domingo, 29 de março de 2015

O impeachment silencioso (Demétrio Magnoli )





Dilma Rousseff "está numa armadilha", diagnosticou FHC à Folha (26/3). "Ela não tem o que fazer. O que tinha, já fez: nomeou o Levy. E isso só aumenta a armadilha, porque agora ela não pode demitir. É refém dele." O diagnóstico está certo, mas ilumina só um terço do cenário. A presidente é refém, igualmente, do PMDB (de fato, do trio Renan Calheiros/Eduardo Cunha/Michel Temer) e do lulopetismo (de fato, de Lula e dos movimentos sociais que operam ao redor dele). Numa entrevista ao "Estadão", Eduardo Graeff explicou que o governo Dilma "chegou ao fim". É verdade: imobilizada na armadilha triangular, sem "credibilidade" nem "capacidade de ação política" (FHC), Dilma reduziu-se a "uma assombração política" (Graeff). Já aconteceu um impeachment tácito, informal.

Levy é proprietário da credibilidade econômica. O ministro funciona como uma delgada película que separa a economia de um catastrófico rebaixamento pelas agências de rating. Dilma não pode demiti-lo pois, sem a promessa do ajuste fiscal que ele personifica, o país seria tragado no vórtice da fuga de capitais. Mas, como registrou FHC, "a racionalidade econômica pura esmaga tudo" --ainda mais, acrescente-se, quando essa "racionalidade" está contaminada pelo dogma ideológico do equilíbrio fiscal a qualquer custo. O ajuste sem reformas estruturais de Levy, complemento simétrico da farra fiscal de Mantega, não serve ao país, mas conserva no Planalto a "assombração" de uma presidente sem poder.

O trio peemedebista é proprietário da maioria no Congresso, que hoje se forma pela oscilação do PMDB entre o governo e a oposição. Dilma não pode confrontá-los, pois eles empunham o sabre do impeachment formal e o fazem girar, sadicamente, em torno do pescoço da presidente. O jogo da chantagem, uma norma do nosso doentio "presidencialismo de coalizão", atinge níveis agônicos. Os chefões do PMDB utilizam esse poder extraordinário em nome dos seus próprios interesses, desenhando a reforma política que lhes convêm e articulando com o governo os acordos de leniência destinados a resgatar as empreiteiras do "petrolão".

Lula, com seu cortejo de movimentos sociais (CUT, a UNE, o MST), é proprietário da sustentação partidária de Dilma. O candidato declarado às eleições de 2018 pode cortar, num momento conveniente, o tubo do regulador que ainda fornece ar comprimido ao fantasma do Planalto. Os andrajos da autonomia da presidente, que atendem pelos nomes de Aloizio Mercadante, Miguel Rossetto e Pepe Vargas, já foram descartados no cesto de roupa suja. Nas ruas, dia 7, repetindo o dia 13, o "exército" de Lula, força mercenária em declínio, não oferecerá um contraponto impossível às manifestações anti-Dilma, mas cobrará novos gestos de submissão da "companheira". Eles exigem iniciativas simbólicas (e verbas publicitárias sonantes), destinadas a compensar a militância pela dores do apoio ao ajuste fiscal.

No presidencialismo, o chefe de Estado não pode tudo --mas tem o poder de determinar os rumos estratégicos do governo. A legitimidade emanada do voto popular é o ativo intangível que proporciona ao presidente o poder de contrariar interesses entranhados no sistema político. FHC confrontou o conjunto da elite política ao estabelecer a Lei de Responsabilidade Fiscal. No seu primeiro mandato, Lula confrontou o PT ao conservar o tripé da estabilidade macroeconômica herdado de seu antecessor. Capturada na teia da mentira, Dilma perdeu a legitimidade concedida pelos eleitores. Sem o rito da denúncia, processo e julgamento, a presidente sofreu um impeachment silencioso.

Assombrado pela figura errante da presidente destituída, o Planalto está entregue ao triângulo de beneficiários do impeachment silencioso, que agem em direções diferentes, sob motivações distintas. O desgoverno não pode perdurar por quatro anos.

