Brasil tinha um dos mais baixos custos de energia elétrica do planeta. Adotou-se o preço de energia pela energia mais cara que está sendo produzida. No Brasil há uma quantidade enorme de usinas que estão praticamente amortizadas. Seria possível ter uma tarifa elétrica espetacularmente baixa. Fizeram no Brasil uma coisa surrealista. O governo está exaltando que construiu as térmicas e que elas eliminam a vulnerabilidade. Mas as térmicas empurraram para cima de uma maneira espetacular o preço da energia elétrica.
COMPETITIVIDADE
Diversos setores exportadores tradicionais que são eletrointensivos e que tinham vantagem de ter suprimento de energia elétrica baratíssimo perderam vantagem. O Brasil fez com que a indústria perdesse competitividade. Hoje o Brasil depende da termoeletricidade e perdeu a vantagem estratégica de uma matriz energética que era espetacular e não refez nada. Colocou no lugar um consumo crescente de energia elétrica não renovável. Foi um erro do ponto de vista de balanço energético brutal. Um erro estratégico que afeta o futuro brasileiro.
MINÉRIOS
O Brasil é importante supridor de minério de ferro para a China. Mas os chineses não são bobos e vão desenvolver sua própria Vale na África. Por mais algum tempo a Vale irá muito bem, mas a longo prazo ela irá mal enquanto exportadora de minério de ferro. Optamos por ser primário-exportadores, não por ter uma indústria siderúrgica integrada e moderna. Se desaparecer a conexão importante com a China, o Brasil vai ficar num mato sem cachorro.
SOJA
É sucesso, mas não é um sucesso nacional. Quando o café foi um sucesso no Brasil no passado, quem produzia as novas variedades de café era o Instituto Agronômico de Campinas. Agora quem produz é a Monsanto. Quem produzia fertilizantes no Brasil até recentemente eram empresas da Petrobras que foram privatizadas. Parece que agora a Petrobras esta refazendo a sua presença no setor de fertilizantes. Todo o maquinário da indústria é estrangeiro. Os defensivos agrícolas são todos estrangeiros. Todos os grandes exportadores são grupos estrangeiros. O financiamento agora depende do sistema financeiro mundial. O complexo da soja tem de nacional mesmo um pedaço dos proprietários de terra que plantam soja --se bem que os chineses agora estão comprando alucinadamente terra agrícola. E tem o caminhoneiro, o dono do caminhão. O fabricante do caminhão, que é estrangeiro. O complexo soja é um sucesso, porém não é nacional.
SISTEMÃO
Se houver qualquer borogodó no sistema mundial de soja, quem vai pagar um preço maior é a soja brasileira. Porque tem o sistemão que se defende e vai jogar para cima do Brasil as perdas. Ele procura controlar, na medida do possível os suprimentos e os mercados? Para poder jogar nas duas pontas se for necessário. O complexo do café foi, no passado, um complexo nacional. Por isso o país fez uma política defensiva do café durante a crise mundial de 29. Não podemos fazer agora uma política defensiva de soja.
CANA E ÁLCOOL
O quadro é parecido com o da soja. Uma empresa francesa produz clones especializados de cana. A terra da cana também está sendo vendida para estrangeiros. As usinas principais estão saindo de mãos nacionais para mãos estrangeiras. O Brasil ainda tem a ponta da tecnologia que é a Dedini. Vamos ver por quanto tempo ela resiste como empresa nacional. Estamos transferindo as vantagens brasileiras, muita água, terra e muito sol, para controladores estrangeiros. Essa é a opção da globalização.
EMPRESÁRIO NACIONAL
Como se faz uma globalização e, ao mesmo tempo, reserva os segmentos dinâmicos dessa globalização em mãos nacionais? É muito difícil. Quando o empresário nacional é muito robusto e poderoso, pula para fora do Brasil e tenta reproduzir o padrão das múltis bem sucedidas. O empresário tem a visão de empresário. Se tivessem uma visão nacional, estariam discutindo e debatendo um projeto nacional.
CARROS E ENDIVIDAMENTO
O Brasil fez com que a atividade econômica interna dependesse basicamente de vendas financiadas de bens de consumo duráveis, principalmente autos. Houve endividamento em massa das famílias. O endividamento não é necessariamente nem ruim nem bom. Ele pode ser muito virtuoso. Por exemplo, quando ele gera uma resposta empresarial que é ampliar capacidade de produção, quando ao mesmo tempo se gera novos empregos e maior renda familiar. É virtuoso o endividamento que tem como consequência a retomada do investimento macroeconômico, a ampliação da capacidade de produção, de geração de emprego e renda. O endividamento brasileiro cresceu explosivamente durante a última década. O número de autos cresceu 9% ao ano, refletindo o endividamento em massa das famílias em torno do objeto do desejo principal do povão que é o automóvel. Isso teve um efeito ruim. Não elevou a taxa de investimento brasileira, que está inferior a 20% do PIB.
