Na opinião do entrevistado, os efeitos do posicionamento muito duro do PT com relação a Marina, no primeiro turno das eleições de 2014, ainda são sentidos na política atual, conforme podemos evidenciar na falsa dicotomização que movimentou o espectro político à direita. “O preço imediato (e de longo prazo) dessa falsa polarização organizada em torno do suposto ‘menos pior’ foi o deslocamento de todo o eixo eleitoral para a direita. Alguém pode se perguntar qual seria o interesse do governismo de deslocar o eixo político para a direita. A resposta é contudo muito simples: se trata de uma estratégia cínica e irresponsável de tentar desesperadamente manter sua imagem retórica de esquerda. Parece boçal, mas funciona!”, provoca Cocco.
Frente ao cenário nacional, Cocco admite que o “binarismo do poder pode ter derrotado a multidão de junho, mas nunca vai conseguir cooptá-la”. No entanto, ressalta: “O discurso do ódio, a negação do outro, a procura da homogeneidade são o terreno da identidade, do uno, da exclusão. O contrário da multidão, ou seja, das diferentes singularidades que interagem entre elas se mantendo tais. Junho de 2013 nos mostrou que isso não é uma figura utópica, mas uma realidade potente. Ainda não sabemos como essa potência se realiza em instituições adequadas”.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Após as manifestações de 2013, o senhor dizia temer que militantes de esquerda caíssem na armadilha das “bandeiras”, o que entregaria o movimento para a direita. Foi isso que aconteceu? Existem ecos das manifestações na política de hoje?
Giuseppe Cocco - Vamos começar pela parte final da pergunta: o movimento de junho de 2013 ecoa hoje no Brasil e continuará ecoando, como ainda discorremos sobre a revolução parisiense de junho de 1848 e aquela mundial de 1968. Junho ecoa nas ruas do Paraná, nas manifestações do Movimento Passe Livre - MPL e também dos caminhoneiros, nas greves e no movimento dos garis do Rio de Janeiro, na ocupação do Parque Augusta em São Paulo, nas iniciativas do Bloco de Lutas em Porto Alegre. E também ecoa nas manifestações dos dias 13 e 15 de março: apesar dessas manifestações serem o junho de 2013 pelo avesso, elas confirmam sua potência e atualidade. No dia 13, como já apontamos, vimos exatamente o contrário da multidão: um rebanho uniformizado e manipulado e até pago por uma operação instrumental.
No dia 15, a mobilização de uma verdadeira indignação, espontânea e horizontal, mas atravessada por um viés conservador, ou seja por um viés (que não acho que seja tão majoritário como o governismo tenta dizer) que se preocupa mais com a corrupção como desvio da regra do que como funcionamento mesmo de um sistema desigual. Mas que seja dito de maneira clara: a responsabilidade dessa situação é mesmo do governo e do PT e quanto menos teremos determinação de dizer isso, mais as conseqüências nefastas desse desmando se generalização a toda a esquerda. Será que podemos chamar isso de uma multidão? Eliane Brum encontrou uma reposta dizendo que a “multidão (que poderia ter defendido o PT) ficou em casa”, não foram as ruas nem no dia 13, nem do dia 15 . Mas, paradoxalmente, é o 15 de março que é mais parecido com junho e ao mesmo tempo os setores mais jovens e criativos não se mobilizaram ainda. Mas isso não significa que não o façam. Por exemplo, num belo artigo de Alexandre Mendes, podemos ler que os moradores da favela do Morro dos Cabritos em Copacabana participaram massivamente ao panelaço que houve durante a coletiva dos ministros (em 15-03-2015) . Com efeito, a multidão não é uma manifestação em si, mas o fazer-se de uma subjetividade que se mantém múltipla. Como disse o Bruno Cava, hoje é muito mais difícil que em junho de 2013 de “fazer multidão”. Mas é isso que é preciso fazer.
