A Aloízio Mercadante tem se atribuído a origem de todos os males do governo. É injusto. O ministro pode estar no olho do furação, mas não é ele o centro da crise.
Boi-de-piranha: a expressão é conhecida. Para salvar a boiada que atravessa o rio, dá-se às piranhas um boi em sacrifício; vorazes elas se jogam alucinadas às carnes desprotegidas do animal, deixando que incólume a Comitiva siga em frente. Em benefício de todos, um foi o escolhido. Um boi entre tantos. É certo que esse boi não era santo.
O boi-de-piranha do momento atende pelo nome de Aloízio Mercadante, que também, é certo, não é santo. O ministro-chefe da Casa Civil tornou-se o centro das críticas ao governo, o anti-herói apontado como o responsável por todos ou quase todos os erros de seu grupo; sua influência – negativa – sobre a presidente da República seria a origem do desastre e do caos que demarcam este mandato, que é verdade, vêm de longe, de escolhas de anos quando Mercadante não tinha influência alguma para se notabilizar tanto assim.
Antes fosse simples assim: procurar o incômodo e, descoberto, retirar um único espinho do pé para aliviar todo o corpo que sofre. Nada, no entanto, é mais enganoso. Mercadante não tem toda essa expressão que lhe atribuir, embora, é possível, até goste de sua fama. Senador por São Paulo, líder de sua bancada, não conseguiu conduzi-la ao enfrentamento com José Sarney — então em desgraça, na presidência de mais um escândalo do Senado. Foi quando bufou, bufou, bufou… Ameaçou e, por fim, renunciou à renúncia irrevogável que prometera e anunciara na véspera. Ficou batendo palmas, sozinho.
Candidato ao governo do Estado, primeiro atrapalhou-se com aloprados; para depois ser derrotado duas vezes, sem apelação. Mesmo no PT não conseguiu se notabilizar como uma liderança que a turma segue. Não teve protagonismo e mesmo Lula nunca lhe permitir chegar a esse ponto. Na verdade, perdera o brilho de estrela que um dia, sim, teve no PT e na CUT.
Sem mandato, foi feito ministro da Ciência e Tecnologia não por pressão de ninguém a não ser si mesmo e por certa dívida pela candidatura de poucas esperanças. Foi ao governo mais por consolação. E, no ministério, cresceu; aproximou-se da presidente que, aos poucos, foi resgatado do limbo – pelas mãos não do Partido, nem da sociedade, mas pelas graças de Dilma. Com a saída de Fernando Haddad para a disputa paulistana, a presidente deu-lhe orçamento e visibilidade, na Educação. Parece terem-se afeiçoado um pelo outro, pois são personalidades muito parecidas.
Presidente isolada, cismada com Lula e com o PT, Dilma encontrou em Mercadante um personagem que, em direção contrária, tinha contra si a cisma de Lula e do PT. Personagens solitários, tiveram uma aproximação de reflexos, como nos espelhos. A desconfiança de um e o ressentimento de outro foram, por assim dizer, as afinidades eletivas que os uniu numa aproximação não de choques, mas de complementos. Dilma encontrou no ministro a quem pudesse dar ouvidos, pois aquela voz parecia, e muito, com a sua própria voz; o ministro teve na presidente quem o ouvisse. Transformou-se num conselheiro dos conselhos que se quer ouvir.
As circunstâncias amarraram com laços bem firmes uma relação de fidelidade. E hoje Dilma reluta em “rifar” o companheiro que mais que auxílio tem lhe dado apoio. Sabe que o ministro não é o responsável por todos seus males. Sabe, intimamente, que, no mínimo, tem que compartilhar as cargas e as culpas com ele.
Pois, contudo, contudo, contudo… não se deve perder de vista que a força do ministro deriva da presidente; a luz própria de Mercadante não é de alta voltagem e acende nas baterias de Dilma. De forma que os pecados do ministro não são apenas seus: no limite, a responsável pelos erros cometidos em profusão e atribuídos a Mercadante chama-se Dilma Rousseff. Esta crise é, sobretudo, sua. E atende por seu nome.
A versão de que o ministro teria “sequestrado o governo” — como, se diz, teria afirmado o ex-presidente Lula — não é para ser levada a sério. Diversionista, serve para afastar o foco dos reais problema e questão: as escolhas são feitas pela presidente, no exercício de suas intransferíveis e irrenunciáveis atribuições e responsabilidades. Seria mesmo muita ingenuidade – ou má fé — acreditar que Dilma se deixaria influenciar por quem quer que seja; como se fosse uma adolescente desprotegida, uma donzela em perigo na torre em chamas. A história e o currículo de Dilma não sancionam essa tese. É mais dura na queda do pretendem fazer crer os que buscam retirá-la do foco e do fogo dos conflitos, jogando Mercadante aos tigres.
Como toda a crise o é em alguma medida, a crise presente é também crise de personalidades: atores de cuja psicologia deriva tensões e desacertos que, com outra têmpera, poderiam ser evitados. A personalidade do governo é a personalidade de Dilma Rousseff, apenas adornada e incentivada por Mercadante e tantos outros que a estimulam por adulação ou por, sinceramente, enxergarem a realidade pelas mesmas lentes que a presidente. Reduzir tudo ao ministro-chefe da Casa Civil não é apenas um erro de avaliação. É uma artimanha.
Afastar o ministro da coordenação política ou devolvê-lo aos limites da Educação, não basta. Ele terá proeminência enquanto Dilma escutar apenas o que quer ouvir.
E Mercadante, por temperamento, não se omitirá em dizer. Demitir um auxiliar fiel será tão doloroso para Dilma quanto pode ser necessário e inevitável, como o preço a pagar pela travessia do rio da presente crise: o boi-de-piranha. Mas, outras cheias e rios virão; os bois também acabam.
Fonte: O Estado de São Paulo (25/03/15)
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