FSP (28/03/15)

fs

Incandescência e desorientação (Marco Aurélio Nogueira )




Não foram somente o 15 de março, a demissão do ministro Cid Gomes, a queda vertiginosa dos índices de popularidade da presidente e o documento-bomba da Secretaria da Comunicação Social (Secom), mas esses acontecimentos e o cruzamento diabólico entre eles deram o tom da chamada conjuntura política das últimas semanas. Chacoalharam o governo Dilma, aumentaram os desencontros em seu interior e lançaram uma perturbadora interrogação sobre o que serão seus próximos quatro anos.

O governo Dilma, porém, não acabou e seria um erro dar como favas contadas que não terá como se recuperar. Ficou mais difícil, mas não impossível.

Se o 15 de março e a queda de popularidade mostraram que a resistência social ao governo se está convertendo em fato político, os outros dois acontecimentos revelaram um governo com demasiados problemas internos, desorientado e carente de articulação.

Um governo sem rumo e sem unidade torna-se produtor de problemas, não de soluções. Ter um governo assim logo no início de um período governamental é algo que excita seus adversários e alimenta a crise. Mostra, por exemplo, que não há plano de voo e não se pode saber quem apoia a presidente e quem lhe faz oposição. Turvam-se as águas, aumenta a confusão. As próprias forças tidas como sustentáculo governamental - o PT e o PMDB - se dessolidarizam e ficam, cada uma a seu modo, fazendo só o próprio jogo, sem sincronia com o Palácio do Planalto. Fazem contas para saber como evitar os respingos da crise. Passam a olhar para as eleições municipais de 2016, ao passo que a Presidência precisa olhar para o dia a dia e para 2018.

PT e PMDB podem até fazer juras recíprocas de amor, falar bem de Dilma em público, mas por trás do pano agem de forma defensiva, terminando por produzir desgastes e contrapontos. Não é só Eduardo Cunha, esse presidente da Câmara que opera sem pudor em favor dos próprios interesses, age corporativamente e consegue se fortalecer mesmo cercado de suspeitas, mostrando ser um animal político difícil de enfrentar. É ele, com certeza, mas também é o PMDB como um todo e parte importante do Congresso.

O caso Cid Gomes chamou a atenção pela incandescência e pelo baixo nível. O ex-ministro fez seus cálculos. Não queimou munição à toa, num ímpeto de descontrole emocional. Quis sair de dedo em riste, como aquele que confrontou os que "achacam" a República. Jogou para uma parte da plateia, que não suporta os políticos atuais. O episódio foi péssimo tanto para o Planalto quanto para a imagem do Parlamento e deixou patente que falta graxa nas relações entre os Poderes da República, que não há qualidade no Ministério, que o Legislativo é hoje uma bomba que explode a intervalos regulares, sem que haja quem a desarme. Os pedaços do Congresso que desafiam a Presidência deitam e rolam na mesma proporção em que os demais pedaços não se movimentam.

O documento da Secom - divulgado pelo Estado dias atrás - foi sintomático. Podemos deixar de lado suas impropriedades (a confusão entre governo e partido, por exemplo) e ficar apenas com o que disse a respeito do "caos político" que estaria a ser fomentado pela inação governamental. Segundo o texto, "o governo e o PT passaram a só falar para si mesmos". Foi um diagnóstico duro, incômodo, chega a ser surpreendente que tenha chegado ao grande público. O ministro responsável pelo texto demitiu-se, mas o estrago se espalhou. O presidente do PT, Rui Falcão, fez crescer o vespeiro ao propor que o governo corte a verba de publicidade destinada a veículos de comunicação que "apoiaram e convocaram" as manifestações.

O 15 de março ajudou, de forma ruidosa e polifônica, a descortinar a desconexão entre o palácio e as ruas. Diante dele, o governo falhou duplamente. Errou ao responder por dois porta-vozes que não conseguiram expressar a gravidade do momento, como se ao governo fosse indiferente o protesto, e errou na análise do fato.