Apesar dos esforços realizados pela esquerda de poder (o PT e seus aliados) para que isso acontecesse, o movimento de junho não foi à direita. Nesse sentido, acho particularmente acertada a pergunta que lembra as polêmicas ligadas a esse episódio “das bandeiras”. Trata-se do que ocorreu nas grandes manifestações do 20 de junho, em particular no Rio de Janeiro, na Avenida Presidente Vargas, quando os portadores de bandeiras partidárias (vermelhas) foram impedidos de participar (no caso do governismo eram da Central Única dos Trabalhadores - CUT e do PT) ou violentamente expulsos (no caso dos pequenos partidos de oposição que tinham formado um “bloco” dentro da manifestação oceânica: PSTU, PSOL e PCB). Naquele momento escrevi exatamente isso (aliás, publicado em uma revista bastante “governista”): "Depois das agressões às bandeiras de partidos, no último dia 20 de junho, toda a esquerda entrou em uma postura reativa: “se as manifestações não gostam de nossas bandeiras, elas são de direita ou são massa manipulada pela direita¹" e sequer por simbologias abstratas produzidas pelo marketing milionário. A luta é material: por 20 centavos, pelo passe livre, contra as remoções, pelo Amarildo . O problema não é do movimento, mas das bandeiras que não correspondem mais à materialidade das lutas ou, pelo contrário, se tornaram os determinantes da dominação e da exploração. No caso do PT e da CUT elas coincidem com as políticas de megaeventos e remoções de pobres, com as megaobras que devastam as reservas indígenas, com o agronegócio que devasta a floresta e, pois, com o Poder. Pior, a CUT mostrou uma cegueira corporativa incrível diante da loucura dos subsídios bilionários que o governo repassou à indústria multinacional do setor automotivo: foi uma verdadeira “bolsa empresário”! No caso da esquerda de “oposição”, as bandeiras apenas apareceram como tentativas de colocar um “chapéu” em cima de um levante que suas micro-organizações sequer tinham previsto em termos de composição social (de classe) e que devia sua potência à sua radical espontaneidade e horizontalidade. Claro, a mobilização do dia 20 de junho, depois da reviravolta da grande mídia que passou da condenação das manifestações ao apoio, estava cheia de ambiguidades e talvez a agressão foi planejada por algum grupo manipulado. O fato é que, quando aconteceu, o sentimento geral da multidão era de hostilidade a toda tentativa de “representar” um movimento que “valia a pena” exatamente por ser irrepresentável.
Agora, é particularmente interessante lembrar o debate daquele momento porque havia ali algo que ia bem além da questão das bandeiras, uma verdadeira estratégia de mistificação que o “governismo” estava apenas começando a tocar. Peço desculpa de recorrer a mais uma autocitação, mas me parece ainda produtiva. Naquele mesmo artigo eu escrevi também: "A mobilização deve ser, agora, multitudinária, sua polifonia, espontânea e auto-organizada, bem como a ausência de linha, organicidade e liderança; estas são as maiores bandeiras que um militante pode carregar! Insistir em impor a 'Luta das Bandeiras' a um movimento que tem a luta como bandeira foi um erro político até aquele recente 20 de junho. Hoje, pode ser uma grave irresponsabilidade: deixar esse espaço aberto justamente àquela direta, que avança usando apenas o verde e o amarelo". Tudo isso também continua atual, urgente e até dramático: o que até o 20 de junho de 2013 podia parecer um “erro” político era na realidade uma escolha que o PT e o Governo (daqui para frente falarei apenas de “governismo” em geral) tinham feito e iriam aprimorando, aprofundando e potencializando: a determinação firme do “governismo” de desqualificar o movimento de junho e a polêmica das bandeiras foi apenas um pretexto para criar um embate que pudesse funcionar — pela construção de alguma forma de identidade abstrata — como um mecanismo de mistificação política contra o movimento e contra a própria democracia. O episódio das bandeiras foi apenas um primeiro ensaio. O segundo foi o do patriotismo — uma “ideia” fora de época e fora do lugar — da “Copa das Copas” e nos mostrou mais um grau de cinismo governista: ao passo que o “verde e amarelo” era suspeito nas manifestações de junho (e naquelas de março de 2015!), ele se tornava obrigatório para a pátria da chuteira (antecipação vergonhosa da não menos vergonhosa “pátria educadora”): a histórica goleada da seleção pela Alemanha impediu que a operação fosse bem-sucedida, apesar de o movimento contra a copa ter sido bem fraco e submetido a um forte esquema repressivo planejado desde o Planalto (com a colaboração do know how de tudo que existe no mundo em termos de segurança e vigilância). Mas foi nas eleições de outubro de 2014 que a mistificação das “bandeiras” voltou “com tudo” e, depois do “susto” pelo acidente que matou Eduardo Campos, quando Marina parecia arrasadora, foi totalmente — e tristemente — bem-sucedido. O marketing eleitoral do governismo foi implacável, destruindo a própria figura da Marina e não a candidatura, usando as manipulações mais cínicas e as mentiras mais deslavadas (sem que movimento feminista nenhum se comovesse) para impedir uma triangulação que impediria o funcionamento desembestado da demagogia bipolarizadora. É conversando com amigos no exterior que se tem uma dimensão do que foi feito: para quem sequer conhece o Brasil e o fato de que Marina foi companheira do Chico Mendes, militante do Partido Comunista Revolucionário - PCR, fundadora do PT, duas vezes ministra de Lula, ela era uma candidata não apenas de “direita”, mas até de “extrema” direita. Vejam bem, o governismo petista se permite fazer esse tipo de desinformação que deixaria a Pravda stalinista vermelha de vergonha pelo nível de boçalidade e o PT tem hoje um governador (da Bahia) que não apenas manda sua PM matar a esmo, mas também comemora a matança e ainda debocha do governador (tucano!) de São Paulo por não ter a mesma determinação assassina.
