quarta-feira, 27 de junho de 2012

A exaustão do 'Estado dependente' de governo (Francisco Ferraz)

  Creio que estamos ingressando na fase de exaustão de um modelo político que foi implantado pelos governos do PT, a partir de 2003. Este modelo, na medida em que logrou a reeleição de Lula e a eleição de Dilma, conquistou uma permanência no poder que se constituiu num ciclo político.

Não é incomum que governantes, na fase ascensional da conquista do poder e na sua fase de estabilidade, se aferrem a uma ilusória convicção da perenidade daquela condição. Situação e oposição no Brasil estão contaminadas por esse sentimento, que determina grande parte de suas ações. Porém nada é permanente na política. Ciclos políticos têm começo, desenvolvimento e fim.

Os sinais que indicam o sucesso de um novo modelo são fáceis de perceber: crescente apoio político, capacidade decisória, popularidade de seus líderes. Já os sinais da exaustão do modelo político são bem mais difíceis de perceber. É preciso garimpá-los entre os fugidios fatos da conjuntura.

Os sinais evidentes da exaustão de um modelo político não são muito diferentes daqueles que se manifestam num organismo vivo. A exaustão de um sistema (social ou orgânico) se verifica quando ele passa a exigir quantidades adicionais de esforços e recursos para manter as mesmas condições de existência que antes podia sustentar com menos esforços e recursos. Exaustão de um regime político significa, pois, o esgotamento dos seus métodos, praxis e a prioris para enfrentar desafios que em grande medida se originaram de consequências não intencionadas de suas próprias escolhas. Esse argumento se fortalece quando considera-se que a crescente incapacidade para realizar os objetivos buscados resulta de um tipo de insucesso que se deve ao excesso de poder, e não à falta de poder, como é costumeiro acontecer.

Os governos Lula e Dilma navegaram e navegam índices muito altos de aprovação, folgada maioria no Congresso, sempre dispuseram de recursos orçamentários abundantes, grande simpatia internacional, beneficiaram-se de confortável estabilidade econômica e de vultosos investimentos externos. À oposição, que não dispõe de nenhum desses recursos, não pode, pois, ser imputada a responsabilidade para impedir ou dificultar a ação do governo. É preciso, então, buscar dentro do aparato de governo as causas e razões para os impasses causados por suas próprias decisões. É dessa contradição que decorre o uso crescente de mais recursos para produzir menos, o sinal mais evidente da exaustão.

O modelo vigente desde 2003 tem no Estado a sua âncora política e econômica diante do mercado; o seu recurso estratégico único para empregar a militância e compor maioria legislativa; para a cooptação de empresários fornecedores do setor público; para influir sobre os meios de comunicação; e para a reprodução eleitoral do seu poder político. O Estado, então, é a força e a fraqueza do modelo. A força dispensa demonstração. A fraqueza escondida se revela quando é franqueado o limite a partir do qual o uso dos poderes do Estado perde sua funcionalidade e a razão para legitimar sua hegemonia diante da sociedade. Acredito que já estejamos dentro desse limite.

São indicadores dessa situação a reduzida capacidade resolutiva do governo para realizar os projetos que anuncia; a "perversa" dinâmica em que os maiores problemas de hoje resultam dos projetos de alta popularidade de ontem; o fato de que os segmentos sociais recém-beneficiados com novas pautas de consumo são frustrados pelas deficiências de infraestrutura, serviços básicos de saúde e educação; e a persistência da violência, criminalidade e impunidade em altos níveis.

São os novos motoristas prejudicados no uso do carro por engarrafamentos, estradas precárias e perigosas e falta de estacionamentos; os novos alunos para universidades sem condições físicas de recebê-los; o parque industrial moderno sem a mão de obra qualificada de que depende; e o novo Estado crescentemente paralisado por critérios político-partidários de recrutamento e promoção e pelo desprezo por critérios de mérito e desempenho.

Nada mais emblemático dessa condição de corrida rumo à exaustão do que a própria incapacidade de gastar. Matéria recentemente publicada mostrou que três Ministérios principais responsáveis por obras de infraestrutura - Transportes, Integração e Cidades - só investiram 14,9% do Orçamento (R$ 33 bilhões) até maio de 2012. O recurso existe, está no Orçamento, a decisão de usá-lo já foi tomada, a licitação já foi adjudicada, as obras já foram cronogramadas, mas os resultados não aparecem, as inaugurações não ocorrem. Para substituí-las, o governo anuncia novas decisões, novos programas e novos benefícios. Intenções substituem realizações. A causa dessa situação de esgotamento é a forma de operação do modelo político vigente.

Tais distorções resultam de alguns pressupostos operacionais que, no curto prazo, produzem resultados, mas no médio prazo provocam contradições internas que o incapacitam. Esses pressupostos talvez sejam:

*a convicção de que os poderes estatais são os instrumentos mais eficientes para organizar todos os setores da vida social;

*o imperativo da centralização administrativa do planejamento, decisão e execução; e o suposto da abundância de recursos para sustentar a política do sim e o critério partidário para funções administrativas.

O preço a pagar por essas escolhas são uma crescente incapacidade administrativa; a escalada da incompetência e da corrupção; e a falta de resolutividade nas ações de governo. Tais limitações, a princípio, não são percebidas pela população, mas, quando provocarem "externalidades" na vida das pessoas comuns, abalarão a confiança e o apoio irrestrito ao governo, a solidez do modelo e, no limite, a continuidade do ciclo que inaugurara.

Essa não é uma situação que se escolha ou se evite. Ela é uma decorrência inafastável e incorrigível de um modelo político que tem na hegemonia do Estado sobre a sociedade seu objetivo, sua fonte de recursos, seu método de ação e sua instrumentalidade.

* Professor de ciência política na UFRGS, pós-graduado pela Universidade de Princeton, é diretor presidente do site Política para políticos (www.politicaparapoliticos.com.br)

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO

terça-feira, 26 de junho de 2012

Coisas de um neocomunista

Esses neocomunistas dizem cada coisa:
“O Lula assumiu em 2003 sob a desconfiança de que era um Fidel Castro brasileiro. Achava que ele tinha que ter estágio no governo brasileiro até para o povo se decepcionar com ele.
Mas, da maneira que exerceu a Presidência, diria que ele está à minha direita. Eu, perto do Lula, sou comunista.
Eu não teria tanta vontade de defender os bancos e as multinacionaiscomo ele defende. Quando ele tira imposto dos carros, tira da Volkswagen, da Ford, da Mercedes.
Quando defende sistema bancário, defende quem? Os banqueiros.
Eu, Paulo Maluf, industrial, estou à esquerda do Lula. De modo que ele foi uma grata revelação do livre mercado, da livre iniciativa”.
Paulo Maluf em entrevista a FSP – 26/06/12.

Segurança (muito tempo) perdida

Perguntinhas básicas de Roberto Garcia Simões no artigo "Segurança perdida":
1) Por que o Conselho Estadual de Segurança Pública, criado em 2010, não foi instalado? "A lei será revogada ou cumprida?";
2) A promessa do governador de acompanhar e coordenar as ações integradas saiu da agenda, "esse alvo encolheu"?; 
3) E o Gabinete de Gestão Integrada de Segurança Pública e Defesa Social - CGI/ES "se reuniu? Decidiu sobre o quê? Ainda não se encontrou, tal como o 1º GGI, instalado pelo presidente Lula e pelo governador Paulo Hartung (abril 2003). Nove anos perdidos."
4) Duas Secretarias, SESP e Ações Estratégicas. Duplicidade de finalidade ou integração institucional? "Qual é a real divisão de trabalho entre essas secretarias? Quem fala sobre o quê? Ou perde-se tempo em indecisões?;
5) Proliferam-se instituições. "...o acompanhamento contínuo e a avaliação deixam desejar". "Nem o Conselho nem o CGI funcionam".
Fechando a arguição, pergunta: "quando uma política integrada e participativa de segurança, sob a coordenação efetiva do governador, contribuirá para um Estado Seguro?"

Enquanto nos enrrolamos com essas questões básicas no Espírito Santo, no Rio de Janeiro o secretário Beltrame divulga dados que mostram que a taxa de homicídios dolosos no Estado do Rio, em maio, foi a mais baixa desde 1991. Mais: a taxa de homicídios nos cinco meses do ano está em 10,9, perto do tolerado pela Organização Mundial de Saúde (10). Informações da coluna do Ancelmo Gois dessa terça, 26.
E nós? Bem, nós continuamos a ocupar o segundo lugar no ranking nacional de homicídios. Só para lembrar, somente superados pelas Alagoas, que, registre, lança plano emergencial de combate a violência.

Saúde reprovada (assim com a ...)

Caindo na real ou uma temporada de más notícias (a gosto do cliente). A saúde pública no Espírito Santo reprovada (assim com a educação e a segurança). De zero a dez, para uma média nacional de 5,29, o Espírito Santo obtém a nota de 2,07.
Mal na fotografia? Péssimo: o pior resultado levantado pela Caravana Nacional de Saúde, edição 2012, coordenada pelo Conselho Federal de Medicina.
Não fosse suficiente, o município brasileiro que teve a pior "nota" também é do Espírito Santo. A honraria coube a Pedro Canário com o humilhante índice de 1,5, resultado que reflete a situação de uma região, o Norte capixaba, degradada e não contemplada pelos projetos de desenvolvimento.
Para uma população que passou a primeira década do século XXI anestesiada pelo marketing eleitoreiro e político do "Novo Espírito Santo" ou da tal reconstrução de um estado sucateado, fica difícil entender ou explicar como esses números da área social aparecem agora como a dura realidade do nosso estado.

