O
episódio não é tão conhecido assim, aparece em duas ou três notas dos
célebres Cadernos do cárcere e vale lembrá-lo a partir do comentário de
um distante escritor italiano do século 16, Matteo Bandello. Narrado por
Bandello, envolve um dos grandes teóricos da política moderna, Nicolau
Maquiavel. Autor, entre outros, de uma clássica Arte da guerra, o
secretário florentino teria tido diante de si, certa vez, uma multidão
de soldados, a quem lhe caberia ordenar em formação de guerra mediante
os instrumentos então dispostos para tal, como tambores e cornetas.
Dispensável dizer que o grande teórico não conseguiu o intento,
desorganizando mais do que organizando, tendo sido socorrido por
Giovanni dalle Bande Nere, condottiero treinado - praticamente - na arte
militar e capaz por isso mesmo de controlar rapidamente a massa de
homens e armas em dispersão.
Pode-se interpretar essa pequena
história como uma crítica à insuficiência da pura teoria, mesmo
representada por um homem do quilate de Maquiavel, para gerar por si só
efeitos práticos imediatos. E, de fato, não raro a teoria, desamparada
de mediações, redunda em abstração distante da vida real, impotente
diante da riqueza múltipla das suas determinações. O inverso, contudo,
não raro também sucede: homens eminentemente práticos, com notável
sagacidade e treino nas coisas humanas - em particular, na difícil arte
da política, que alguns veem como contígua à própria guerra -, podem se
atirar de corpo e alma ao mundo real, onde se cruzam incessantemente
paixões e interesses, sem obter, contudo, o resultado almejado,
revelando, antes, uma certa incapacidade de entender as mediações da
política democrática. Esta última, pela sua própria natureza, impõe
limites e controles, freios e contrapesos, a todos os atores e forças
presentes na cena pública, o que só não ocorre em indesejadas situações
extremas de concentração e personalização do poder.
Poderia ser interpretada assim a
movimentação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e de alguns
dirigentes do seu partido na iminência do julgamento, pelo Supremo
Tribunal Federal (STF), dos acontecimentos que passaram à recente
história política como mensalão. A começar pela convocação de uma CPMI
"de governo" - como apontado por vários analistas - que,
desenvolvendo-se ao revés das comissões parlamentares convencionais, se
limitaria a dramatizar, como num psicodrama de enredo previamente
definido e pródigo em imagens, investigações policiais já em curso ou
próximas da conclusão.
E no roteiro aventuroso dessa
CPMI, ao que parece, constava a colocação no banco dos réus de
instituições essenciais da República, como, entre outras, o Ministério
Público - para não falar da tentativa de condicionar os votos de
ministros da própria Suprema Corte, segundo denúncia de um dos
integrantes deste mesmo tribunal.
Mera ação de "maquiavéis de
pensão", coadjuvada talvez por autoridades e ex-autoridades da República
pouco ciosas do que já se chamou de "liturgia do cargo"? Mais um sinal
dos tempos, em que o partido hegemônico da esquerda, sem ter (ainda)
desenvolvido uma cultura política democrática e reformista, se sente
refém de espasmos autoritários, de acordo com os quais, como sugeriu o
sóbrio Antonio Fernando de Souza, ex-procurador-geral da República,
poderia se arvorar como a única instância definidora do que é crime e o
que não é crime?
É provável que haja um pouco de
tudo isso, mas, antes de mais nada, a possibilidade mais forte é de que
ainda estejamos a viver a tumultuada trajetória de adaptação de corações
e mentes da esquerda (das suas várias vertentes) às instituições da
democracia política, necessariamente plurais e contraditórias, expressão
de uma sociedade civil relativamente livre de constrangimentos
estatais, na qual se cruzam, à moda do "Ocidente" político, as mais
variadas forças e inspirações ideais. O embate entre elas é legítimo e, a
depender da inteligência dos atores progressistas, pode produzir
equilíbrios socialmente avançados e culturalmente enriquecedores. Na
verdade, é isso o que torna impermeável este "Ocidente" a projetos
autoritários de mudança, fortemente dependentes de personalidades
carismáticas e da arregimentação, de cima para baixo, das instituições
da sociedade, projetos que ainda incendeiam a imaginação de parte não
desprezível da nossa esquerda.
No "Ocidente" político, entre
outras coisas, não deveria causar estranheza nem ser motivo de escândalo
a existência de uma imprensa liberal-conservadora. Em outros países e
em outros momentos, partidos da esquerda souberam criar jornais
memoráveis, com impacto duradouro na política e na própria cultura
nacional, como o L"Unità italiano e o L"Humanité francês, curiosamente
um caminho nunca testado, desde a hora da fundação, pelo principal
partido da esquerda do Brasil redemocratizado. No "Ocidente",
instituições como a Suprema Corte não vivem no vácuo nem são uma
instância neutra de poder, que decida, para citar o filósofo Ronald
Dworkin, com independência das concepções de moralidade pública de cada
juiz. Mas cabe esperar que suas decisões não sejam partidarizadas em
sentido estrito e se revistam de um conteúdo pedagógico, ensinando-nos,
como último recurso constitucional, o modo pelo qual se compõem as
desavenças inelimináveis da vida política.
No fundo, respeitado o direito
sagrado de defesa, a ser exercido em sua plenitude, boa parte das lições
do julgamento de agosto vai depender do comportamento da própria
esquerda, atingida na figura de alguns dos seus dirigentes mais
evidentes. Deveria estar excluído desse comportamento tudo aquilo que,
ao longo da História e em detrimento da grandeza de Maquiavel, tornou
infames ou negativamente conotados os adjetivos derivados do seu nome.
Tradutor, ensaísta. É um dos organizadores das obras de Gramsci no Brasil, site: www.gramsci.org
FONTE: O ESTADO DE S. PAULO
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