Com Marina eliminada, a máquina da mistificação pôde enfim fazer funcionar a pleno regime a “binarização” do debate e chegou ao seu maior sucesso no segundo turno, criando uma verdadeira mobilização social em torno do... nada: uma simbologia de “esquerda” totalmente vazia e logo preenchida por um governo de direita. O preço imediato (e de longo prazo) dessa falsa polarização organizada em torno do suposto “menos pior” foi o deslocamento de todo o eixo eleitoral para a direita. Alguém pode se perguntar qual seria o interesse do governismo de deslocar o eixo político para a direita. A resposta é, contudo, muito simples: trata-se de uma estratégia cínica e irresponsável de tentar desesperadamente manter sua imagem retórica de esquerda. Parece boçal, mas funciona! Ninguém hoje se pergunta mais onde está o tal “legado da Copa”! E no Rio de Janeiro, no meio de cortes e recortes de orçamento, está se preparando mais uma obra no Maracanã (a terceira em menos de 10 anos).
Como sabíamos, tratava-se de uma grosseira mistificação e sequer precisamos esperar muito tempo para saber que Dilma e o PT iriam fazer exatamente aquilo que acusavam o Aécio de querer fazer. O menos pior apareceu imediatamente como sendo o mesmo pior. Apesar da forte presença de setores de classe média (como em junho), a manifestação do 15 — sobretudo em São Paulo — vai muito além disso. E o governismo, acuado e chantageado pelos compromissos que agora desabam na cabeça dele, insiste em transformar a indignação em um desenho golpista e direitista, ajudando a cavar seu túmulo, mas querendo colocar toda a esquerda dentro dele. O vídeo que o Viomundo² publicou mostra que não é bem assim. Dessa vez, o governismo conseguiu fazer valer a chantagem. No 20 de junho de 2013, estávamos todos lá, fazendo multidão! No dia 15, quando valia a pena, deixamos a indignação popular generalizada (que apenas está começando) a um viés liberal.
IHU On-Line - As manifestações daquele período ocorreram em ressonância com outras em nível mundial (Espanha, Grécia, Turquia, Egito, etc.) que tiveram resultados bastante diversos. Como as manifestações do Brasil dialogam com estas experiências internacionais?
Giuseppe Cocco - O Brasil e as manifestações no Brasil dialogaram e continuam dialogando, de várias maneiras, com as primaveras árabes e seus desdobramentos: os positivos e os negativos se inspiraram do levante de Istambul e receberam as balas de chumbo (no dia 24 de junho de 2013) na Maré da repressão egípcia.
Por um lado, cabe lembrar como “junho de 2013” foi um momento de um ciclo global. Pelo outro, as lutas e o movimento no Brasil são atravessados pela diversidade contrastada dos “resultados” dos diferentes levantes.
Contudo, eu acho que não se deve falar em “resultados”, mas em processos e apreender os diferentes levantes do ponto de vista dos níveis de abertura ou fechamento dos processos constituinte e de transformação que eles determinaram (e os determinaram). O “processo” foi totalmente fechado no Egito e parece totalmente aberto na Espanha. No Brasil, estamos numa fase onde a brecha democrática parece ter sido fechada definitivamente. Mas ainda é cedo para tirar uma conclusão definitiva, pois ela foi fechada pela irresponsabilidade do governismo e até pelas incríveis posições governistas da esquerda de oposição.
