Oposição de Erundina à aproximação Lula-Maluf reforça tese de que neste país o ‘novo’ nunca foi novo
Mal começado, o século 21 trouxe
uma surpresa histórica: Lula se aliou a Maluf. O arco se fecha, e
queima-se um bom candidato à condução da megacidade de São Paulo,
capital financeira e cultural do País. Era só o que faltava para a
caracterização completa dessa "república de coalizões" estapafúrdias,
com seu futuro redesenhado nessa semana a partir da maior metrópole do
País. Hoje, que significa mesmo ser republicano?
Encerra-se um ciclo histórico,
deixando para trás as esperanças de efetiva e sólida renovação
político-social por conta do líder operário que nos anos 1970 pusera
paletó e gravata para encontrar-se, a pedido, com o chanceler alemão
Helmut Schmidt no hotel Hilton, centro de São Paulo, e explicar-lhe a
nova era e o novo sindicalismo, o que impactou o sistema civil-militar
de então. O mesmo bravo líder que enfrentou a ditadura a partir da
"república do ABC"; o paciencioso torneiro que disputou – até ganhar! –
eleições presidenciais contra forças de herdeiros da ditadura, da mídia e
do capital financeiro e, vencedor, encarnou a vanguarda das lutas
sociais na América Latina; esse líder não conseguiu fugir ao modelo
autocrático-burguês. Pena.
Qual a lógica da política na
terra bandeirante? Será possível fazer-se uma análise crítica das forças
políticas que comandam a cidade desde, digamos, os tempos da ditadura e
dos prefeitos biônicos até hoje? De que maneira os grupos
econômico-financeiros, empreiteiras e respectivas forças políticas se
revezaram na briga pelo poder? E o que tudo isso tem a ver com o modelo
caótico de cidade que temos hoje? Não parece haver dúvidas sobre a
importância da disputa municipal deste ano nas futuras eleições
presidencial e estadual, sobretudo quando se recorda que o PT, como o
antigo PTB e o atual PDT, sempre tiveram dificuldades eleitorais neste
Estado e nesta anticidade. Desafio para todos, inclusive para a
presidente Dilma, que vai melhorando em sua caminhada, sobretudo quando
guarda alguma distância dessa sombra que não quer calar.
A galeria dos ex-prefeitos
paulistanos ostenta de tudo, em termos humanos e de interesses do
capital. Nossa urbe, marcada pela preocupação com o bem comum (o "ben
comun", como se lê nas Atas da Câmara já no século 16) e os interesses
da coletividade, teve fortes lideranças, desde o Morgado de Mateus
(1765–1775) até o verdadeiro estadista que foi Prestes Maia, já no
século 20, estudado pelos eruditos Benedicto Lima de Toledo e Candido
Malta Campos, este em sua obra fundamental Rumos da Cidade. Ao
revisitarmos a galeria dos ex-prefeitos, sem preocupação de arrolamento,
nota-se que alguns são destacáveis (Faria Lima, Olavo Setúbal, Mário
Covas, Luiza Erundina, Marta Suplicy, José Serra), outros "esquecíveis"
(Jânio Quadros, Adhemar de Barros, Celso Pitta, Paulo Maluf). Mas
convidemos o (e)leitor a avaliar o que cada um/uma representou ou ainda
representa.
Na atualidade política, dizem os
incautos ou muito espertos que direita e esquerda são definições que já
não têm sentido. Carentes de leitura de livros, revistas e do mundo
contemporâneo, lhes bastaria constatar as diferenças na França entre os
projetos de um François Hollande e uma Marine Le Pen, ou no Brasil,
entre os de Covas e Pitta, ou entre os de Maluf e (digamos) Lula.
