Visitas
de Lula ao escritório do ex-ministro Jobim e à residência de Maluf
mostram caráter de intervenção personalizada e caprichosa
O lendário deputado
norte-americano Tip O'Neill, presidente da Casa dos Representantes - a
Câmara de Deputados dos EUA - de 1977 a 1987, certa feita pontificou que
"toda política é local". Democrata da velha e boa cepa rooseveltiana,
hoje, para os padrões da política praticada ao norte do Rio Grande,
O'Neill seria considerado um esquerdista ferrenho. Sua frase célebre
admite distintas interpretações. Em comentário a uma biografia recente
de O'Neill, o ex-governador de Nova York Mario Cuomo definiu a frase
"all politics is local" como um motto do velho prócer democrata,
falecido em 1994. A frase seria portadora da ideia forte de que o
exercício da representação política exige vínculo com os representados e
escuta para suas expectativas e apreensões. Em outros termos, o sistema
representativo, fundado na necessária distinção entre representantes e
representados, só faz sentido se houver vínculos entre ambos, não
limitados aos jogos de captura de sufrágio.
Não é, contudo, essa a única
maneira possível de entender a sentença de O'Neill. Em registro um tanto
cínico, localismo pode significar tão somente precipitação e dissolução
da política na pequena guerrilha, na esperteza da pequena área, na
adoção de uma subespécie de maquiavelismo de fancaria. Precipitação que
acaba por implicar uma continuada ressignificação da política, pela qual
a lógica de curto prazo e o apetite infrene apresentam-se como
devoradoras de patrimônios políticos e simbólicos duramente construídos.
Localismo, nessa chave, não indica apenas escala de intervenção. Tomado
em termos geográficos, o localismo é inevitável e não constitui, em si
mesmo, um problema. Afinal, há problemas e conflitos que são locais.
Há, contudo, outra dimensão aqui
envolvida, que pode ou não coincidir com o localismo geográfico.
Trata-se da prática de uma cultura política fundada em um ativismo
personalizado, pela qual voluntarismo e genialidade autoatribuída
aparecem como o ápice da virtude política. Claro está que a vigência de
tal padrão exige a crença na existência de sujeitos extraordinários, com
recursos pessoais incomuns de clarividência e senso de oportunidade.
Duas intervenções políticas
recentes, ambas sob a forma de visita, do ex-presidente Lula podem ser
associadas ao predomínio da pior versão possível do axioma de O'Neill:
as visitas ao escritório do ex-ministro Jobim, da qual quase não mais
lembramos, e à residência de Paulo Maluf. Em ambas, o caráter de
intervenção personalizada e caprichosa, ao contrário de esgotar seus
efeitos locais, produz consequências de ordem mais geral.
Na visita ao ex-ministro Jobim, e
na semana seguinte à introdução do tema da verdade, em chave maior, no
debate público brasileiro - pela implantação da Comissão da Verdade -, o
mesmo tema escorre pelo ralo, com a diversidade de versões a respeito
do que ali se disse e das motivações dos dois interlocutores envolvidos
(o ex-presidente e o ministro Gilmar Mendes). Diante da indeterminação
da verdade, recomenda-se a incredulidade e a despresunção generalizada
de inocência. Desconfio, contudo, que o ministro Gilmar não tenha se
sentido infeliz com os efeitos públicos do evento.
Na visita ao deputado Paulo
Maluf, independentemente do resultado líquido do encontro, sua marca,
digamos, doutrinária é da lavra do ex-prócer arenista: foi sua doutrina -
um tanto surrada, é claro - que parece ter dado sentido doutrinário à
coisa, fixada no límpido enunciado: "Não existe mais direita e
esquerda". Temo que o efeito da sentença sobre as mentes dos
observadores comuns - ressalvo aqui os áulicos e os técnicos - seja
semelhante ao da apresentação a estudantes de geometria do conceito de
triângulo equilátero. Dir-se-á, tanto diante da sentença malufista,
quanto do conceito geométrico, a mesma coisa: "Isso é evidente"; "Assim
como um triângulo equilátero possui três lados iguais, não há diferença
alguma entre direita e esquerda". Em outros termos, a frase malufista,
tal como a demonstração do triângulo, traz consigo, com toda força, seu
próprio efeito de verdade.
O que é grave em tudo isso é que
não há passagem possível da geometria para a política; na geometria
demonstra-se, na política usam-se argumentos. Quando um argumento
político ganha foros de evidência geométrica, para além da
inautenticidade aí implicada, é de vitória sobre formulações rivais que
se trata. Em termos mais diretos, a teoria malufista passa por
verdadeira, dada a supressão de alguma possível teoria rival.
A natureza dessa supressão
merece atenção. Suspeito de que se trate de um esforço consistente e
cumulativo de autossupressão do possíveis versões alternativas ao
cinismo da indistinção. Por autossupressão entendo a adoção de um padrão
político típico de um estado de natureza, ou, se quisermos, de um grau
zero da política, no qual todos se igualam no pior e de modo necessário.
A rendição a tal realismo é devoradora, no campo da cultura política,
de expectativas e de patrimônios de difícil construção e consolidação,
mas de facílima dissipação. Disso sabe bem Paulo Maluf, com razões de
sobra para estar feliz.
Renato Lessa é professor titular de Teoria
Política da Universidade Federal Fluminense; investigador associado do
Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa; diretor
presidente do Instituto Ciência Hoje
FONTE: ALIÁS / O ESTADO DE S. PAULO
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