Lembremos, o levante brasileiro de junho de 2013 ecoou sobretudo o levante de Istambul, da mesma maneira que ele reverberou, quando ainda estava vivo com ocupações de Assembleias e Câmaras (no Rio de Janeiro com manifestações diárias), em Kiev na Ucrânia, com a revolução da praça Maidan . Hoje temos os tanques na Maré e a guerra que a Rússia trava nas regiões fronteiriças da Ucrânia. Aliás, é muito curioso (e emblemático) ver como a revolução de Kiev acaba sendo objeto de uma censura: uma censura ativa por parte de setores da esquerda (muitos deles “governistas”) e algo ainda pior, uma autocensura, todo o mundo ficando constrangido, sem saber direito se é bom falar da Ucrânia e preferindo não mencionar esse belíssimo momento democrático que foi a multidão de Maidan. Se você nasce na Ucrânia, não pode lutar por liberdade, pois assim você seria instrumento do imperialismo.
A cultura e a identidade de “esquerda” continuam mantendo um viés stalinista, que, aliás, nos mostra muito bem o que escondia o episódio das bandeiras: se você critica o PT e o governismo, você é com certeza um instrumento do “inimigo”, dos banqueiros, do “imperialismo”... pouco importa que o PT e o governismo estejam faz 13 anos governando com a direita e pela direita, ou seja, com os banqueiros, a demagogia funciona. É exatamente o stalinismo assim como nos contou o grande escritor Vasily Grossman, o maior correspondente de guerra do jornal Estrela Vermelha: ao mesmo tempo que Molotov (pela União das Repúblicas Socialistas Soviéticas URSS de Stalin) negociava um acordo com Ribbentrop (pela Alemanha de Hitler), milhares de comunistas eram assassinados nos expurgos, tendo que confessar serem agentes do inimigo, “quintas colunas”. Por isso, o governismo chegou à exaltação na desqualificação de Maidan, os ucranianos não tem o direito de lutar, por definição eles são de direita e, sendo supostamente antirrussos, são instrumento do “imperialismo” norte-americano. Boaventura Santos, num artigo de comemoração da vitória de Dilma nas eleições, chegou a escrever algo inquietante: defendeu que “o Brasil é hoje o exemplo internacionalmente mais importante e consolidado da possibilidade de regular o capitalismo para garantir um mínimo de justiça social” e isso na medida que, juntamente com China, Índia, e Rússia (!), ele promoveria não apenas um “capitalismo social” mas também “uma nova guerra fria” .
Em seguida, podemos dizer que encontramos no Brasil de hoje vários dos desdobramentos (contraditórios) dos diferentes levantes. Em primeiro lugar, encontramos o fechamento da brecha democrática e a guerra como terreno de restauração do poder: isso que acontece entre a Síria e a Líbia, com o golpe no Egito e a intervenção russa na Ucrânia, mas também com a militarização das favelas do Haiti e do Brasil e a banalização pela esquerda (vide a atuação do PT no governo da Bahia) dos genocídios dos jovens negros e pobres. Estamos diante de um novo tipo de guerra, que se parece com uma guerra civil generalizada dentro da crise das bases biopolíticas da democracia. O que torna esses levantes ainda mais fundamentais para construir a democracia. Em segundo lugar, encontramos a crise em níveis gregos ou venezuelanos, aliás, uma tentação irresponsável do governismo de levar o enfrentamento nesse patamar apenas para poder negociar sua “salvação”. Em terceiro lugar, os movimentos no Brasil estão num grande impasse e olhando com muita atenção para como na Grécia e na Espanha estão nascendo novas experiências no terreno institucional e de novas formas de representação.
IHU On-Line - Como os modelos de Esquerda emergente — Syriza (Grécia) ou Podemos (Espanha) — podem contribuir para a construção de modelos políticos alternativos para o Brasil frente a atual conjuntura?
Giuseppe Cocco -Syriza e Podemos estão mostrando que os levantes não são efêmeros e que a crítica da representação oriunda do período industrial e moderno não significa renuncia à representação tout court. Pelo contrário, na esteira dessas lutas multiplicam-se as experimentações de todos os tipos, inclusive no terreno institucional e com o surgimento de novas propostas e/ou de novos partidos.
Na Grécia, o Syriza mostra que é possível, sim, um programa reformista de esquerda ganhar as eleições e tentar aplicá-lo. Seu sucesso eleitoral, que tornou reduziu o histórico PASOK uma legenda secundária, é uma pedrada para os partidos de esquerda que se escondem atrás dos constrangimentos macroeconômicos e globais. O PT já é o PASOK, mas ganhou as eleições e o impasse atual é mesmo a consequência disso.
