Creio que estamos ingressando na fase de exaustão de um modelo político que foi implantado pelos governos do PT, a partir de 2003. Este modelo, na medida em que logrou a reeleição de Lula e a eleição de Dilma, conquistou uma permanência no poder que se constituiu num ciclo político.
Não é incomum que governantes,
na fase ascensional da conquista do poder e na sua fase de estabilidade,
se aferrem a uma ilusória convicção da perenidade daquela condição.
Situação e oposição no Brasil estão contaminadas por esse sentimento,
que determina grande parte de suas ações. Porém nada é permanente na
política. Ciclos políticos têm começo, desenvolvimento e fim.
Os sinais que indicam o sucesso
de um novo modelo são fáceis de perceber: crescente apoio político,
capacidade decisória, popularidade de seus líderes. Já os sinais da
exaustão do modelo político são bem mais difíceis de perceber. É preciso
garimpá-los entre os fugidios fatos da conjuntura.
Os sinais evidentes da exaustão
de um modelo político não são muito diferentes daqueles que se
manifestam num organismo vivo. A exaustão de um sistema (social ou
orgânico) se verifica quando ele passa a exigir quantidades adicionais
de esforços e recursos para manter as mesmas condições de existência que
antes podia sustentar com menos esforços e recursos. Exaustão de um
regime político significa, pois, o esgotamento dos seus métodos, praxis e
a prioris para enfrentar desafios que em grande medida se originaram de
consequências não intencionadas de suas próprias escolhas. Esse
argumento se fortalece quando considera-se que a crescente incapacidade
para realizar os objetivos buscados resulta de um tipo de insucesso que
se deve ao excesso de poder, e não à falta de poder, como é costumeiro
acontecer.
Os governos Lula e Dilma
navegaram e navegam índices muito altos de aprovação, folgada maioria no
Congresso, sempre dispuseram de recursos orçamentários abundantes,
grande simpatia internacional, beneficiaram-se de confortável
estabilidade econômica e de vultosos investimentos externos. À oposição,
que não dispõe de nenhum desses recursos, não pode, pois, ser imputada a
responsabilidade para impedir ou dificultar a ação do governo. É
preciso, então, buscar dentro do aparato de governo as causas e razões
para os impasses causados por suas próprias decisões. É dessa
contradição que decorre o uso crescente de mais recursos para produzir
menos, o sinal mais evidente da exaustão.
O modelo vigente desde 2003 tem
no Estado a sua âncora política e econômica diante do mercado; o seu
recurso estratégico único para empregar a militância e compor maioria
legislativa; para a cooptação de empresários fornecedores do setor
público; para influir sobre os meios de comunicação; e para a reprodução
eleitoral do seu poder político. O Estado, então, é a força e a
fraqueza do modelo. A força dispensa demonstração. A fraqueza escondida
se revela quando é franqueado o limite a partir do qual o uso dos
poderes do Estado perde sua funcionalidade e a razão para legitimar sua
hegemonia diante da sociedade. Acredito que já estejamos dentro desse
limite.
São indicadores dessa situação a
reduzida capacidade resolutiva do governo para realizar os projetos que
anuncia; a "perversa" dinâmica em que os maiores problemas de hoje
resultam dos projetos de alta popularidade de ontem; o fato de que os
segmentos sociais recém-beneficiados com novas pautas de consumo são
frustrados pelas deficiências de infraestrutura, serviços básicos de
saúde e educação; e a persistência da violência, criminalidade e
impunidade em altos níveis.
São os novos motoristas
prejudicados no uso do carro por engarrafamentos, estradas precárias e
perigosas e falta de estacionamentos; os novos alunos para universidades
sem condições físicas de recebê-los; o parque industrial moderno sem a
mão de obra qualificada de que depende; e o novo Estado crescentemente
paralisado por critérios político-partidários de recrutamento e promoção
e pelo desprezo por critérios de mérito e desempenho.
Nada mais emblemático dessa
condição de corrida rumo à exaustão do que a própria incapacidade de
gastar. Matéria recentemente publicada mostrou que três Ministérios
principais responsáveis por obras de infraestrutura - Transportes,
Integração e Cidades - só investiram 14,9% do Orçamento (R$ 33 bilhões)
até maio de 2012. O recurso existe, está no Orçamento, a decisão de
usá-lo já foi tomada, a licitação já foi adjudicada, as obras já foram
cronogramadas, mas os resultados não aparecem, as inaugurações não
ocorrem. Para substituí-las, o governo anuncia novas decisões, novos
programas e novos benefícios. Intenções substituem realizações. A causa
dessa situação de esgotamento é a forma de operação do modelo político
vigente.
Tais distorções resultam de
alguns pressupostos operacionais que, no curto prazo, produzem
resultados, mas no médio prazo provocam contradições internas que o
incapacitam. Esses pressupostos talvez sejam:
*a convicção de que os poderes estatais são os instrumentos mais eficientes para organizar todos os setores da vida social;
*o imperativo da centralização administrativa do planejamento, decisão e execução; e o suposto da abundância de recursos para sustentar a política do sim e o critério partidário para funções administrativas.
O preço a pagar por essas
escolhas são uma crescente incapacidade administrativa; a escalada da
incompetência e da corrupção; e a falta de resolutividade nas ações de
governo. Tais limitações, a princípio, não são percebidas pela
população, mas, quando provocarem "externalidades" na vida das pessoas
comuns, abalarão a confiança e o apoio irrestrito ao governo, a solidez
do modelo e, no limite, a continuidade do ciclo que inaugurara.
Essa não é uma situação que se
escolha ou se evite. Ela é uma decorrência inafastável e incorrigível de
um modelo político que tem na hegemonia do Estado sobre a sociedade seu
objetivo, sua fonte de recursos, seu método de ação e sua
instrumentalidade.
* Professor de ciência
política na UFRGS, pós-graduado pela Universidade de Princeton, é
diretor presidente do site Política para políticos
(www.politicaparapoliticos.com.br)
FONTE: O ESTADO DE S. PAULO
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