O Febeapá ataca em Vila Velha


Sérgio Porto, o imortal Stanislaw Ponte Preta, fez sucesso com o FEBEAPÁ (Festival da besteira que assola o país). Nessa série, registrou os causos que faziam a rotina de non sense das ações dos guardiões da nova ordem implantada pelo regime de 64. Coisas como a apreensão do livro "O vermelho e o negro" de Stendhal (publicada em 1830) como literatura comunista ou a convocação de Sófocles (497 AC) para interrogatório pela suspeita de atividades subversivas em função da montagem no Brasil da peça Antígona. 
Agora, baixou o espírito de FEBEAPÁ na prefeitura de Vila Velha. Pois não é que a Fiscalização baixou no calçadão da orla em Itapoã e proibiu o médico aposentado José Lofego de continuar a exercitar o seu hobby de tocar violão nas manhãs de domingo sob alegação de prática ilegal. Além disso, os fiscais alegaram que a música estaria sendo tocada em volume muito alto. Essa piada do som alto só perde para aquela da proibição do frescobol em frente a um prédio da Praia da Costa em virtude do "barulho" provocado pelas bolinhas ao tocar as raquetes.
Durante anos, sob uma mangueira do calçadão, ali na altura da final da Resplendor, Lofego exercitou sua arte de exímio violonista e solista de clássicos da Bossa Nova. Eu, como muita gente, parava ou sentava nas imediações, para gastar um bom tempo ouvindo o violão suave de Lofego. As manhãs de domingo no calçadão não serão mais as mesmas. Que o bom senso volte a imperar em Vila Velha.

domingo, 24 de junho de 2012

O 'mensalão' e a dialética entre forma e conteúdo (Luiz Werneck Vianna)

Ainda é cedo, mas marinheiros treinados em perscrutar o horizonte, instalados no cesto da gávea no maior mastro do navio, sondando as proximidades do mês de agosto, data marcada para o julgamento do processo do "mensalão" no Supremo Tribunal Federal (STF), já alardeiam mar tranquilo à frente. Há pouco, uma reunião pouco republicana entre um ex-presidente da República, um membro do STF e um ex-presidente dessa alta Corte, influente homem público, no escritório desse último, carregou os céus de nuvens sombrias, mas a sua rápida e surpreendente dissipação só veio confirmar o diagnóstico de tempo benigno para os navegantes.

A previsão não deixa de ser espantosa, vistas as coisas a partir do que temos experimentado ao longo da nossa história. Desde sempre, como um habitus entranhado na cultura nacional, estivemos obedientes a uma regra não explícita que se traduziria no primado que as questões de conteúdo deveriam exercer sobre as de forma. Tal habitus - para continuar flertando com muita liberdade com categorias do sociólogo Pierre Bourdieu - como que estaria inscrito em nosso próprio corpo, convertido, pelo uso continuado, numa espécie de ideologia natural nascida das próprias condições singulares em que se teria forjado o nosso Estado-nação, em que teria cabido ao primeiro termo a criação demiúrgica do segundo.

Essa particularíssima condição da nossa formação não escapou ao gênio de Euclides da Cunha, que a ela atribuiu, em texto de À margem da história, o caráter do excepcionalismo brasileiro, um país que teria nascido a partir de uma teoria política a ser, gradual e paulatinamente, internalizada pela sociedade em busca dos ideais civilizatórios do Ocidente.

Na tradição dessa leitura, a construção da ordem no Estado nascente seria uma criação dos juristas imperiais, magistrados que, encarnando os desígnios das elites à testa do Estado, imporiam vertebração e o sentimento de unidade a uma sociedade entregue às suas paixões e ao particularismo dos potentados locais, tal como na demonstração clássica de José Murilo de Carvalho. O conteúdo nos viria de cima e os procedimentos formais, declarados no estatuto liberal que nos regia, deveriam ser confrontados, de um lado, com o poder discricionário dos governantes - o Direito Administrativo claramente hegemônico diante dos demais ramos do Direito - e, de outro lado, com o poder de fato das elites senhoras de terras e do sistema produtivo da época.

Sob esse duplo contingenciamento, os procedimentos e as formas próprias ao estatuto político liberal deveriam ceder quando importassem ameaças de lesões ao plano da ordem que se queria impor ou mesmo se viessem a afetar interesses dos potentados locais em seus domínios patrimoniais. Sem um Poder Judiciário autônomo diante do Poder Executivo e na ausência de uma esfera pública, cuja formação efetiva somente vai germinar com as lutas abolicionistas, a modelagem discricionária do Direito Administrativo se vai comportar como o instrumento mais adequado para que o conteúdo ideado pelo vértice político procurasse suas vias de realização.

Essa dialética difícil entre forma e conteúdo se vai projetar no cenário republicano, o Estado Novo tendo significado um momento de exasperação da imposição do conteúdo sobre a forma, aí não mais orientado pelos ideais civilizatórios, e, sim, pelos da modernização do País. A Carta de 1937, em seu artigo 135, comanda sem subterfúgios que a precedência "do pensamento dos interesses da Nação" deveria se impor aos interesses individuais, cabendo ao Estado a leitura e vocalização desse pensamento. Na fórmula, pois, o pensamento da Nação se substantiva, enquanto os procedimentos para sua realização são meramente instrumentais.

O curso do processo de modernização subsequente, em boa parte cumprido em contexto mais amável às instituições do liberalismo político - salvo o hiato do regime militar -, preservou essas marcas congênitas à nossa formação, como no governo JK, em que se contornou o Poder Legislativo com a criação dos então chamados grupos executivos, a fim de viabilizar, pela ação discricionária da administração pública, seu programa de metas para a aceleração da industrialização do País.

A Carta de 1988, ao instituir os termos da democracia política no País, deu início a uma mutação em nossa vida republicana, ainda em andamento e não de todo percebida, qual seja a que se expressa na tendência de converter o constitucionalismo democrático em novo paradigma dominante no sistema jurídico-político, afetando as antigas primazias exercidas pelo Código Civil e o poder discricionário das esferas administrativas. A emergência dessa tendência - escorada por institutos próprios, entre outros, o Ministério Público, as ações civis públicas e as de controle da constitucionalidade das leis - modera, quando não inibe, o decisionismo de nossa tradição política.

Pode-se entender o assim chamado processo do "mensalão" como uma tentativa de reação anacrônica do conteúdo contra a forma, pois o que, na verdade, se intentava, embora por métodos nada republicanos, era insular a vontade política dos governantes, no suposto de que somente deles provinha a melhor interpretação dos interesses da Nação. A tentativa se frustrou, foi criminalizada e, agora, chega aos tribunais. Quanto à sorte do seu julgamento, a essa altura se trata de questão menor, confinada às artes dos especialistas em técnica jurídica, uma vez que, no que importa, a sociedade e suas instituições já demonstraram recusar aos governantes o monopólio para decidir sobre quais são os verdadeiros interesses da Nação. No mais, é como se dizia antes da invenção da ultrassonografia: nunca se sabe o que vai sair de barriga de mulher ou da cabeça de um juiz.

Luiz Werneck Vianna, professor-pesquisador da Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio.

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO

Rendição ao realismo (Renato Lessa)

Visitas de Lula ao escritório do ex-ministro Jobim e à residência de Maluf mostram caráter de intervenção personalizada e caprichosa

O lendário deputado norte-americano Tip O'Neill, presidente da Casa dos Representantes - a Câmara de Deputados dos EUA - de 1977 a 1987, certa feita pontificou que "toda política é local". Democrata da velha e boa cepa rooseveltiana, hoje, para os padrões da política praticada ao norte do Rio Grande, O'Neill seria considerado um esquerdista ferrenho. Sua frase célebre admite distintas interpretações. Em comentário a uma biografia recente de O'Neill, o ex-governador de Nova York Mario Cuomo definiu a frase "all politics is local" como um motto do velho prócer democrata, falecido em 1994. A frase seria portadora da ideia forte de que o exercício da representação política exige vínculo com os representados e escuta para suas expectativas e apreensões. Em outros termos, o sistema representativo, fundado na necessária distinção entre representantes e representados, só faz sentido se houver vínculos entre ambos, não limitados aos jogos de captura de sufrágio.

Não é, contudo, essa a única maneira possível de entender a sentença de O'Neill. Em registro um tanto cínico, localismo pode significar tão somente precipitação e dissolução da política na pequena guerrilha, na esperteza da pequena área, na adoção de uma subespécie de maquiavelismo de fancaria. Precipitação que acaba por implicar uma continuada ressignificação da política, pela qual a lógica de curto prazo e o apetite infrene apresentam-se como devoradoras de patrimônios políticos e simbólicos duramente construídos. Localismo, nessa chave, não indica apenas escala de intervenção. Tomado em termos geográficos, o localismo é inevitável e não constitui, em si mesmo, um problema. Afinal, há problemas e conflitos que são locais.

Há, contudo, outra dimensão aqui envolvida, que pode ou não coincidir com o localismo geográfico. Trata-se da prática de uma cultura política fundada em um ativismo personalizado, pela qual voluntarismo e genialidade autoatribuída aparecem como o ápice da virtude política. Claro está que a vigência de tal padrão exige a crença na existência de sujeitos extraordinários, com recursos pessoais incomuns de clarividência e senso de oportunidade.