Na Espanha, o Podemos ainda não ganhou, mas já é um terremoto político e eleitoral e mostra que o 15M é base de uma inovação duradoura e radical. Trata-se de mais um desmentido sensacional do discurso que atribuía aos movimentos a volta da direita ao poder (discurso que o governismo fez sistematicamente no momento da campanha eleitoral de 2014).
Então, Syriza e Podemos já são para o Brasil um balão de oxigênio para pensar e fazer política numa perspectiva democrática, para além dos impasses do movimento e do desmoronamento vergonhoso do sistema dos partidos. Acredito que não se trata de modelos, ainda menos de expressões linearmente positivas e puras de uma nova horizontalidade. Por isso, precisamos mapear com cuidado essas experiências, apreender a potência e os limites para fazer outra coisa! Talvez, a força deles é mesmo de não serem modelos. Com certeza, Syriza e Podemos contribuem para acelerar a urgente renovação das forças políticas no Brasil e isso por uma série de razões: por serem uma resposta à política de austeridade imposta pelo Banco Central Europeu (o Syriza), por ter conseguido afirmar a possibilidade de ganhar (Podemos) passando por fora das formas atuais de organização partidária. Isso já tem um impacto no Brasil e mundo afora.
Então, mais do que modelos, trata-se de expressões da vitalidade das lutas, e os limites dessas expressões estão e estarão na capacidade que terão ou não de ser um momento de abertura dessa vitalidade e não de seu fechamento.
Desde já temos condições de indicar pelo menos alguns dos desafios pelos quais tais experiências passam e passarão:
- Syriza depende do nível de apoio que encontrará nos movimentos europeus (no dia 18 de março houve uma mobilização europeia para protestar contra o BCE, em Frankfurt) e do próprio sucesso do Podemos na Espanha; sem isso, dificilmente vai conseguir manter a prova de força com a Troika. Se o movimento europeu não conseguir reforçar a brecha aberta pela vitória do Syriza, podemos prever o pior em dois cenários bastante inquietantes: a homologação do Syriza dentro de acordos impostos que fariam de sua experiência mais um caso da incapacidade da esquerda partidária de lutar por uma saída do neoliberalismo (isto é, o Syriza viraria mais um PASOK); uma virada antieuropeísta na tentativa de balancear as imposições da UE por meio de alianças com Rússia e China. Nos dois casos, a Grécia se tornaria o teatro da ascensão do fascismo neo-soberanista, aquele que gosta do fascismo de Putin, que cultiva o ódio pelos imigrantes na França (Marine Le Pen) e na Itália (Matteo Salvini ).
- Um segundo desafio, que diz respeito sobretudo ao Podemos que se constituiu como uma nova força, é de conseguir articular de maneira virtuosa duas dimensões de sua constituição que são potencialmente contraditórias: por um lado, trata-se da dimensão midiática da figura do Pablo Iglesias, que desempenhou e desempenha um papel fundamental na proposta do Podemos (e que faltou à proposta do Partido X articulada no âmbito do DRY ); pelo outro, a potência social das redes e das ruas oriundas do 15M ao longo desses anos. Juntando-se a Iñigo Errejón e Monedero para fundar o Podemos, Pablo Iglesias conseguiu uma proeza: propor ao 15M uma perspectiva majoritária ocupando ao mesmo tempo a “terra de ninguém” liberada pela crise vertical do sistema representativo oriundo do período industrial. O Podemos ocupou o vazio que em outros países é ocupado por experiências bem mais ambíguas: na Itália foi a Lega Nord e hoje é o 5 Stelle ; na França é o inquietante Front National de Marine Le Pen (filha do Jean Marie Le Pen ). O grande fato do Podemos é que por uma vez são ativistas oriundo da esquerda horizontal, crítica da forma partido (conheço Pablo Iglesias que era da Universidad Nómada espanhola, o conheci em particular numa Universidad del Verano que organizamos com o saudoso professor Joaquin Herrera Flores, da UPO de Sevilla, em Carmona, em 2007) apreenderam o kayros, ou seja, souberam propor uma linguagem adequada no momento oportuno: oferecer uma resposta política radical, mas ao mesmo tempo com a ambição de poder ganhar e, para isso, se libertando das amarras ideológicas do discurso de “esquerda” em todas suas variantes.