CONSTRUÇÃO CIVIL
Penso que Dilma ela acha muito melhor que as famílias brasileiras se endividem por construção de residências do que por compra de automotores. A indústria da construção civil é altamente virtuosa. Gera emprego, materiais locais, mão de obra local, marcenaria, alvenaria. Além disso, os materiais básicos da indústria são fabricados no Brasil: cimento, produtos cerâmicos, ferro de construção. A família prefere a ideia da casa própria a do automóvel. Prefere se endividar com a casa própria. Isso é sempre virtuoso porque a família para de pagar aluguel. Enquanto que o endividamento com automóvel, do ponto de vista familiar é complicado. O automóvel traz gastos com impostos, combustível, manutenção. E tem a depreciação. Já o imóvel residencial geralmente melhora de valor. Quando a família compra a prazo pagando prestação a casa própria, ela esta capitalizando para o futuro. É extremamente virtuoso o modelo da construção civil. Coisa que a Dilma sabe.
LONGO PRAZO
Precisa haver uma fonte de financiamento pesada para as famílias poderem se endividar e tem que ter investimento público para a infraestrutura. Isso não existe no Brasil porque a prioridade toda é dada ao pagamento da dívida pública.
Para fazer um programa para valer de construção civil é preciso equacionar o financiamento em massa a longo prazo a uma taxa de juros baixa para as famílias. Só tem uma maneira de fazer isso: é lançando mão da poupança institucional que existe no Brasil. É a poupança gerada pela previdência pública oficial. É a previdência toda e todos os outros fundos complementares, como Previ. Essa massa de recursos pode dar sustentabilidade a uma política de longo prazo de ampliação significativa da construção civil.
Outra coisa necessária, já que 80% da população brasileira é urbana, é o investimento público em infraestrutura. Não se pode ampliar muito a construção civil, se não houver aumento no fornecimento de energia elétrica, de água tratada, água recolhida etc.
CÂMBIO
A melhoria do câmbio tem uma característica curiosa e extremamente angustiante. Num país que não tem imposto sobre exportação, se há aumento da taxa de câmbio, há imediatamente reflexo na inflação. O Brasil tem coragem de propor imposto sobre a exportação? Então não consegue fazer uma política de câmbio consistente. O governo deveria ter no seu ferramental tributário a possibilidade de aplicar um imposto de exportação se houvesse a seguinte combinação: preço internacional muito alto de uma commodity brasileira e, ao mesmo tempo, desvalorização cambial.
PRESSÃO SOBRE BANCOS
Ela está correta na tentativa, mas ela só foi a meio caminho. O problema é que quem obedece a Dilma são BB, CEF e BNDES. O resto desobedece. Os bancos praticamente não repassam a queda de juros. O cheque especial é uma armadilha terrível. Itaú, Bradesco e Santander só reduziram um tiquitinho. Ela vai enquadrar Itaú, Bradesco e Santander ou os três enquadram ela? Ela não tem como enfrentá-los.
BNDES
Tudo que o BNDES fizer, em princípio, é bom para o Brasil. Só que tem coisas que o BNDES faz que são maravilhosos e outras que não são tão maravilhosas assim. E tem algumas coisas cuja prioridade é altamente questionável. Por exemplo, o BNDES não deveria apostar tanto em financiar a exportação de automóvel. Se as empresas que estão instaladas no Brasil têm mercado mundial para automóvel, elas deveriam procurar linhas de financiamento fora do Brasil para tocar para frente suas exportações. Mas não pode fazer nada, porque, se a indústria principal brasileira hoje é automobilística, você vai mexer nela?

FSP 14/01/2013

sábado, 19 de janeiro de 2013

Crônicas do fim do mundo (Fernando Gabeira)

Feliz fim de mundo dizia a manchete do jornal venezuelano Tal Cual no dia de dezembro marcado para ser o último, com base no calendário maia. De certa forma, o mundo acabou e, de tão felizes, não nos demos conta.
Como baratas que sobrevivem ao inverno nuclear, o PMDB prepara-se para assumir o controle do Congresso Nacional. São os mesmos de sempre, como diz o personagem de Beckett ao perguntarem quem lhe deu uma surra na rua.
O calendário de Marco Maia terminou com uma ação importante: a compra de 1.500 iPads para os deputados. Medida econômica destinada a poupar montanhas de papel. Acontece que os iPads serão pregados nas mesas. É compreensível o medo de serem subtraídos. Tantos recursos, conhecimento e inovação foram gastos para criar uma tecnologia móvel e os deputados vão usá-la pregada. A esquerda no poder sempre pode argumentar: se a aristocracia reacionária pregou Cristo na cruz, qual o problema de pregar uma conquista tecnológica? O problema é que, se fizessem um aplicativo para celular, poderiam economizar os iPads, montanhas de papel e, naturalmente, os pregos. Todos os deputados têm celulares e do bolso dos assessores brotam celulares como dinheiro amassado do bolso dos bicheiros.