Duas intervenções políticas recentes, ambas sob a forma de visita, do ex-presidente Lula podem ser associadas ao predomínio da pior versão possível do axioma de O'Neill: as visitas ao escritório do ex-ministro Jobim, da qual quase não mais lembramos, e à residência de Paulo Maluf. Em ambas, o caráter de intervenção personalizada e caprichosa, ao contrário de esgotar seus efeitos locais, produz consequências de ordem mais geral.

Na visita ao ex-ministro Jobim, e na semana seguinte à introdução do tema da verdade, em chave maior, no debate público brasileiro - pela implantação da Comissão da Verdade -, o mesmo tema escorre pelo ralo, com a diversidade de versões a respeito do que ali se disse e das motivações dos dois interlocutores envolvidos (o ex-presidente e o ministro Gilmar Mendes). Diante da indeterminação da verdade, recomenda-se a incredulidade e a despresunção generalizada de inocência. Desconfio, contudo, que o ministro Gilmar não tenha se sentido infeliz com os efeitos públicos do evento.

Na visita ao deputado Paulo Maluf, independentemente do resultado líquido do encontro, sua marca, digamos, doutrinária é da lavra do ex-prócer arenista: foi sua doutrina - um tanto surrada, é claro - que parece ter dado sentido doutrinário à coisa, fixada no límpido enunciado: "Não existe mais direita e esquerda". Temo que o efeito da sentença sobre as mentes dos observadores comuns - ressalvo aqui os áulicos e os técnicos - seja semelhante ao da apresentação a estudantes de geometria do conceito de triângulo equilátero. Dir-se-á, tanto diante da sentença malufista, quanto do conceito geométrico, a mesma coisa: "Isso é evidente"; "Assim como um triângulo equilátero possui três lados iguais, não há diferença alguma entre direita e esquerda". Em outros termos, a frase malufista, tal como a demonstração do triângulo, traz consigo, com toda força, seu próprio efeito de verdade.

O que é grave em tudo isso é que não há passagem possível da geometria para a política; na geometria demonstra-se, na política usam-se argumentos. Quando um argumento político ganha foros de evidência geométrica, para além da inautenticidade aí implicada, é de vitória sobre formulações rivais que se trata. Em termos mais diretos, a teoria malufista passa por verdadeira, dada a supressão de alguma possível teoria rival.

A natureza dessa supressão merece atenção. Suspeito de que se trate de um esforço consistente e cumulativo de autossupressão do possíveis versões alternativas ao cinismo da indistinção. Por autossupressão entendo a adoção de um padrão político típico de um estado de natureza, ou, se quisermos, de um grau zero da política, no qual todos se igualam no pior e de modo necessário. A rendição a tal realismo é devoradora, no campo da cultura política, de expectativas e de patrimônios de difícil construção e consolidação, mas de facílima dissipação. Disso sabe bem Paulo Maluf, com razões de sobra para estar feliz.


Renato Lessa é professor titular de Teoria Política da Universidade Federal Fluminense; investigador associado do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa; diretor presidente do Instituto Ciência Hoje

FONTE: ALIÁS / O ESTADO DE S. PAULO

'Aliança nos jardins de Maluf foi rendição' (Luiz Werneck Vianna)

Sociólogo critica acordo do PT com malufismo e diz que limites como a defesa da identidade 'não podem ser ultrapassados'

Fernando Gallo

"A política ideal não pode prescindir da política real", diz Luiz Werneck Vianna, professor da Faculdade de Sociologia da PUC-Rio ao avaliar o pacto entre o PT e o PP de Paulo Maluf, que motivou a desistência de Luiza Erundina (PSB) da vice de Fernando Haddad. Nesta entrevista ao Estado, ele, porém, avalia: o PT ultrapassou o limite da defesa de sua identidade. "Fazer a aliança nos jardins da casa do Maluf é uma rendição."

Há, no episódio envolvendo Erundina, Maluf e o PT, o debate sobre a política ideal e a política real. Qual deve prevalecer?

A política ideal não pode prescindir da política real.

Qual o limite das concessões?

Essa aliança foi feita para realizar que valores? Ela serve para que o partido se fortaleça? Certos limites não podem ser ultrapassados. Um deles é a defesa da sua identidade. Que partido é esse que abdica do seu DNA e a todo momento faz mercado disso para obter vantagens? Essa aliança compromete o PT.

O PT precisa efetivamente dessa concessão por mais minutos de televisão? Em uma sociedade de massas, como a nossa, seria possível vencer sem eles?

Sem tempo nenhum é impossível. Mas o partido tinha tempo, e outras vantagens poderiam ser exploradas. Em nome desse tempo, a aliança vai interferir na imagem do candidato.

O PT argumenta que dirige o carro, e os aliados tidos como indesejáveis são apenas caronas.

Essa aliança não encontra sustentação em motivos fortes. O tamanho do perigo não justifica essa manobra audaciosa.

O partido avalia que o governo Lula não teria tanto êxito sem um amplo arco de alianças.

O mesmo pode-se dizer em relação ao governo Fernando Henrique. Mas a identidade de PSDB e PT tem uma diferença na formação, no histórico político. O PT se pretendia uma força mobilizadora da sociedade para a mudança. Essa aliança com Maluf demonstra que esse caminho foi abandonado.

As mudanças ocorridas na última década teriam sido possíveis sem as alianças que o PT fez?

Não podemos olhar a política apenas por esse ângulo estreito dos partidos. Vivemos uma mutação de enormes proporções na história republicana brasileira. Essa mutação vem significando uma cada vez maior redução da capacidade decisória do governo diante da sociedade.

Estamos vivendo a hegemonia da pequena política?

Há grande política agora no País. A Rio+20 é um momento de grande política. Houve uma passeata no Rio de Janeiro, praticamente não anunciada, que reuniu 30 mil pessoas em nome da defesa de múltiplos direitos.

É tão simbólico o sacramento da aliança na casa de Maluf?

Vários analistas já observaram que o mundo simbólico tem a sua esfera própria. A aliança podia ter sido feita nos corredores palacianos. Fazê-la nos jardins da casa do Maluf pareceu mais como uma rendição. No Pacto Ribbentrop o Stalin não apertou a mão do Hitler! Ele mandou um embaixador.

O PT defende a tese de Paulo Freire, de que é preciso "unir os diferentes para combater os antagônicos". Faz sentido?

Faz. Desde que se tenha muito claro contra quem se aplica o antagonismo. É contra uma outra versão da social-democracia brasileira, o PSDB? Não chega a ser um antagonismo, uma oposição de classe contra classe.

O Maluf não é mais antagônico ao PT do que o PSDB?

Sim. A política brasileira está desarrumada porque você tem a mesma formação político-ideológica, a da social-democracia, arrumada em dois diferentes partidos, o PT e o PSDB. O PSDB é um antagonista falso. O verdadeiro antagonista deveria ser o atraso. O Sarney, o Maluf.

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO

Neocoronelismo urbano (Carlos Guilherme Mota)

Oposição de Erundina à aproximação Lula-Maluf reforça tese de que neste país o ‘novo’ nunca foi novo

Mal começado, o século 21 trouxe uma surpresa histórica: Lula se aliou a Maluf. O arco se fecha, e queima-se um bom candidato à condução da megacidade de São Paulo, capital financeira e cultural do País. Era só o que faltava para a caracterização completa dessa "república de coalizões" estapafúrdias, com seu futuro redesenhado nessa semana a partir da maior metrópole do País. Hoje, que significa mesmo ser republicano?

Encerra-se um ciclo histórico, deixando para trás as esperanças de efetiva e sólida renovação político-social por conta do líder operário que nos anos 1970 pusera paletó e gravata para encontrar-se, a pedido, com o chanceler alemão Helmut Schmidt no hotel Hilton, centro de São Paulo, e explicar-lhe a nova era e o novo sindicalismo, o que impactou o sistema civil-militar de então. O mesmo bravo líder que enfrentou a ditadura a partir da "república do ABC"; o paciencioso torneiro que disputou – até ganhar! – eleições presidenciais contra forças de herdeiros da ditadura, da mídia e do capital financeiro e, vencedor, encarnou a vanguarda das lutas sociais na América Latina; esse líder não conseguiu fugir ao modelo autocrático-burguês. Pena.

Qual a lógica da política na terra bandeirante? Será possível fazer-se uma análise crítica das forças políticas que comandam a cidade desde, digamos, os tempos da ditadura e dos prefeitos biônicos até hoje? De que maneira os grupos econômico-financeiros, empreiteiras e respectivas forças políticas se revezaram na briga pelo poder? E o que tudo isso tem a ver com o modelo caótico de cidade que temos hoje? Não parece haver dúvidas sobre a importância da disputa municipal deste ano nas futuras eleições presidencial e estadual, sobretudo quando se recorda que o PT, como o antigo PTB e o atual PDT, sempre tiveram dificuldades eleitorais neste Estado e nesta anticidade. Desafio para todos, inclusive para a presidente Dilma, que vai melhorando em sua caminhada, sobretudo quando guarda alguma distância dessa sombra que não quer calar.