- O terceiro desafio é a existência de certo nível de autonomia do político bem representado pelo papel central e vertical de Pablo Iglesias e das duas outras figuras da direção, Inigo Errejon e Juan Carlos Monedero. O sucesso eleitoral do Podemos contém essa ambiguidade. Por um lado, a “autonomia” do político dessa “cúpula” foi um acelerador na definição discursiva e no processo decisório que está na base da própria proposta. Pelo outro se apresenta como um perigo de que o Podemos não consiga realmente inovar na forma de organização e acabe sendo apenas mais um “novo” partido velho.
- O quarto desafio é talvez o mais paradoxal e diz respeito ao referencial que inspirou Podemos, a saber, a experiência dos “novos” governos sul-americanos. Bruno Cava já escreveu um artigo magistral sobre as alternativas teóricas e políticas entre a abordagem que o Podemos privilegia (aquela populista inspirada em Ernesto Laclau) e a abordagem que — até hoje pelo menos — me pareceu mais produtiva, aquela de Antonio Negri e Michael Hardt em termos de Multidão (Rio de Janeiro: Record, 2014). As trajetórias do chavismo na Venezuela, aquela neoperonista do Kirchnerismo na Argentina, bem como aquela boliviana de Evo e aquela “lulista” do Brasil são fontes preciosas de inspiração do Podemos e de seus líderes que trabalharam diretamente com Chavez e Evo Morales. Creio que aqui entenderam como se faz para ganhar as eleições e como isso implica em mudanças radicais do regime discursivo oriundo da tradição ideológica da esquerda. Aqui também aprenderam a centralidade do “Estado” do ponto de vista de qualquer proposta de transformação social. Pois bem, aqui também vão ter que urgentemente entender, em primeiro lugar, que tudo isso (o ciclo dos governos progressistas) acabou e, em segundo lugar, que essas experiências que chamávamos de “progressistas” na Venezuela, na Argentina e agora também no Brasil fracassaram. Trata-se de um duplo fracasso: por um lado, da tentativa neodesenvolvimentista que se resolveu num total fiasco econômico e social; pelo outro, da relação com o Estado: ao invés dos governos progressistas se manterem como brechas para que os movimentos estejam dentro e contra o Estado numa dinâmica de radicalização democrática, eles rumaram — em graus diferentes — para um tipo de governabilidade autoritária que faz do controle do Estado seu horizonte fundamental e total. Que Maduro — graças ao apoio das forças armadas — por enquanto controle o Estado (e reprima a sociedade) e o governismo petista seja engolido pelo Estado (entre o Lava Jato e a guerra em que se transformou a coalizão com o PMDB) não muda muita coisa do ponto de vista da democracia.
IHU On-Line - Em 2013, a população saiu às ruas contra um modelo político. Em 2014 foi eleito o Congresso mais conservador desde 1964. Como entender esta contraditória relação?
Giuseppe Cocco - Acho que já respondi acima. Esse resultado é fruto da crise do lulismo, da qual junho foi um sintoma e um determinante. A derrota de junho (pelo governismo) abriu o caminho para que o mal-estar fosse procurar outras formas de representação. Há mais duas reflexões que cabe fazer: para derrotar junho, o governismo lançou mão de uma violenta campanha destinada a dizer que a sociedade é conservadora, que as redes sociais espalham o ódio e que esse ódio é “um ódio pelo PT”. Foi um sem fim de pesquisas, artigos e colunas lamentando “oh quanto o Brasil é conservador” (aliás é um fluxo que continua). Oras, essa campanha tem algo estarrecedor. Num plano geral, é evidente que o Brasil tem o “conservadorismo que merece”! Como poderia ser diferente diante da violência da desigualdade e da guerra civil endêmica que o caracteriza? O que interessa não é a choradeira sobre o óbvio, mas o que está sendo feito e o que estamos fazendo para mudar isso. Mais uma vez, o governismo consegue se fazer passar de vítima como se os 13 anos de governo do PT não tivessem nenhum papel nesse impasse! Como se a retórica da nova classe média tivesse sido imposta desde fora do governo, como se a total ausência de uma política de segurança pública (ou seja, a continuidade do extermínio dos jovens negros e pobres nas favelas) e de qualquer projeto de desconstrução da guerra às drogas (pela legalização e regulamentação) não fosse de responsabilidade do lulismo; como se a política de megaobras e megaeventos sem reforma agrária e de desrespeito dos direitos indígenas não fosse o resultado do colonialismo interno, para não falar enfim do escândalo dos escândalos: a total ausência de um debate institucional sobre a legalização do aborto, cuja ilegalidade tolhe a liberdade e a vida das mulheres, sobretudo das mais pobres.