O problema é que, de tempos em
tempos, a capital paulista gera quasímodos políticos como Paulo Salim
Maluf, um dos pilares da ditadura de 1964. O ex-governador, ex-candidato
à Presidência da República e ex-prefeito de São Paulo (as ossadas de
Perus não permitem esquecê-lo), nessa aproximação com o ex-presidente
Lula com vistas à eleição municipal para escolha do novo prefeito da
maior cidade da América Latina, obriga o cidadão minimamente ético e
atento à História e a nossa vida política e social a se perguntar se não
estamos vivendo mais uma ficção de mau gosto. Nesta agora
cidade-pânico, penso no cidadão ativo que se recusa a ser alvo daquela
frase ácida de Raymundo Faoro, quando dizia que "o Brasil é um país de
otários", uma sentença dura do girondino radical, mas que se atualiza
cada manhã ao tomarmos conhecimento do noticiário nacional, ou tentarmos
entrar em um metrô (digamos, a Linha Vermelha, de Itaquera à Barra
Funda), ou simplesmente atravessar a rua na faixa de pedestres. O
problema é que o girondino gaúcho não logrou ensinar a radicalidade
responsável ao seu amigo pernambucano, que deveria ser adotada como
estratégia e referência em face dos "donos do poder". Ou seja, do
patronato político brasileiro, incluídos os últimos lamentáveis
ministros das Cidades, no ministério hoje nas mãos do PP de Maluf.
Pobres cidades brasileiras…
Neste país de amnésicos, vale
recordar o velho Marx, pois do PT, um partido de esquerda, poderíamos
esperar tudo, menos a aliança Lula-Maluf. Marx dizia que, ao longo da
história há fenômenos que podem se repetir: na primeira vez, ocorrem
como tragédia; na segunda, como farsa. Historicamente, na prática, Paulo
Maluf contradiz Marx, pois a primeira vez que ocupou posto público foi
farsa, a segunda também, a terceira idem, e assim sucessivamente, até
essa semana de sucesso… Mas Marx nunca foi bem lido por eles, ou talvez
nem sequer lido, e muito menos pensado, sobretudo em suas páginas
incômodas sobre os lumpesinatos – de onde provêm a massa dos eleitores
de Maluf – que, despidos de ideologia ou filosofia, topam qualquer
parada e constituem um freio para o avanço da História.
Como explicar o que aconteceu
essa semana em São Paulo, senão pela confluência, para fins eleiçoeiros,
de duas lideranças populistas para puxar as massas de seus respectivos
eleitores? De uma parte, as gentes de Maluf, liderança que mobiliza
moradores da periferia – muito menos do que se imagina, talvez Marta
mobilizasse mais –, mas também segmentos da pequena burguesia, o curral
decrescente e disperso de desavisados, "despossuídos" e politicamente
deseducados. E, de outra parte, os eleitores de Lula e do PT, que,
apesar das crescentes defecções, compõem o contingente daqueles que
creem que seu carismático líder, historicamente importante, ainda
representaria a possibilidade de superação, via reforma, do capitalismo
selvagem e da redenção dos trabalhadores. Ou seja, da fração da classe
operária que subiu ao paraíso, como espera subir a fração mais abaixo,
que aguarda sua vez (e a inadimplência) na antessala das agências de
automóveis.
Enfim, uma obra de antiarte
política, o encontro Maluf-Lula, que nem a burguesia mais esclarecida e
empenhada poderia imaginar, muito menos arquitetar um símile competidor
em suas hostes. O resultado, convenhamos, é a massificação bruta de
nosso capitalismo periférico, em que tudo vale nada. E que acelera o
processo de deseducação cívica e política dos jovens, o desencanto dos
maduros e a descrença dos democratas nos valores do socialismo
reformista. Nesse processo, desceram pelo ralo o contrato social, as
lutas de classes ("apagadas" justamente no período dos governos Lula),
da cidadania pura e dura, das visões progressistas de mundo e de
política. Enfim, dos valores humanistas. Recorde-se que Chico de
Oliveira, um dos ex-fundadores do PT, já concluíra em 2006 que "o papel
transformador do PT se esgotou" (Folha de S. Paulo, 24-7-2006, p. A-12).
Naquele mesmo ano, o conservador liberal Claudio Lembo sentenciava:
"Lula não tem tendência a ditador. É um operário do chão de fábrica.
Conhece a vida de verdade. É um pequeno burguês, apenas isso" (Folha de
S. Paulo, 31-12-2006). Após o levante do PCC em 15 de maio daquele ano,
em que a sociedade civil paulistana se acoelhou, a "paz" voltava a
reinar na capital do capital no Brasil…
A recusa da ex-prefeita Luiza
Erundina em participar dessa aproximação com Maluf vem reforçar a tese
de que, neste país velho e periférico, o "novo" não é novo, e nunca foi.