A galeria dos ex-prefeitos paulistanos ostenta de tudo, em termos humanos e de interesses do capital. Nossa urbe, marcada pela preocupação com o bem comum (o "ben comun", como se lê nas Atas da Câmara já no século 16) e os interesses da coletividade, teve fortes lideranças, desde o Morgado de Mateus (1765–1775) até o verdadeiro estadista que foi Prestes Maia, já no século 20, estudado pelos eruditos Benedicto Lima de Toledo e Candido Malta Campos, este em sua obra fundamental Rumos da Cidade. Ao revisitarmos a galeria dos ex-prefeitos, sem preocupação de arrolamento, nota-se que alguns são destacáveis (Faria Lima, Olavo Setúbal, Mário Covas, Luiza Erundina, Marta Suplicy, José Serra), outros "esquecíveis" (Jânio Quadros, Adhemar de Barros, Celso Pitta, Paulo Maluf). Mas convidemos o (e)leitor a avaliar o que cada um/uma representou ou ainda representa.

Na atualidade política, dizem os incautos ou muito espertos que direita e esquerda são definições que já não têm sentido. Carentes de leitura de livros, revistas e do mundo contemporâneo, lhes bastaria constatar as diferenças na França entre os projetos de um François Hollande e uma Marine Le Pen, ou no Brasil, entre os de Covas e Pitta, ou entre os de Maluf e (digamos) Lula.

O problema é que, de tempos em tempos, a capital paulista gera quasímodos políticos como Paulo Salim Maluf, um dos pilares da ditadura de 1964. O ex-governador, ex-candidato à Presidência da República e ex-prefeito de São Paulo (as ossadas de Perus não permitem esquecê-lo), nessa aproximação com o ex-presidente Lula com vistas à eleição municipal para escolha do novo prefeito da maior cidade da América Latina, obriga o cidadão minimamente ético e atento à História e a nossa vida política e social a se perguntar se não estamos vivendo mais uma ficção de mau gosto. Nesta agora cidade-pânico, penso no cidadão ativo que se recusa a ser alvo daquela frase ácida de Raymundo Faoro, quando dizia que "o Brasil é um país de otários", uma sentença dura do girondino radical, mas que se atualiza cada manhã ao tomarmos conhecimento do noticiário nacional, ou tentarmos entrar em um metrô (digamos, a Linha Vermelha, de Itaquera à Barra Funda), ou simplesmente atravessar a rua na faixa de pedestres. O problema é que o girondino gaúcho não logrou ensinar a radicalidade responsável ao seu amigo pernambucano, que deveria ser adotada como estratégia e referência em face dos "donos do poder". Ou seja, do patronato político brasileiro, incluídos os últimos lamentáveis ministros das Cidades, no ministério hoje nas mãos do PP de Maluf. Pobres cidades brasileiras…

Neste país de amnésicos, vale recordar o velho Marx, pois do PT, um partido de esquerda, poderíamos esperar tudo, menos a aliança Lula-Maluf. Marx dizia que, ao longo da história há fenômenos que podem se repetir: na primeira vez, ocorrem como tragédia; na segunda, como farsa. Historicamente, na prática, Paulo Maluf contradiz Marx, pois a primeira vez que ocupou posto público foi farsa, a segunda também, a terceira idem, e assim sucessivamente, até essa semana de sucesso… Mas Marx nunca foi bem lido por eles, ou talvez nem sequer lido, e muito menos pensado, sobretudo em suas páginas incômodas sobre os lumpesinatos – de onde provêm a massa dos eleitores de Maluf – que, despidos de ideologia ou filosofia, topam qualquer parada e constituem um freio para o avanço da História.

Como explicar o que aconteceu essa semana em São Paulo, senão pela confluência, para fins eleiçoeiros, de duas lideranças populistas para puxar as massas de seus respectivos eleitores? De uma parte, as gentes de Maluf, liderança que mobiliza moradores da periferia – muito menos do que se imagina, talvez Marta mobilizasse mais –, mas também segmentos da pequena burguesia, o curral decrescente e disperso de desavisados, "despossuídos" e politicamente deseducados. E, de outra parte, os eleitores de Lula e do PT, que, apesar das crescentes defecções, compõem o contingente daqueles que creem que seu carismático líder, historicamente importante, ainda representaria a possibilidade de superação, via reforma, do capitalismo selvagem e da redenção dos trabalhadores. Ou seja, da fração da classe operária que subiu ao paraíso, como espera subir a fração mais abaixo, que aguarda sua vez (e a inadimplência) na antessala das agências de automóveis.

Enfim, uma obra de antiarte política, o encontro Maluf-Lula, que nem a burguesia mais esclarecida e empenhada poderia imaginar, muito menos arquitetar um símile competidor em suas hostes. O resultado, convenhamos, é a massificação bruta de nosso capitalismo periférico, em que tudo vale nada. E que acelera o processo de deseducação cívica e política dos jovens, o desencanto dos maduros e a descrença dos democratas nos valores do socialismo reformista. Nesse processo, desceram pelo ralo o contrato social, as lutas de classes ("apagadas" justamente no período dos governos Lula), da cidadania pura e dura, das visões progressistas de mundo e de política. Enfim, dos valores humanistas. Recorde-se que Chico de Oliveira, um dos ex-fundadores do PT, já concluíra em 2006 que "o papel transformador do PT se esgotou" (Folha de S. Paulo, 24-7-2006, p. A-12). Naquele mesmo ano, o conservador liberal Claudio Lembo sentenciava: "Lula não tem tendência a ditador. É um operário do chão de fábrica. Conhece a vida de verdade. É um pequeno burguês, apenas isso" (Folha de S. Paulo, 31-12-2006). Após o levante do PCC em 15 de maio daquele ano, em que a sociedade civil paulistana se acoelhou, a "paz" voltava a reinar na capital do capital no Brasil…

A recusa da ex-prefeita Luiza Erundina em participar dessa aproximação com Maluf vem reforçar a tese de que, neste país velho e periférico, o "novo" não é novo, e nunca foi. Rapidamente, o supostamente novo ficou velho, correndo de costas em direção ao passado, como se vê na foto histórica, com o candidato Fernando Haddad sem graça entre dois Poderosos Chefões, foto antes inimaginável. A combativa ex-prefeita Erundina, com sua recusa em participar do jogo, demonstra que o pragmatismo rasteiro não pode passar por cima de valores éticos, na política como na vida. Convidado em seguida para o posto, Pedro Dallari optou por trilhar o mesmo caminho da ex-prefeita.

O fato é que a socialista paraibano-paulistana criou um forte lema para a nova sociedade civil brasileira: "Não aceito". E pôs em alerta seu próprio partido, que vem crescendo e conquistando papel importante no cenário nacional. Que ele só terá a ganhar com tal recusa, o tempo dirá. As lideranças burguesas nacionais e as dos trabalhadores, sobretudo aquelas pessoas cidadãs preocupadas com o ethos, a transparência e o mores positivo em política e na formação de um Brasil democrático, republicano e moderno, têm agora uma possibilidade de interlocução com gente de respeito. Quanto ao PT, terá que rever o lugar da ex-prefeita Marta Suplicy no quadro local e nacional; e o PSB de Eduardo Campos, de reavaliar o valor da ex-prefeita Luiza Erundina. Do mesmo modo, os outros partidos, sobretudo o PMDB, que não podem continuar a ter esse papel de vala comum dos descorados camaleões.

Na metrópole paulistana, testemunha-se nos dias atuais o fim da História. Mais precisamente, de uma certa e bela História, que alimentou as expectativas e siderou corações e mentes (lembram-se dessa expressão?) de três ou quatro gerações. Não se trata, está claro, do fim da História de Francis Fukuyama, ideólogo de sucesso e garoto-propaganda de um capitalismo predatório "avançado" e desistoricizante. Ou seja, daquela forma de organização econômico-social que só poderia dar no que deu, mas que gerou a reação social e político-ideológica positiva que resultou na eleição de Barack Obama – uma liderança bem formada política, cultural e ideologicamente. No Brasil, o momento é de desilusão das gerações, mas como a História continua, há que se buscar sinais de novos tempos, de uma nova era.

Como analisar tantas expectativas hoje frustradas? Neste país de tradição colonial, talvez a ascensão de Lula e o crescimento do lulismo possam ser entendidos por conta do velho gosto aristocrático pelo popular, cultivado até por frações da alta burguesia e de classes médias ascendentes, um "apreço" genérico por operários, sobretudo se qualificados e bem pagos. Operários que não tivessem seus macacões sujos de graxa, que fossem conversáveis (e conversíveis) como Lech Walesa, o polonês do Solidariedade. Tal "apreço’ lembra os abraços que o grande abolicionista e aristocrático Joaquim Nabuco dava nos militantes negros, eventualmente convidados a subir em seu palanque, mantendo, porém, ligeira distância.

"Tudo que é sólido se desmancha no ar", sabemos hoje. E os carismas e populismos, como o de Jânio Quadros, também se desfizeram com o tempo, por inconsistência. Hoje, ouvem-se os aplausos de plateias que, deseducadas e mal formadas, eventualmente também são atraídas pela musicalidade da "canção nova" e pela singeleza ideológico-teológica de padres-cantores e pregadores espertos. Amanhã, quem sabe isso mude.