Há uma segunda dimensão, mais histórica: podemos pensar o período seguinte à revolução de junho de 1848 ou aquele que veio depois do maio de 1968 na França. As vitórias eleitorais da restauração ou dos conservadores são mais um sinal de esgotamento do sistema do que de sua saúde.
IHU On-Line - Alguns pensadores vislumbram nas lutas autônomas, que têm eclodido desde 2013, uma alternativa à polarização política. O que pode emergir destes movimentos?
Giuseppe Cocco - Desses movimentos podem surgir outros movimentos, como está acontecendo com os Garis no Rio de Janeiro, com as diferentes assembleias que estão discutindo Brasil afora os aumentos das tarifas dos transportes, os megaeventos, as reservas indígenas, etc. Não sei quando, mas no Brasil também estão postas as condições para uma nova institucionalidade e até para uma nova forma-partido, como aquela que o Podemos está experimentando na Espanha.
IHU On-Line - Os movimentos sociais do século XXI tendem a recusar lideranças, justamente porque são organizações políticas da Multidão na metrópole. Diante deste cenário, como fazer com que tais movimentos integrem a política nacional? Qual a importância da escolha de um líder nesse modelo?
Giuseppe Cocco - Do ponto de vista do fazer-se da multidão metropolitana, me parece que o terreno de experimentação é mesmo aquele de uma democracia produtiva. Do mesmo jeito que as metrópoles precisam do trabalho de uma multidão de singularidades entre as redes e as ruas, a multidão metropolitana é capaz de autonomia. Suas formas de organização são e deverão ser cada vez mais territoriais e categoriais, organizando círculos de cidadania e até bolsas do trabalho metropolitano. As metrópoles hoje são gigantescas jazidas de produção de valor: de um outro tipo de valor. Por exemplo, uma metrópole sem carros, cheia de trens, bikes e também cheia de árvores de frutos e hortas! Auto-organização e autoprodução são hoje um terreno possível e imediato.
Mas isso vai precisar também de formas de representação e com relação a isso acho que respondi um pouco quando discuti o caso do Podemos, acima. Só insistiria: hoje, a forma de organização da produção e da vida é cada vez mais colaborativa e horizontal. Toda forma de verticalização tende a ser improdutiva e os atalhos neodesenvolvimentistas da América do Sul foram um fiasco exatamente por serem menos colaborativos, apesar das tentativas de distribuição de renda que podem ter acontecido. Hoje é possível uma tecnopolítica que evite a verticalização sem ao mesmo tempo ficar paralisadas num horizontalismo das assembleias, incapaz de decisão. O líder é sempre uma tentação, porque acelera o processo, mas ele sempre carrega uma enorme carga de autonomia do político e, pois, de uma verticalização antidemocrática e improdutiva. Chega um dia que ele apresenta a conta, e é sempre salgada (estamos vendo aquela do lulismo, sendo que o Maduro está apresentando aquela do Chávez).
IHU On-Line - Dentro da ideia da Multidão como superar um comportamento de ódio mútuo gerado a partir da polarização política, típica da sociedade de massa? Quais os riscos do projeto político da Multidão deixar emergir racionalidades/ideologias que possam representar riscos ao avanço democrático e do bem-estar comum das sociedades?
Giuseppe Cocco - O conceito de “multidão” não é aquele de um projeto político, mas a definição ontológica da nova condição do trabalho e da luta (da política) no capitalismo contemporâneo. Política e economia nunca se separam no fazer-se da multidão como nova realidade ontológica do social.
A luta hoje não passa mais por nenhuma ambiguidade em termos de construção do “uno”, de uma identidade exclusiva, seja aquela de povo ou de classe. Dentro e contra a nova condição, a proposta é de apostar numa política da diferença, de um “uno” (uma colaboração) que não passa por nenhuma redução e — continuando a ser múltiplo — não se deixa capturar pelo Estado e sequer pelo Capital. O binarismo do poder pode ter derrotado a multidão de junho, mas nunca vai conseguir cooptá-la. O discurso do ódio, a negação do outro, a procura da homogeneidade são o terreno da identidade, do uno, da exclusão. O contrário da multidão, ou seja, das diferentes singularidades que interagem entre elas se mantendo tais. Junho de 2013 nos mostrou que isso não é uma figura utópica, mas uma realidade potente. Ainda não sabemos como essa potência se realiza em instituições adequadas.
