A esta altura da crise do “modo petista de governar”, com base em esquemas de corrupção como o mensalão e o petrolão, com parcelas significativas da população mostrando clareza na identificação dos responsáveis pelos prejuízos infligidos por tais práticas ao país e, por conseguinte, aos trabalhadores, saltam aos olhos os gestos desencontrados do líder máximo e principal beneficiário dos esquemas organizados pelo PT desde 2002.
De um lado, o Lula-pragmático estaria por trás da nomeação do ministro-banqueiro para consertar os danos causados pela melée econômica de Dilma & Mantega, ao mesmo tempo que acenaria para os peemedebistas com mais espaços de poder e às oposições com uma vaga “união nacional” para tirar o governo da crise — na esperança de que os grandes empresários pressionem pela “governabilidade” em nome de seus lucros, em fase de aperto.
De outro, o Lula-companheiro, sob pressão do bolivarianismo do MST, esbraveja: “Também sabemos brigar. Sobretudo quando o Stedile colocar o exército dele nas ruas”. A infeliz bravata lembra as invectivas de comunistas e nacionalistas nos anos 1960 contra o gorilismo — termo designador das vozes oriundas da direita militar que se eriçavam diante da radicalização dos movimentos sociais e das reformas de base “na lei ou na marra” —, baseadas na suposta invencibilidade do “povo unido” e do dispositivo militar-legalista de Jango. O gorilismo, como se sabe, cresceu em meio à falta de rumo do governo populista e sua vacilante inclinação pelas bandeiras radicais, e o esquema militar-legalista se esfumaçou diante das contradições e tibiezas da coalizão governista.
A partir de 1984, o gorilismo desapareceu de cena e as reformas de base perderam seu foco revolucionário, se tornando um anseio de forças diversas, em sentidos muitas vezes opostos, e, a princípio, processáveis pelas instituições democráticas. O fantasma do comunismo também desapareceria na década seguinte, mas em seu lugar surgiria o fantasma do bolivarianismo, que paira ainda mais ameaçador sobre a América Latina e que Lula-companheiro acaba de colocar no palco da crise, aparentemente desconhecendo seu ingrediente explosivo, potencialmente capaz de despertar as Forças Armadas para seu papel histórico de defensora em última instância da República — o que na história não se deu exclusivamente pela direita, como pensam alguns.
As invectivas de Stedile — “só temos uma forma de derrotá-los agora: é nas ruas” — são inócuas como peça dissuasória, mas têm forte potencial desestabilizador das articulações de Lula-pragmático e do próprio Governo. Assim, se a retórica radical progredir, aumentam as chances de o bolivarianismo cordial do PT — como denomina Jabor — ser crescentemente percebido como a fase larvar do bolivarianismo propriamente dito, em vez de mutação genética provocada pela tendência tupiniquim à antropofagia de ideias, que lhe emascularia o vigor populista-revolucionário.
A perspectiva confrontacionista de Lula & Stedile é perigosa para a democracia, mas é improvável que eles consigam desviar o foco da crise, do parlamento para a ruas, como pretende Stedile, porque a maioria das lideranças petistas deve se lembrar dos acontecimentos de 1963-1964, num contexto onde o partido dos trabalhadores de então (Partido Comunista Brasileiro) não podia disputar eleições e a central sindical dos trabalhadores (Comando Geral dos Trabalhadores) não estava institucionalizada — aumentando a tendência de ambos escorregarem para a aventura política —, situação em que o enfrentamento das ruas beneficiou apenas a direita.
Hoje, além de não terem um verdadeiro dispositivo militar, é muito mais custoso para o PT e a CUT optarem pela luta extrainstitucional do que outrora foi para o PCB e o CGT — o mesmo se aplicando ao MST em relação às Ligas Camponesas, embora a um custo menor. A institucionalização da esquerda foi uma das grandes conquistas da redemocratização e torna muito problemática qualquer guinada política em direção às ruas, como se viu no passado.
O próprio Parlamento é outro; nele estão representadas todas as forças políticas do país e, não obstante sua crônica crise de representação, existem todos os recursos formais e informais para digerir a crise político-econômica e oferecer uma alternativa política a ela, sem o beneplácito do PT, como outrora se viu na formação do Governo Itamar — não obstante a escassa credibilidade de suas atuais lideranças institucionais, investigadas pelo STF a pedido do MPF.
A este respeito, é bom não subestimar a capacidade dos partidos de tomar posições institucionais quando se trata da sobrevivência política, o que pode significar o rearranjo das forças oligárquicas em seu seio, entre outras atitudes não corriqueiras e pouco perceptíveis aos olhares da maioria dos analistas. De novo, o impedimento de Collor e as articulações que deram ensejo ao Governo Itamar são dignos de nota — assim como o foi a própria vitória de Tancredo no Colégio Eleitoral da Ditadura em 1984. Na primeira ocasião, se criaram as bases políticas e programáticas para que o país superasse a hiperinflação e progredisse em direção ao desenvolvimento econômico e político, cujo clímax o PT não soube gerenciar em função de seu patológico apetite por poder.
Cunha e agora Calheiros parecem ser a expressão provisória, mas não fugidia, de que o Centrão — outrora protagonista do equilíbrio político no seio da Assembleia Constituinte de 1986 — volta a articular-se no parlamento em meio à incapacidade do PT e seus aliados de acharem um rumo coerente e razoável para tirar o país da crise em que o chafurdaram.
Aqui voltamos à esquizofrenia dos dois Lula. Sua situação é como a de um afogado: quanto mais se debater, mais severo e custoso será o preço a pagar ao Centrão para atravessar a tempestade sem o apoio da maioria da população e dos agentes econômicos em agonia.
Hamilton Garcia de Lima é cientista político e professor do Laboratório de Estudos da Sociedade Civil e do Estado (Lesce)/ UENF.
Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil
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