Nesta terra de carismas fáceis e "miséria farta" (como diria Anísio Teixeira), em que a modernidade vem sendo adiada com método, "conciliação" e rigor, talvez estejam sendo geradas, em algum canto, novas visões de mundo, lideranças e mensagens menos simplistas e grosseiras sobre o que vem a ser política, sociedade, cultura. Pois a História continua…


Carlos Guilherme Mota, historiador, é professor emérito da FFLCH-USP e professor titular da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Escreveu, entre outros livros, Ideologia da cultura brasileira (Editora 34)

FONTE: ALIÁS / O ESTADO DE S. PAULO

sábado, 23 de junho de 2012

Ganhos, perdas e danos do pragmatismo político (Marco Aurélio Nogueira)

Houve uma época em que os gestos políticos orientavam a opinião pública e os cidadãos. Adversários eram adversários. Podiam conviver educadamente, mas se posicionavam como entidades distintas, donos de posições singulares, que não permitiam movimentos de convergência, a não ser quando estivessem em jogo o futuro da Pátria ou os interesses nacionais. Acordos e alianças se faziam, mas ideias e princípios não se negociavam.

Tudo isso parece hoje pertencer a uma época pretérita que não volta mais. O mundo mudou, a política virou de ponta-cabeça, deixou-se invadir de tal forma pelos negócios e pelo pragmatismo que terminou por perder sua força magnética, de organização de esperanças e utopias.

Houve avanços nesse processo. Algumas ilusões tiveram de ser abandonadas e os protagonistas da política foram convidados a ultrapassar a barreira da pureza, da "ética da convicção" extremada, em benefício da realpolitik, da conquista de eleitores e da conservação do poder - coisas que se diluíram numa sempre mais proclamada "ética da responsabilidade".

O Partido dos Trabalhadores (PT) foi, na época pretérita que não volta mais, o partido que mais longe levou a ética extremada da convicção. Revestiu-a de ideologia, de promessas reformadoras, de compromissos com a população pobre e abandonada. Fez disso uma plataforma que o projetou para o primeiríssimo plano da política nacional e o converteu no principal partido do País.

Vieram, porém, os governos Lula (2002-2010) e tudo se transformou. O pragmatismo cortou o partido de cima a baixo, ao mesmo tempo que o personalismo de Lula o cortou da esquerda à direita. O foco passou a ser muito mais o Estado do que a sociedade civil ou a opinião pública, e o partido se entregou ao controle de posições políticas fortes, convencido de que assim a mudança social aconteceria. Perdeu alguns anéis nessa operação, assistiu à debandada de parte de seus setores mais à esquerda e aceitou o protagonismo inconteste de sua liderança máxima, que se tornou o condutor único de todas as operações, da nomeação de ministros à escolha de candidatos às eleições.

Entretanto, houve uma pedra no caminho. Lula e o PT não conseguiram entrar em São Paulo, que se manteve - Estado e capital - sob controle do PSDB. O desafio paulista cresceu com a vitória de Dilma Rousseff. Afinal, como projetar a preponderância petista em Brasília sem a conquista do principal Estado do País, epicentro da vida econômica e social brasileira?

O pragmatismo foi, então, radicalizado. Para as eleições municipais de 2012, decidiu-se fixar uma candidatura que tivesse cheiro de tinta fresca, com a qual se pudesse contestar o predomínio tucano. E optou-se, mais uma vez, por dar uma guinada para o centro, de modo a neutralizar a força que o PSDB acumulou nesse segmento crucial.

Ainda que de modo meio torto, o PT que se subsumiu a Lula passou a mostrar maturidade, arquivou seus arroubos ideológicos, trocou a pureza pela "responsabilidade". Converteu-se em ator principal e fez com que todos passassem a considerá-lo com seriedade.

O problema é que o ingresso do PT na arena da grande política está se fazendo pela porta da pequena política, onde são feitos pactos com o diabo, ou com jurados inimigos de ontem, pragmaticamente.

Política sem acordos e coligações, sem barganhas e concessões, é como noite sem lua. Não avança nem produz resultados positivos. Mas há modos e modos de se fazer isso.

Ao aceitar os afagos de Paulo Maluf, na cerimônia em que o deputado aderiu à campanha de Fernando Haddad, o PT de Lula reiterou sua conversão ao jogo frio da política. Trocou a paixão pelo cálculo, pela contagem de apoios, minutos de propaganda e votos potenciais. Foi, porém, com sede total ao pote. Permitiu que o líder do PP explorasse ao máximo a aproximação. O gesto simbólico nos jardins de sua mansão foi a cereja no bolo.

Houve ganhos para ambos os lados. O PT incorporou 1"30"" à sua propaganda e passou a dispor, em tese, de acesso mais privilegiado aos redutos eleitorais malufistas, ainda que sem garantias. De quebra, desafinou o coro dos contentes, mostrando que agora são outros tempos, outras amizades, que não somente os tucanos podem comer na seara do centro e da direita.

Maluf, por sua vez, recebeu oxigênio adicional para seguir fazendo política, quem sabe agora com o benefício de não ser mais visto como o bicho-papão do autoritarismo e da corrupção. Também não teve garantia de nada, mas soube como extrair dividendos evidentes da operação. Ganhou uma exposição que, em outros tempos, seria inimaginável. Emplacou, ainda por cima, um aliado na Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental do Ministério das Cidades.

As perdas e os danos do acordo, porém, parecem a essa altura maiores do que os ganhos. O PT perdeu Luiza Erundina, ainda que ela, ao desistir da candidatura a vice, mas não da campanha, tenha oferecido ao partido uma aura de "dignidade política" que ajuda a contrabalançar as coisas. Perdeu também excelente oportunidade para traduzir em fatos o proclamado desejo de fazer uma campanha com o selo da renovação. Como convencer o eleitor de que algo "novo" desponta, quando o "velho" aparece com ele abraçado quase ao ponto de sufocar?

A democracia também perdeu, pois o pragmatismo político usurpou o lugar que nela devem ter o realismo, a coerência, os valores e os ideais, aumentando ainda mais o fosso que distancia as pessoas da política institucionalizada. Consolidou-se um modo de fazer campanha eleitoral. Nele, os políticos se abraçam, fazem festa, tramam e decidem. Num segundo momento, os eleitores votam. Ou nem isso.

O que resultará disso, no curto, no médio e no longo prazos, é questão inteiramente em aberto.

Professor titular de Teoria Política e diretor do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais da UNESP

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO

Balanço da Rio+20: É o ambiental? (Sérgio Abranches)

"A Rio+20 terminou hoje (ontem) com um conjunto de resultados que, se realmente levado adiante nos próximos meses e anos, oferece a oportunidade para catalisar caminhos rumo a um século XXI mais sustentável." Assim Achim Steiner, diretor-executivo do Pnuma, definiu a Rio+20. É uma promessa, não um resultado palpável. "Vamos em passos incrementais", ele explicou. O problema desse passo a passo é que a crise ambiental e climática corre solta.

O resultado oficial modesto contrastou com o escopo desse megaevento, que teve numerosos eventos paralelos relevantes, promoveu impressionante mobilização de recursos intelectuais, políticos, sociais, técnicos e logísticos. Decidiu-se por um processo de negociações, sem garantias de que terá bons resultados. Ele tem prazo determinado para chegar aos resultados indicados, mas o mandado aos negociadores é amplo demais. Não garante que o produto final corresponderá às aspirações enunciadas nos discursos.

Os diplomatas brasileiros dizem que a frustração é dos ambientalistas, porque a conferência não é ambiental. É sobre desenvolvimento sustentável. Ênfase vocal no desenvolvimento. O problema desse argumento é que, de 1992 para cá, o mundo teve extraordinário progresso econômico. O último estágio desse avanço acontece agora na África, onde vários países crescem a ritmo maior que a média dos países asiáticos que sempre cresceram mais. Houve muito progresso social, no Brasil e em todo o mundo. Ninguém cuidou do ambiental.

Entre 1992 e 2012, o quadro ambiental e climático piorou muito, em parte por causa do desenvolvimento econômico e social global. Tivemos espantosa perda de biodiversidade. A poluição atmosférica matou, e continua a matar, milhares de pessoas anualmente em todo o mundo. Estamos no oitavo ano consecutivo em que eventos climáticos extremos afetam a agricultura globalmente, mantendo os preços agrícolas em patamares que condenam milhões à fome.

O agravamento do quadro ambiental e climático está aumentando os gastos com saúde, reduzindo a produção da agricultura global, gerando insegurança alimentar, causando bilhões de dólares de prejuízos econômicos para a indústria de seguros. A crise ambiental causa pobreza e fome. Afeta a economia dos desenvolvidos e dos mais pobres. A seca no Texas e seca e inundações na Austrália destruíram muito capital econômico e natural. Eventos climáticos extremos estão produzindo uma devastação social. No Leste da África (Etiópia, Somália, Djibouti e Quênia) e em Bangladesh, por exemplo, secas e inundações afetaram uma população que ultrapassa 12 milhões de pessoas, mais do que toda a população do Estado do Rio de Janeiro.

É o pilar ambiental que está ruindo e ele levará ao desmoronamento econômico e social. Por isso precisávamos sair da Rio+20 com uma organização mundial para o meio ambiente e metas de desenvolvimento sustentável. Munida de metas ambientais quantitativas para equilibrar os pilares econômico, social e ambiental e integrá-los, buscando a sustentabilidade. Para colocar a questão ambiental no topo do multilateralismo, como disse François Hollande.