Rapidamente, o supostamente novo ficou velho, correndo de costas em
direção ao passado, como se vê na foto histórica, com o candidato
Fernando Haddad sem graça entre dois Poderosos Chefões, foto antes
inimaginável. A combativa ex-prefeita Erundina, com sua recusa em
participar do jogo, demonstra que o pragmatismo rasteiro não pode passar
por cima de valores éticos, na política como na vida. Convidado em
seguida para o posto, Pedro Dallari optou por trilhar o mesmo caminho da
ex-prefeita.
O fato é que a socialista
paraibano-paulistana criou um forte lema para a nova sociedade civil
brasileira: "Não aceito". E pôs em alerta seu próprio partido, que vem
crescendo e conquistando papel importante no cenário nacional. Que ele
só terá a ganhar com tal recusa, o tempo dirá. As lideranças burguesas
nacionais e as dos trabalhadores, sobretudo aquelas pessoas cidadãs
preocupadas com o ethos, a transparência e o mores positivo em política e
na formação de um Brasil democrático, republicano e moderno, têm agora
uma possibilidade de interlocução com gente de respeito. Quanto ao PT,
terá que rever o lugar da ex-prefeita Marta Suplicy no quadro local e
nacional; e o PSB de Eduardo Campos, de reavaliar o valor da ex-prefeita
Luiza Erundina. Do mesmo modo, os outros partidos, sobretudo o PMDB,
que não podem continuar a ter esse papel de vala comum dos descorados
camaleões.
Na metrópole paulistana,
testemunha-se nos dias atuais o fim da História. Mais precisamente, de
uma certa e bela História, que alimentou as expectativas e siderou
corações e mentes (lembram-se dessa expressão?) de três ou quatro
gerações. Não se trata, está claro, do fim da História de Francis
Fukuyama, ideólogo de sucesso e garoto-propaganda de um capitalismo
predatório "avançado" e desistoricizante. Ou seja, daquela forma de
organização econômico-social que só poderia dar no que deu, mas que
gerou a reação social e político-ideológica positiva que resultou na
eleição de Barack Obama – uma liderança bem formada política, cultural e
ideologicamente. No Brasil, o momento é de desilusão das gerações, mas
como a História continua, há que se buscar sinais de novos tempos, de
uma nova era.
Como analisar tantas
expectativas hoje frustradas? Neste país de tradição colonial, talvez a
ascensão de Lula e o crescimento do lulismo possam ser entendidos por
conta do velho gosto aristocrático pelo popular, cultivado até por
frações da alta burguesia e de classes médias ascendentes, um "apreço"
genérico por operários, sobretudo se qualificados e bem pagos. Operários
que não tivessem seus macacões sujos de graxa, que fossem conversáveis
(e conversíveis) como Lech Walesa, o polonês do Solidariedade. Tal
"apreço’ lembra os abraços que o grande abolicionista e aristocrático
Joaquim Nabuco dava nos militantes negros, eventualmente convidados a
subir em seu palanque, mantendo, porém, ligeira distância.
"Tudo que é sólido se desmancha
no ar", sabemos hoje. E os carismas e populismos, como o de Jânio
Quadros, também se desfizeram com o tempo, por inconsistência. Hoje,
ouvem-se os aplausos de plateias que, deseducadas e mal formadas,
eventualmente também são atraídas pela musicalidade da "canção nova" e
pela singeleza ideológico-teológica de padres-cantores e pregadores
espertos. Amanhã, quem sabe isso mude.
Nesta terra de carismas fáceis e
"miséria farta" (como diria Anísio Teixeira), em que a modernidade vem
sendo adiada com método, "conciliação" e rigor, talvez estejam sendo
geradas, em algum canto, novas visões de mundo, lideranças e mensagens
menos simplistas e grosseiras sobre o que vem a ser política, sociedade,
cultura. Pois a História continua…
Carlos Guilherme Mota, historiador, é
professor emérito da FFLCH-USP e professor titular da Universidade
Presbiteriana Mackenzie. Escreveu, entre outros livros, Ideologia da
cultura brasileira (Editora 34)
FONTE: ALIÁS / O ESTADO DE S. PAULO
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