Do iPad vamos para o Photoshop. É um programa, com muitas funções, para tratar imagens. Com o Photoshop, os políticos sempre parecem mais novos do que sua idade real e as contas, mais arrumadinhas do que autoriza a crise real. Algumas rugas em forma de débito foram suprimidas. Dizem as notícias que as manobras feitas pelo governo para formalizar a maquiagem, mobilizando estatais e o BNDES, deram um prejuízo de R$ 4,7 bilhões, via mecanismo, forçado pela urgência, de comprar ações na alta e vendê-las na baixa.
Na energia, Edison Lobão é a cara do fim do mundo. Ele aconselhou a usar energia à vontade num momento em que os reservatórios estão baixos, as empresas hidrelétricas se desidratam na Bolsa e as térmicas a todo vapor emitem milhões de toneladas de gases de efeito estufa. Em todo o mundo, o conselho dos dirigentes é usar energia com critério e procurar economizá-la sempre que possível.
Lobão é generoso. Como Dilma, que nos promete uma redução de 20% na conta de luz, nesta conjuntura complicada. Como as térmicas encarecem a energia, a única saída será subsidiar uma parte da redução. Parte do que Dilma nos dá com toda a pompa devolvemos silenciosamente ao pagar a conta.
O sistema brasileiro é considerado bom por muitos analistas do setor. Precisa de investimento e gestão. Hidrelétrica fechada há quase 20 anos e central eólica funcionando sem linhas de transmissão para distribuir a energia são sinais de desgoverno. Costumo dizer que Barack Obama escolheu um Prêmio Nobel de Física para a pasta de Energia; quis o destino, graças à coligação vitoriosa, que nosso ministro fosse Lobão. Os vitoriosos impõem-nos condições constrangedoras. No passado, decisões brasileiras com repercussão continental eram pelo menos comunicadas às Comissões de Relações Exteriores do Congresso. Em alguns casos, falava-se até com a oposição.
A Venezuela está sendo governada por aparelhos. Eles são o vínculo de Hugo Chávez com a vida. Os chavistas poderiam respeitar a Constituição e eleger Nicolás Maduro dentro de um mês. Resolveram suprimir esse caminho, afirmando ser apenas uma formalidade constitucional.
Um assessor especial brasileiro viaja para Havana, discute com cubanos e venezuelanos e afirma: a posição do Brasil é apoiar o adiamento das eleições na Venezuela. Os vitoriosos não deveriam poder tudo. A política externa do Brasil não precisa coincidir totalmente com a do PT. Ela é o resultado de um pacto com a maioria que elegeu Dilma. E quando se trata de decisão de peso é preciso ao menos comunicar à oposição.
Marco Aurélio Garcia encarnou o PT, o governo e o Brasil. Que viagem! Enquanto espera as malas na esteira, proclama: a posição do Brasil é pelo adiamento das eleições na Venezuela.
Com o esfacelamento da oposição, os vitoriosos deixaram de fazer política. Desfilam solitários. Um partido substitui o País, que, por sua vez, é substituído por um assessor especial.
Na crise energética de 2001, fazíamos comissões, íamos ao Planalto, chamávamos o Pedro Parente, responsável pela gestão do problema, ao Congresso. Hoje está tudo morto por lá. E o PMDB prepara-se para roer os escombros. Esses dois momentos em que um setor vital como a energia invade a agenda revelam a devastadora decadência da política no Brasil.
Aos vencedores, as baratas. Pena que a paisagem na oposição seja também tão desoladora. O calor do debate político poderia levar-nos a pensar numa alternativa para tudo isso. A alternativa não é fácil. Os grandes partidos da oposição parecem não se interessar por ela. No mínimo, estariam se reunindo, discutindo os temas, lançando notas sobre a energia, a posição do Brasil nas eleições da Venezuela, a maquiagem das contas públicas.
Se a imprensa se tornou o único setor que questiona tudo isso, melhor talvez fosse distribuir os iPads aos repórteres. De que vale ser eleito como oposição e não realizar a tarefa?
Um certo mundo acabou. Ainda não apareceram aquelas brumas do amanhecer nos rios do Pantanal. Elas nos dão a ilusão de uma nova gênese, um outro mundo despontando gradualmente da névoa. Não espero nenhum paraíso. É pedir muito que o Brasil tenha um ministro da Energia à altura da importância do tema, que a política externa seja mais democraticamente exercida, que as contas públicas não sejam maquiadas? E que o Congresso funcione, a oposição se oponha?
Começam pregando iPads, daqui a pouco vão comprar aviões para a linha de ônibus Madureira-Central do Brasil, desativando sua capacidade de decolar. Começam com o ministro da Energia estimulando o consumo e, daqui a pouco, o da Saúde aconselhará a fumar.
O mundo acabou de certa forma. De tão felizes, não percebemos que está de pernas para o ar.
Fonte: O Estado de S. Paulo (18/01/13)