Na Rio+20 não se conseguiu consenso sobre o mínimo necessário para começarmos essa caminhada rumo à sustentabilidade. Chegou-se ao compromisso possível. Mas não é assim que funciona com o clima e o ambiente. A natureza do desafio mudou. No século XX, o compromisso era possível, porque as questões eram políticas e de segurança militar. No século XXI, as forças que nos ameaçam não admitem compromissos, nem atraso.

Sérgio Abranches é sociólogo e cientista político

FONTE: O GLOBO

Botando banca


Virou zona a escolha do Vice de Haddad em São Paulo. Depois da desistência de Erundina acenaram com o nome da sambista Lecy Brandão, passaram pelo pagodeiro Netinho e aí até Maluf resolveu dar uma palinha convidando (ou articulando) o jurista Luiz Flávio D'Urso.
Tudo bem, uma vez que a chapa qualquer que seja a sua composição, já  maldosamente conhecida como  Malddad, é fruto dileto do concubinato espúrio entre Lula e Maluf. 
Só que nesse final de semana o candidato resolveu dar uma de macho e botou banca:
"Quem decide o vice é o candidato. Não existe isso. Quando eu convidar alguém, eu anuncio. As pessoas não estão proibidas de conversar; agora, convite é feito pelo candidato. Vice é prerrogativa do candidato."
Será que o Lula já sabe disso?

Arte da guerra, arte da política (Luiz Sérgio Henriques)

O episódio não é tão conhecido assim, aparece em duas ou três notas dos célebres Cadernos do cárcere e vale lembrá-lo a partir do comentário de um distante escritor italiano do século 16, Matteo Bandello. Narrado por Bandello, envolve um dos grandes teóricos da política moderna, Nicolau Maquiavel. Autor, entre outros, de uma clássica Arte da guerra, o secretário florentino teria tido diante de si, certa vez, uma multidão de soldados, a quem lhe caberia ordenar em formação de guerra mediante os instrumentos então dispostos para tal, como tambores e cornetas. Dispensável dizer que o grande teórico não conseguiu o intento, desorganizando mais do que organizando, tendo sido socorrido por Giovanni dalle Bande Nere, condottiero treinado - praticamente - na arte militar e capaz por isso mesmo de controlar rapidamente a massa de homens e armas em dispersão.

Pode-se interpretar essa pequena história como uma crítica à insuficiência da pura teoria, mesmo representada por um homem do quilate de Maquiavel, para gerar por si só efeitos práticos imediatos. E, de fato, não raro a teoria, desamparada de mediações, redunda em abstração distante da vida real, impotente diante da riqueza múltipla das suas determinações. O inverso, contudo, não raro também sucede: homens eminentemente práticos, com notável sagacidade e treino nas coisas humanas - em particular, na difícil arte da política, que alguns veem como contígua à própria guerra -, podem se atirar de corpo e alma ao mundo real, onde se cruzam incessantemente paixões e interesses, sem obter, contudo, o resultado almejado, revelando, antes, uma certa incapacidade de entender as mediações da política democrática. Esta última, pela sua própria natureza, impõe limites e controles, freios e contrapesos, a todos os atores e forças presentes na cena pública, o que só não ocorre em indesejadas situações extremas de concentração e personalização do poder.

Poderia ser interpretada assim a movimentação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e de alguns dirigentes do seu partido na iminência do julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), dos acontecimentos que passaram à recente história política como mensalão. A começar pela convocação de uma CPMI "de governo" - como apontado por vários analistas - que, desenvolvendo-se ao revés das comissões parlamentares convencionais, se limitaria a dramatizar, como num psicodrama de enredo previamente definido e pródigo em imagens, investigações policiais já em curso ou próximas da conclusão.

E no roteiro aventuroso dessa CPMI, ao que parece, constava a colocação no banco dos réus de instituições essenciais da República, como, entre outras, o Ministério Público - para não falar da tentativa de condicionar os votos de ministros da própria Suprema Corte, segundo denúncia de um dos integrantes deste mesmo tribunal.

Mera ação de "maquiavéis de pensão", coadjuvada talvez por autoridades e ex-autoridades da República pouco ciosas do que já se chamou de "liturgia do cargo"? Mais um sinal dos tempos, em que o partido hegemônico da esquerda, sem ter (ainda) desenvolvido uma cultura política democrática e reformista, se sente refém de espasmos autoritários, de acordo com os quais, como sugeriu o sóbrio Antonio Fernando de Souza, ex-procurador-geral da República, poderia se arvorar como a única instância definidora do que é crime e o que não é crime?

É provável que haja um pouco de tudo isso, mas, antes de mais nada, a possibilidade mais forte é de que ainda estejamos a viver a tumultuada trajetória de adaptação de corações e mentes da esquerda (das suas várias vertentes) às instituições da democracia política, necessariamente plurais e contraditórias, expressão de uma sociedade civil relativamente livre de constrangimentos estatais, na qual se cruzam, à moda do "Ocidente" político, as mais variadas forças e inspirações ideais. O embate entre elas é legítimo e, a depender da inteligência dos atores progressistas, pode produzir equilíbrios socialmente avançados e culturalmente enriquecedores. Na verdade, é isso o que torna impermeável este "Ocidente" a projetos autoritários de mudança, fortemente dependentes de personalidades carismáticas e da arregimentação, de cima para baixo, das instituições da sociedade, projetos que ainda incendeiam a imaginação de parte não desprezível da nossa esquerda.

No "Ocidente" político, entre outras coisas, não deveria causar estranheza nem ser motivo de escândalo a existência de uma imprensa liberal-conservadora. Em outros países e em outros momentos, partidos da esquerda souberam criar jornais memoráveis, com impacto duradouro na política e na própria cultura nacional, como o L"Unità italiano e o L"Humanité francês, curiosamente um caminho nunca testado, desde a hora da fundação, pelo principal partido da esquerda do Brasil redemocratizado. No "Ocidente", instituições como a Suprema Corte não vivem no vácuo nem são uma instância neutra de poder, que decida, para citar o filósofo Ronald Dworkin, com independência das concepções de moralidade pública de cada juiz. Mas cabe esperar que suas decisões não sejam partidarizadas em sentido estrito e se revistam de um conteúdo pedagógico, ensinando-nos, como último recurso constitucional, o modo pelo qual se compõem as desavenças inelimináveis da vida política.

No fundo, respeitado o direito sagrado de defesa, a ser exercido em sua plenitude, boa parte das lições do julgamento de agosto vai depender do comportamento da própria esquerda, atingida na figura de alguns dos seus dirigentes mais evidentes. Deveria estar excluído desse comportamento tudo aquilo que, ao longo da História e em detrimento da grandeza de Maquiavel, tornou infames ou negativamente conotados os adjetivos derivados do seu nome.

Tradutor, ensaísta. É um dos organizadores das obras de Gramsci no Brasil, site: www.gramsci.org

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO

sexta-feira, 22 de junho de 2012

De diferentes e "antagônicos"

Edinho Silva, deputado e presidente do PT/SP, defendendo o indefensável e justificando a tese que a luta pelo  poder apenas pelo poder justifica todos os meios, por mais espúrios e repugnantes que sejam, resolveu resgatar o que chama de  "a concepção pedagógica de Paulo Freire quando trata do diálogo e conflito, em uma frase bastante utilizada pelo presidente Lula (conforme ele): "Vamos juntar os diferentes para vencermos os antagônicos".
E nós, que sempre pensamos que o "filhote da ditadura", figura mais corrupta e execrável que o regime de 64 produziu, fosse o "antagônico" de quem se pensava democrata e republicano.

Diálogo como espécie em extinção na política (Fernando Gabeira)

Algumas coisas estranhas ocorrem no Brasil. Nada apocalíptico como o sertão virando mar, o mar virando sertão. Mas desconcertantes, eu diria. Deputados da CPI do Cachoeira se encontram com Fernando Cavendish num restaurante da Avenue Montaigne, em Paris. Um homem me disse na rua: "Os deputados alegaram que foi uma coincidência. Não dá para ouvi-los. Acham que somos otários". Concordei, para encurtar a conversa (estava com pressa). Não acho que nos consideram otários. Simplesmente deixaram de fazer sentido, quebraram as pontes de comunicação, eliminaram o diálogo racional que fertiliza a política.

É o caso do presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), recusando-se a dizer como tinha sido gasto o dinheiro dado pelo governo para a construção de uma sede na Praia do Flamengo: "A UNE é uma entidade privada. Não precisa explicar como gasta seu dinheiro".

Todos sabem que recurso repassado pelo governo, ao ser aprovado no Congresso, tem uma finalidade explícita para que seu uso possa ser comprovado depois. O prefeito do Rio, Eduardo Paes, ao comentar o assunto, atribuiu a cobrança de prestação de contas a uma manobra típica de ano eleitoral. É preciso ter "casca grossa", disse Paes, "a UNE é maior do que tudo isso".

A denúncia sobre o mau uso das verbas partiu do Tribunal de Contas da União (TCU) e foi publicada no O Globo. Paes dá a entender que o jornal publicou a matéria para enfraquecer as candidaturas governistas, como a dele. Na sua fantasia para jovens socialistas, começou a luta de classes do O Globo contra ele e seus camaradas da comuna de Paris, aqueles do guardanapo na cabeça.

