terça-feira, 17 de março de 2015

A jovem senhora não merece ser maltratada: A reforma política é urgente (Lucia Hippolito)




Trinta anos. Uma jovem senhora. E, no entanto, este é o mais longo período democrático por que passa o Brasil desde o final da República Velha (1889-1930). Entre 1934 e 1937, foram três curtos anos. Entre 1945 e 1964, passaram-se 19 anos. E, finalmente,desembocamos no atual período democrático.

A redemocratização brasileira foi uma transição negociada. Uma transição pela transação, por assim dizer. Reuniram-se a oposição, liderada por Ulysses Guimarães e Tancredo Neves, e dissidentes da ditadura que perceberam que os ventos estavam mudando.

(Saudades do dr. Ulysses. Mas ele repousa no fundo do mar na baía de Angra dos Reis, para não ver a novela patética em que se transformou a democracia por que ele tanto lutou.)

Por um capricho do destino, o presidente eleito Tancredo Neves morreu sem tomar posse. E o poder caiu no colo do enfant gaté da ditadura, o favorito dos generais-presidentes, José Sarney.

Nesses 30 anos, o Brasil teve um presidente afastado por impeachment, um presidente professor sem origem nas oligarquias tradicionais, um presidente líder sindical, igualmente sem origem nas oligarquias, e uma presidente mulher, saída das entranhas do lulopetismo. Tudo dentro da maior normalidade democrática.

Ah, o país teve também sete planos econômicos, seis dos quais redundaram em espetacular fracasso — o único vitorioso foi o Plano Real, que sobrevive até hoje. Mas isto é assunto para os analistas econômicos.

Voltando à política. O regime que resultou da Constituição de 1988 era um regime moderado, com um grande partido, o PMDB, situado no centro do espectro político, como o principal fiador da estabilidade democrática. Mesmo a morte do dr. Ulysses, em 1992, não tirou do PMDB este papel. A radicalização dos últimos tempos tem a ver com a disputa entre PT e PMDB pelo posto de fiador do regime.

Quanto ao Executivo, sua principal característica é ser um presidencialismo de coalizão, isto é, o presidente precisa de uma ampla base aliada no Congresso para ajudá-lo a governar. Assim sendo, muitas vezes a aliança que foi suficiente para eleger o presidente não é suficiente para lhe assegurar a governabilidade. É necessário agregar mais partidos à base aliada, alguns dos quais podem ter sido derrotados na eleição. São os notórios “aliados de última hora”.

Nos governos de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, para contentar uma base cada vez mais fragmentada e indócil, foram utilizados vários instrumentos à disposição do Executivo: nomeações nos primeiros escalões da República, esquartejamento e aparelhamento da máquina pública, obras nos estados dos parlamentares, emendas ao Orçamento da União.

Mas outros instrumentos mais heterodoxos também estiveram presentes. Falo de corrupção. Os escândalos do mensalão e agora do petrolão mostram que boa parte do apoio ao governo foi pura e simplesmente comprada. O presidencialismo de coalizão passou a reproduzir seus vícios em vez de suas virtudes.

Outros elementos do sistema político também entraram em colapso. O sistema eleitoral, por exemplo. O financiamento das (caríssimas) campanhas é porta aberta a toda espécie de fraude, doações ilegais, caixa dois, doações com vistas a retribuições futuras.

Na área da representação, a permissão de coligações em eleições proporcionais resulta em que ninguém representa ninguém. Ninguém se sente representado. O eleitor vota num candidato, e seu voto pode servir para eleger um candidato antagônico. Esta deformação do voto proporcional interessa a boa parte da classe política, que não tem que prestar contas a um eleitor que ela não sabe quem é.

O sistema partidário conta atualmente com 40 partidos. Na realidade, o número de partidos não é tão importante. Importante é o número de partidos relevantes para o jogo político. Mas a necessidade de contar com uma base aliada cada vez mais ampla faz com que, muitas vezes, o presidente dê importância a partidos irrelevantes. Vejam, por exemplo, a nomeação de Cid Gomes, do recém-nascido PROS, para um dos ministérios mais importantes da República, o da Educação.

Além disso, as facilidades para a existência de um partido, tais como acesso ao Fundo Partidário, horário gratuito em rádio e TV, por exemplo, estimulam a criação de siglas que servem apenas para acomodar dissidências entre a elite política. Não significam nada para a sociedade brasileira.

A inexistência de uma cláusula de desempenho, que imponha certos limites à atuação dos partidos no Legislativo, poderia ser uma barreira eficaz contra esta geleia geral em que se transformou o sistema partidário brasileiro.

As relações entre o Executivo e o Congresso, por sua vez, pioraram bastante desde o primeiro mandato de Dilma Rousseff. Uma presidente que não gosta de política, não sabe fazer política e não quer aprender.

Assim sendo, ao que parece, a reforma política é a mãe de todas as reformas. Mas reside aí um sério obstáculo: a legislação política é a única em que seu autor é também seu beneficiário. Ou seja, dificilmente os políticos serrarão o galho onde estão sentados.

Por isso, é mais fácil fazer pequenos ajustes no sistema político do que aprovar um pacote reformista. Os ajustes serão mais facilmente assimilados pela classe política.

Financiamento de campanhas, com a proibição de doações por pessoas jurídicas. Fim das coligações em eleições proporcionais. Adoção do distritão, em que os mais votados nos estados são considerados eleitos deputados estaduais e federais. Obrigatoriedade de desincompatibilização para candidatos à reeleição aos Executivos estaduais e federal. Medidas simples, com boas possibilidades de aceitação.

Ah, sim. Combate sem tréguas à corrupção. O Brasil ultrapassou todos os limites de uma sociedade que se quer civilizada quando o assunto é corrupção.

A sociedade brasileira não merece isto. A jovem democracia balzaquiana não merece ser tão maltratada.

Fonte: O Globo (15/03/15)

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