A frase é do veterano líder sindical Luís Tenório de Lima, que a usava sempre que alguma coisa ocorria de maneira diferente da imaginada ou prevista. Serve sob medida para intitular a coluna de hoje. Um dos articuladores da chapa Jânio-Jango na eleição de outubro de 1960, Tenorinho ajudou a cristianizar o marechal Henrique Teixeira Lott (PSD).
Graças à manobra eleitoral, o ex-ministro do Trabalho João Goulart foi eleito vice-presidente da República, com apoio maciço dos sindicatos paulistas. O resto da história todos conhecem: Jânio renunciou e Jango virou o presidente da República, mas foi derrubado pelos militares em 1964, após anunciar a intenção de decretar as chamadas reformas de base, que o Congresso não aprovava.
Reminiscências históricas à parte, vem aí um ato sindical convocado pela CUT e o PT para 13 de março, mesma data do Comício da Central de 1964, pretexto para o golpe de Estado contra Jango. E uma manifestação nacional convocada pelas redes sociais para 15 de março, que pode ganhar as conotações conservadoras da Marcha com Deus pela Família e a Liberdade, que reuniu 500 mil pessoas, em 19 de março, e se repetiu, digamos, com 1 milhão de coxinhas nas ruas em 2 de abril daquele ano fatídico.
A classe média voltou-se contra o governo e apoiou os políticos de oposição e militares golpistas. Aviso logo: sou daqueles que acham que história só se repete como farsa ou como tragédia. Os líderes dos partidos de oposição foram escaldados pelo golpe e o regime militar, não vejo muito sentido nessa história de que pretendam uma ruptura institucional ao aderir aos protestos populares contra o governo Dilma. Isso é do jogo democrático!
Tenorinho entra nessa história por outro motivo: um velho artigo do mestre Norberto Bobbio, intitulado Os meandros do poder, escrito no auge da crise política italiana de 1980. (in As ideologias e o poder em crise, Editora UnB). Faz parte de uma série sobre o que chamou de “mau governo”.
Inspirado na microfísica do poder de Foucault, Bobbio afirma que “a ideia tradicional de que o poder reside numa pessoa, numa restrita classe política ou em determinadas instituições colocadas no centro do sistema social é enganadora. O poder está em qualquer lugar, como o ar que se respira”.
“Não compreendeu a estrutura ou o movimento de um sistema social aquele que não se deu conta de que este é constituído por uma densa e complexa interrelação de poderes”, afirma. O poder não estaria apenas difuso e repartido, mas disposto em estratos que se distinguem um dos outros por diferente graus de “visibilidade”.
Bobbio identificou três esferas de poder: o emergente e público, que é o governo propriamente dito; o semi-submerso ou semipúblico, que chamou de “sub-governo”, que são suas agências e aparatos públicos, por onde passa a política econômica e o governo da economia; e a faixa de poder submerso, oculto ou invisível, que poderia ser chamada de “criptogoverno”.
Podres poderes
Segundo Bobbio, na medida em que o Estado liberal clássico foi sendo ampliado na direção do Estado de bem-estar social, o espaço do “sub-governo” se ampliou tremendamente, em estreita relação com o governo autêntico. Mas, em contrapartida, tem um nexo duplo com o que seria o “criptogoverno”.
Dirigentes dessas entidades, designados ou diretamente nomeados pelos partidos de governo pelo sistema de loteamento, através da função latente que a eles é atribuída, passam a prover o financiamento “oculto” dos partidos ou canalizar para eles os recursos financeiros de que têm necessidade para garantir a própria sustentação e para ganhar “consensos” ( que nesse caso Bobbio trata como uma mercadoria igual a todas as outras).
Essa leitura de Bobbio ajuda a entender o que aconteceu na Itália, onde os grandes partidos do pós-guerra foram tragados pela Operação Mãos Limpas, e nos dá uma pista para compreender melhor a gravidade do escândalo revelado pela Operação Lava-Jato, que agora chegou ao Congresso e ameaça implodir o nosso “presidencialismo de coalizão”.
Num paralelo rápido, a investigação sobre os desvios de recursos da Petrobras e de outras estatais, com superfaturamento de obras e serviços, mostra-nos as conexões entre o governo propriamente dito, as agências e as empresas de um “sub-governo” legalmente constituído, mas transformado em caixa preta. A Operação Lava-Jato revelou também as existência de um “criptogoverno” mafioso, corrupto e corruptor, formado por políticos, funcionários públicos, executivos e grandes empresas fornecedoras do Estado para dar as cartas no jogo político.
Tudo isso precisa ser passado a limpo, porque a democracia é idealmente o governo do poder visível e não dos podres poderes ocultos a serviço do saque do Tesouro, do enriquecimento ilícito e do abuso do poder econômico nas campanhas eleitorais, para perpetuar no poder grupos políticos e partidos.
Fonte: Correio Braziliense
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