O Supremo Tribunal Federal levou sete anos para julgar o mensalão. O ministro Ricardo Lewandowski bateu todos os recordes históricos para apresentar o relatório de um processo. Ainda assim, alguns acusados afirmam que o Supremo se precipitou ao marcar o julgamento para agosto. Neste território do mensalão, a fantasia corre solta. Luiz Carlos Barreto escreveu um artigo recente defendendo José Dirceu e citou Fidel Castro. Lembrou que na sua visita ao Brasil, conversando com socialites, Fidel, ao ouvir queixas sobre Carlos Lacerda, perguntou: ¿Por qué no lo matan? O amigo Barreto esqueceu que, na história real, tentaram matar Lacerda e criaram uma crise sem precedentes para o governo de Getúlio Vargas. Foram os precursores do que hoje chamamos aloprados.

O próprio José Dirceu, que vinha se comportando como um acusado clássico, afirmando sua inocência e desejando um julgamento rápido, despediu-se de nós. No encontro com a juventude socialista do PCdoB, disse que o julgamento representava a batalha final e que sua geração estava em causa.

Qual seria a geração de Dirceu? Os nascidos nos anos 50? Os que fizeram a luta armada? Nos anos 50 nasceu muita gente com trajetórias distintas. Na luta armada havia gente nova, como Cesar Benjamin, e idosos, como Joaquim Câmara Ferreira e Apolônio de Carvalho. Ao levar uma suposta geração para o banco dos réus, Dirceu carrega consigo um inútil colchão de ar, apenas um conforto íntimo para a longa maratona.

Quanto à batalha final da juventude do PCdoB contra amplos setores da opinião pública, haja chope e caipirinhas. O TCU lamenta que a UNE lance bebidas alcoólicas em suas prestações de contas. Numa batalha final, estarão, pelo menos, livres desse pequeno constrangimento.

Todos esses episódios marcam o fim de certa racionalidade política. É uma ilusão achar que nos consideram otários. É uma ilusão, também, supor que estão só delirando. No fundo, a escolha, por não fazer sentido, não é para se afastar do debate, mas se inserir nele de uma nova maneira. Nela, as evidência não contam, apenas as versões. Tudo é possível, se houver um batalhão de internautas pagos, empresas especializadas em influenciar redes sociais.

É uma situação nova no País. Até os militares tinham preocupação com coerência, embora, quando achavam necessário, encerrassem a discussão no porrete.

Parte do grupo que domina hoje a vida política do País resolveu falar o que quiser, no momento que escolher. Quando Cesar Maia me apoiou, muitos amigos sinceros e bem intencionados foram contra a aliança. Tinham argumentos fortes e verdadeiros que até hoje respeito. Mas a pressão mesmo foi feita na internet pelos inflamados militantes virtuais: era desprezível porque aceitei o apoio de Cesar Maia.

Agora, o sertão não virou mar nem o mar virou sertão. Mas Maluf abraçou Lula, que abraçou Maluf, celebrando uma aliança. Como se chamará essa nova entidade? Malula? Luluf? Não importa. O interessante é vê-los agora, os militantes da internet, justificando uma opção dessa grandeza. Na arquitetura política que montaram havia muita gente na mira da Polícia Federal. Era necessário alguém perseguido pela Interpol para dar um tom cosmopolita. Da cueca a New Jersey, não há fronteiras para o fluxo de dólares.

Sumiram os debates baseados na evidência. Basta antepor uma versão e os problemas se resolvem. O que adianta afirmar a impossibilidade estatística de um encontro acidental num restaurante de Paris entre deputados que investigam a Delta e o dono da empresa, Fernando Cavendish?

Esse é um modo de argumentar superado pelos novos tempos. O esforço legítimo de estabelecer o que realmente aconteceu se volta para o passado, ao qual dedicamos uma Comissão da Verdade. Se alguém se interessar, no futuro, por investigar o que se passa hoje no Brasil, provavelmente dará grandes gargalhadas. A tentação é lembrar do Festival de Besteiras que Assola o País, criado por Stanislaw Ponte Preta. Mas o momento é outro.

Quando a Delta diz que sofreu bullying empresarial, não está se importando com os humoristas. É sua versão para enriquecer o pântano, sua voz na polifonia.

Alguns interlocutores se foram de qualquer maneira. Resta esperar que um dia voltem a fazer sentido, num diálogo responsável e transparente diante de nossas tarefas nacionais, num mundo cheio de novos desafios.

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO

Recusa ao chamado (Marina Silva)

Mesmo com a visão tolhida pela proximidade dos fatos, arrisco-me a dizer o que saiu 100% vitorioso dessa "Rio-20". Foram as posições defendidas abertamente pelos negociadores dos EUA -e adotadas por Índia, China e Rússia-, de recusa a submeter seus interesses a decisões multilaterais -uma das melhores formas para encontrar saídas para a grave crise ambiental que ameaça o futuro do planeta.

A Europa, que durante 20 anos sustentou política e operacionalmente a tese da primazia do multilateralismo junto com um grupo de países, entre eles o Brasil, manteve esse discurso no Rio, mas, ao mesmo tempo, transferiu para a burocracia diplomática o papel de subtrair dele a imprescindível chancela da ação.

Já o Brasil optou pela renúncia à ousadia e perdeu o acanhamento em assumir-se conservador no agir e no falar. Esse documento anódino aprovado pode ter sido muito duro para o multilateralismo, na medida em que lhe passa atestado de incompetência como espaço de negociação. Não faltará quem advogue o ocaso do multilateralismo para resolver a crise ambiental. Os resultados pífios da agenda oficial dessa lamentável "Rio-20" devem-se à trama de interesses e de vontades que agiu persistentemente desde a Rio 92, para que nenhuma mudança os afetem ou possa vir a ameaçar sua hegemonia geopolítica.

Em 1992, o apelo da menina Severn Suzuki aos chefes de Estado, para que assumissem compromissos ambientais, comoveu o mundo. Agora, a neozelandesa Britanny Trilford foi mais incisiva: "Vocês estão aqui para salvar suas imagens ou para nos salvar?". E mais: "Cumpram o que prometeram". Rostos impassíveis ouvindo a crítica. Será que essa denúncia contundente de sua inação os abala de fato?

A conferência mostrou a distância crescente entre os povos e os Estados. O contraste não foi apenas entre as cores barulhentas da diversidade social e as formalidades do Riocentro. Trata-se de um deslocamento que a sociedade faz, um trânsito na civilização que não é acompanhado pelos governos. Estes limitam-se a falar do futuro enquanto disputam o espólio do século passado e se prestam a ser os guardiães da insustentabilidade.

A grande decepção, infelizmente, foi a recusa do governo brasileiro em assumir a liderança inovadora que sua condição de potência socioambiental lhe dá, afastando-se de sua tradição diplomática na agenda ambiental.

Ao permitir-se ser a mão que enfraqueceu o multilateralismo e reforçou as estratégias exclusivistas dos países ricos, rendeu-se à mesma lógica que levou ao retrocesso interno expresso no Código Florestal. Faltou atitude aos países, e o Brasil nada fez para reverter essa situação ou denunciá-la.

FONTE: FOLHA DE S. PAULO

quinta-feira, 21 de junho de 2012

Países precisam ser mais solidários (Edgar Morin)

ENTREVISTA/Edgar Morin. Sociólogo francês e professor da Universidade Paris VIII defende o resgate do valor da solidariedade e o exercício da democracia para combater a pobreza

Aos 93 anos, Edgar Morin é contundente ao dizer que a erradicação da pobreza passa pelo resgate de um valor que precisa ser acordado nos seres humanos: o da solidariedade. Para o sociólogo francês, presidente do Institut Internacional de Recherche Politique de Civilisation (IIRPC), é preciso haver, de um lado, solidariedade entre as nações e, de outro, o incentivo à criação do que ele chama de democracia direta. Ou, como explicou ao GLOBO, fóruns regionais que amplifiquem a voz das populações pobres e funcionem como um elo entre elas e os governantes.

Martha Neiva Moreira

O GLOBO: A erradicação da pobreza é um dos desafios para se atingir o desenvolvimento sustentável. Ainda hoje há povos em situação de pobreza extrema e as nações não conseguem solucionar. Por quê?

EDGAR MORIN: É uma lacuna. Não se pode isolar a questão ecológica da questão social. A pobreza é um problema mundial e pressupõe a adoção de políticas que combatam a exclusão. Mas as nações parecem que estão isoladas umas das outras e não conseguem se aliar para enfrentar questões globais como esta.

Por quê?

MORIN: Por um lado, não temos ainda uma realidade supranacional capaz de impor medidas adequadas aos Estados. Por outro, os Estados estão atrelados à especulação financeira. É preciso uma reforma política para que Estados exerçam o papel para o qual foram criados: o de garantir os direitos básicos à população.

O que falta para isso?

MORIN: Mudar o modelo de civilização para suscitar o surgimento de uma nova via política para as nações e a Humanidade. Para enfrentar a pobreza e a pobreza extrema, tanto no campo quanto na cidade, é necessário uma democracia direta.

Como assim?

MORIN: É preciso criar conselhos regionais com a participação da população pobre e de profissionais de várias áreas. Os pobres não têm voz, ficam isolados na hora de decidir seus destinos. Ao incentivar a criação desses fóruns, que discutirão temas regionais, os governos estarão dando voz a essas populações e criando um elo entre o Estado e os que sofrem com a pobreza. Isso é respeito.

Há diferença entre a pobreza dos países do Norte e os do Sul?