IHU On-Line - De que maneira as políticas públicas atuais estão relacionadas a uma espécie de capitalismo cognitivo de onde a construção da cidadania está diretamente relacionada à ideia de consumo? Até que ponto a financeirização das políticas públicas não acaba convertendo a sociedade a uma economia da exclusão?
Giuseppe Cocco - O capitalismo nunca organizou a exclusão a não ser para melhor incluir, ou seja, explorar. Só que o faz segundo modalidades diferentes ao longo da história, em função da resistência que ele encontra, por um lado, por parte das populações que ainda não foram incorporadas (incluídas) e, pelo outro, do próprio trabalho assalariado. É também preciso ver que o capitalismo se caracteriza pelas crises e é preciso fazer a distinção entre os mecanismos de inclusão e exclusão estruturais de um determinado regime de acumulação com relação ao que determina o ciclo de uma crise. Hoje em dia estamos num capitalismo que se organiza pela inclusão dos excluídos como tais e ao mesmo tempo esse capitalismo está em crise. O que isso significa? Que o capitalismo cognitivo se caracteriza por mobilizar o trabalho por fora da relação salarial, diretamente nas redes de reprodução e que os transportes não são mais apenas esteiras de circulação, mas linhas de produção. Da mesma maneira o consumo se torna produtivo. Assim o trabalhador empregado se torna cada vez mais um empregável que trabalha: com um estatuto precário, numa crescente fragmentação: os pobres passam a ser explorados como pobres e a relação de crédito e débito substitui e qualifica aquela de assalariamento, fazendo das finanças o modo de governança do capitalismo cognitivo. Junho nos mostrou que ao mesmo tempo as lutas passam a acontecer nas metrópoles: nos transportes ou nos rolezinhos, com os professores e os garis. Estamos em uma sociedade de inclusão, mas de uma inclusão por modulação da precariedade. Ao mesmo tempo, esse capitalismo está numa crise estrutural desde 2007 e 2008 no nível global com relação à qual não se vislumbram formas de regulação. As tentativas no eixo Syriza-Podemos poderão ser inovadoras desse ponto de vista.
Enfim, queria dizer que o desafio que temos é romper a chantagem governista e voltar a fazer multidão dentro da justa indignação, reabrindo a brecha democrática. Não há outras escolhas e não sei quando e como o evento dessa retomada vai acontecer. Embora seja muito difícil, há vários sinais que precisamos lembrar: o panelaço no Morro dos Cabritos em Copacabana, no dia 15; no mesmo dia, a manifestação em memória de Claudia, a mulher negra assassinada e arrastada faz um ano pela PM do Rio, a greve autônoma dos garis que se articulam também com os “círculos de cidadania”.
Assim, concluiria lembrando o que escrevi em junho de 2013 e que continua atual: "A questão é inventar uma nova antropofagia política, um novo 'pau-Brasil', como Oswald de Andrade soube fazer nos anos 1920". Precisamos, pois, ir para a terceira margem do rio.
Notas do Entrevistado:
1.- Giuseppe Cocco, “Ser de esquerda é ter a coragem de mergulhar no levante da multidão”, Revista Brasileiros,http://brasileiros.com.br/2013/06/ser-de-esquerda-e-ter-a-coragem-de-mergulhar-no-levante-da-multidao
2.- Para assistir o vídeo acesse http://www.viomundo.com.br/politica/caio-castor-protesto-contra-dilma-na-paulista-foi-muito-alem-da-classe-media.html
(*) Giuseppe Cocco é graduado em Ciência Política pela Université de Paris VIII e pela Università degli Studi di Padova. É mestre em Ciência, Tecnologia e Sociedade pelo Conservatoire National des Arts et Métiers e em História Social pela Université de Paris I (Panthéon-Sorbonne). É doutor em História Social pela Université de Paris I (Panthéon-Sorbonne). Atualmente é professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e editor das revistas Global Brasil, Lugar Comum e Multitudes. O último livro publicado é KorpoBraz: por uma Política dos Corpos (Mauad, 2014).
Por Patricia Fachin e Ricardo Machado
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