MORIN: Os atuais pobres dos países do Norte são os que já fizeram parte do sistema industrial. Eles estavam incluídos no sistema econômico formal e agora, por causa da crise econômica, estão à margem. Mesmo à margem, é uma pobreza assistida, que conta com alguma proteção assistencial dos governos. Os pobres dos países do Sul, ao contrário, jamais foram incluídos no sistema formal. Eles nasceram excluídos, não contam com assistência e não têm acesso aos direitos básicos.

Um dos instrumentos de combate à pobreza é a participação popular. O brasileiro ocupa os espaços de participação?

MORIN: Participar da vida social é um exercício e o meio mais legítimo de fazer pressão nos governos. Mas exige prática e conhecimento das formas de participação. A democracia no Brasil é recente e ainda é preciso vencer o medo de falar. As minorias, em geral, estão frequentemente ausentes das assembleias de participação. Por isso que digo que a prática da democracia direta deve fazer parte da educação do cidadão. Só assim aprendemos, aos poucos, a tomar a palavra.

Como incentivar a participação?

MORIN: Com um modelo de educação que ensine as crianças a viver, a ter mais compreensão dos outros, entender o significado do valor do conhecimento para enfrentar as questões que se impõem. As crianças e jovens precisam pensar o que significa ser humano no contexto de sua época para que fiquem aptos a pensar soluções para os desafios que virão. Esses ensinamentos ajudam a constituir o valor da solidariedade e, hoje, para combater a pobreza, é preciso ser solidário. Falo de solidariedade entre pessoas e, sobretudo, entre países.

As nações ricas alegam que a crise econômica os impede de ajudar os países pobres...

MORIN: Há países ricos em crise, mas ainda assim eles têm meios de ajudar os pobres parando de explorar as riquezas do solo e subsolo dessas nações com suas multinacionais.

Como a Economia Verde pode resolver as desigualdades sociais?

 MORIN: A água é um bem comum e não tenho que pagar por ela. Economia Verde é a que oferece uma energia limpa, que favorece pequenos agricultores, a agricultura menos nociva ao meio ambiente, que protege a biodiversidade, mas é também aquela que deve dar trabalho para muitas pessoas.

Qual o desafio do Brasil para erradicar a pobreza?

MORIN: O Brasil é complexo. Há questões que requerem micropolíticas públicas regionais e uma dose de solidariedade entre os seres humanos.

FONTE: O GLOBO

Sintonia fina

Um íntimo do círculo palaciano inflou o peito e orgulhoso me segredou: Casagrande e Paulo Hartung estão em sintonia fina, ou seja, Casão está afinadissimo com PH.
E, eu, na minha ingenuidade, pensava que muito dos que apoiaram e votaram em Casagrande, o fizeram como voto e oposição ao hartunguismo.  Como esses eleitores se percebem agora?
Questionamento feito, o interlocutor se retirou irritado. Um ano de poder apenas e uma nova elite já se percebe como acima do bem e do mal e já reage a qualquer crítica crime de lesa majestade.
Esses anos de "unanimidade" fizeram mal a democracia no Espírito Santo.

quarta-feira, 20 de junho de 2012

O PT no seu pior labirinto (Rosângela Bittar)

Se ganhar São Paulo, as dores cessarão, tramas fortes cerrarão as principais fissuras, instalando-se a expectativa de seguir adiante com o poder conquistado. Mas se perder, o PT carregará o estado febril de hoje para o pós-eleitoral e dificilmente logrará recompor suas forças para a complicada vida dos dois anos seguintes, o que fará do imponderável uma certeza.

Tudo, hoje, no PT, é extremo, da preocupação com o julgamento do mensalão e as possíveis condenações à interminável sucessão de erros, nos últimos dois meses, do comandante in pectore do partido, Luiz Inácio Lula da Silva.

Creem os benevolentes amigos que o ex-presidente parece ter uma similitude entre seu comportamento e aquele de fase lendária de Ulysses Guimarães, então presidente da Câmara, do PMDB e da Constituinte, quando, acometido de uma dosagem inadequada do medicamento lítio, falava sem freios. Lula está passando essa imagem aos seus próprios subordinados petistas, vai falando, vai fazendo, decisões em demasia, com uma ideia na cabeça e um índice de popularidade nas mãos, atropelando gregos e troianos. Embora tudo já tenha merecido o devido destaque, o caráter ilimitado das trapalhadas, com resultados negativos visíveis para o PT, renovam as preocupações.

Articulações de Lula resultam em fraturas

Com facilidade relaciona-se, em hostes petistas, três, quatro, dez erros políticos cometidos pelo antecessor de Dilma Rousseff, que peca sempre por excesso. Antes, José Dirceu, seu fiel executivo nesse quesito, formava as alianças, compunha o PT, acalmava os revoltosos, explicava a filosofia do pragmatismo do momento e o poder, no fim do túnel, a justificar os meios. Agora cabe a Lula mais que a figuração, é o ex-presidente quem sai a campo e embrenha-se em problemas.

Em Sergipe, Ceará, Pernambuco, já estão notórias as imposições que fez ao PT, desfazendo prévias, remontando coligações, destituindo e nomeando candidatos. Nessa pré-campanha passou por cima de Luizianne Lins, de Marcelo Déda, de João da Costa, e não se sabe se o candidato às eleições municipais, seja do PT ou de um dos partidos aliados, nessas capitais, será aquele que no momento o ex-presidente quer. Transitou como um trator no Nordeste, não se evidenciou ainda sua mão de ferro no Sul, mas espera-se que chegue lá a qualquer momento.

São Paulo, entretanto, é uma evidência de sua capacidade de provocar fraturas e fazer a terra arrasada.

Lula abusa do seu prestígio, é como se define no PT o voluntarismo do ex. A intervenção que fez foi um desastre, cindiu o partido e está longe de conseguir as condições para reunificá-lo.

Primeiro, ali haveria uma prévia entre quatro candidatos. Depois, com um pequeno toque, o ex-presidente tirou do caminho os dois que considerava mais fracos, Jilmar Tatto e Carlos Zarattini, dizendo a eles que o momento era para profissionais e não para fazer campanha de apresentação para daqui a quatro anos. Mandou uma funcionária do instituto que leva o seu nome avisar a Marta Suplicy, senadora da República, que o governo precisaria dela mais no Senado que na Prefeitura de São Paulo, portanto deveria ser afastar também.

Marta agradeceu mas não saiu. Aí Lula reforçou a ordem dando a missão à presidente Dilma. A presidente falou que precisava muito de Marta no Senado mas não ofereceu ministério. Com o apelo, Marta retirou sua candidatura a prefeita, mas saiu do episódio absolutamente melindrada.

Essa parte do enredo da candidatura do PT paulista é conhecida, mas não se tinha a dimensão do efeito das decisões de Lula sobre Marta. São marcas profundas.

A senadora passou a fazer ironias, mandou o candidato gastar sola de sapato, não compareceu ao lançamento de sua candidatura, resistiu ao cerco, inclusive quando apelaram ao seu ex-marido, e multiplicou por dois, com a aliança do PT com Paulo Maluf, o desdém que expressou quando Lula tratava de articular-se com Gilberto Kassab.

Marta já está fazendo algumas brincadeiras com a situação do PT na capital. Quando Lula, no lançamento de Fernando Haddad como candidato, mencionou os injustiçados do PT, entre eles Erenice Guerra, a subchefe da Casa Civil, ex-amiga íntima de Dilma, flagrada em tráfico de influência no palco de atuação mais próximo ao presidente, não só Marta, mas um grande número de petistas, não conteve a perplexidade.

Mais um registro da ilimitada capacidade de bagunçar o cenário foi o de Lula, no 'Programa do Ratinho', dizendo que se Dilma não quiser se candidatar à reeleição ele assume o encargo. O fato detonou de vez o delicado equilíbrio que vinha sendo preservado entre o PT de Dilma e o PT de Lula, e a presidente passou a ser alertada para o fato de que Lula está tentando antecipar sua sucessão, embaralhando mais ainda as cartas partidárias.

A maioria de suas interferências mais atrapalhadas, do ponto de vista do PT, teve o PSB do governador pernambucano Eduardo Campos no meio da articulação, e todos os ventos nesse partido, seja em direção a Lula, seja a Dilma, correm para 2014.

O que houve ontem, com a troca de Erundina no cargo de vice de Haddad, por causa da aliança com Paulo Maluf, foi apenas mais um episódio em que o ex-presidente não mediu consequências porque agiu, como sempre, sem ater-se às mudanças nas condições do tempo e da temperatura.

Fora das eleições, o ex-presidente está sendo considerado também algoz de boa parte do PT, principalmente do que se encontra no governo, ao lado de Dilma, enquanto age para tentar salvar seus amigos. Criou a CPI para atrapalhar o julgamento do mensalão, mas pegou a Delta, de profunda parceria com o governo federal, que pode ser atingido. A CPI como manobra diversionista do maior escândalo de corrupção no governo petista não funcionou, mas teve efeito contrário ao apressar o julgamento que até então poderia 'descoincidir' do período eleitoral, evitando prejudicar o maior partido do país. Agora todos temem os resultados do julgamento no Supremo Tribunal Federal, principalmente com o partido em luta eleitoral. A condenação está sendo, como nunca o fora, muito considerada no PT

FONTE: VALOR ECONÔMICO