Nem ele nem seus apoiadores parecem entender o que está acontecendo com as ruas do País de 2013 para cá. Não decodificaram as vozes que se manifestaram ostensivamente contra a presidente agora em 2015. Optaram por tentar deslegitimar a manifestação, convertendo as pessoas em massa de manobra da "elite branca" e da "mídia golpista". Pior que isso, não conseguem explicar por que a "direita" mostra hoje tanto vigor, a ponto de fazer inveja à "esquerda". Aceitam com incrível facilidade a tese de que os "ricos" têm "ódio" de Dilma e do PT. Estão congelados na mesmice adjetivada, repetindo que a parte (as faixas pedindo intervenção militar) explica o todo, que o 15 de março fez lembrar a Marcha com Deus pela Liberdade de 1964. Querem banalizar a multidão, mas só fazem irritá-la.

As ruas não se movem por utopias substantivas, não têm um programa com que lutar. São contra Dilma, políticos e partidos. Não são a favor de nada. Exprimem uma gigantesca insatisfação social com a política, processo em que se misturam indignação, ressentimentos e frustração.
Mas pau que bate em Chico também bate em Francisco. Não é só o governo que está à deriva, mas o País todo, o sistema político tal como em funcionamento. Hoje o que prejudica o governo não beneficia a oposição a ele. Não há partidos, núcleos democráticos articuladores ou dirigentes políticos a lucrar com a crise, fato que faz o quadro ficar ainda pior. Quem fala pela oposição? O que faz ela, qual seu programa de ação? Se há bons nomes para liderar os que se opõem ao governo, por que não assumem o primeiro plano e se apresentam para "salvar" a República?

A resposta provável talvez nos ajude a relativizar a situação. Os líderes oposicionistas não se projetam pelas mesmas razões que fazem a Presidência sangrar a céu aberto: porque não dispõem de nexos com as correntes vivas da sociedade. É aí, nessa praga maior do capitalismo líquido e globalizado, que reside o maior desafio.

Fonte: O Estado de São Paulo (28/03/15)


sexta-feira, 27 de março de 2015

A crise não é mortal. Presidente é fraca e dependente de Lula (Francisco de Oliveira/entrevista)

A atual crise brasileira “não é uma surpresa” e tampouco diz respeito a uma crise política ampla. Ao contrário, é “uma crise devido ao fato de que a Dilma é uma presidente fraca. Mas também não se trata de uma crise mortal”, avalia Chico de Oliveira, em entrevista concedida por telefone à IHU On-Line. Para ele, em seu segundo mandato, Dilma está “pagando o preço de ser uma candidata dependente do Lula” e de não ter “base própria”.

Ao comentar a atual conjuntura política, o sociólogo é categórico: “Nós deveríamos aprender para nunca mais repetirmos esse estilo mexicano de que um candidato que está na presidência deve apontar seu sucessor. Isso não dá certo no Brasil e não devemos deixar o Lula ou qualquer outro repetir essa situação”.

Depois de ter sido um dos fundadores do PT e ter se desligado do partido, Chico de Oliveira afirma que o “PT já não existe mais, assim como o PSDB também não”. E explica: “O PT não existe justamente porque é um partido de um homem só: tudo começa e termina no Lula. Um partido assim não tem condições de ficar muito tempo na política nacional”. Para ele, o “Brasil não tem um sistema político, tem um sistema de personalidades, as quais têm força por um período. Por isso não é bom que Lula continue indicando presidentes”.

Francisco de Oliveira também comenta as manifestações que ocorreram nos últimos dias 13 e 15 de março e as vê com entusiasmo. “Louvo as manifestações porque provam que a sociedade não está parada, pode reagir, e tomara que isso se repita.” Apesar da boa avaliação, o sociólogo não vê novas possibilidades políticas a partir de tais protestos. “Manifestações são sempre manifestações e a política efetiva corre por outros trilhos. Claro que a política muda um pouco por causa dos protestos, mas ela não se guia por eles. A política é muito mais previsível do que pensamos.”

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Como o senhor está vendo o segundo mandato do governo Dilma?
Chico de Oliveira - É um mandato fraco e isso deveria alertar o país a não confiar nos conselhos do Lula, porque ele “tira os candidatos do bolso” e depois os deixa a ver navios; ou seja, deixa uma candidata como a presidente Dilma à deriva, sem conseguir harmonizar as forças políticas que a apoiam.

IHU On-Line - Lula ainda tem peso na política?
Chico de Oliveira - Sim, e se ele tem intenção de voltar, provavelmente voltará.

IHU On-Line - O retorno dele em 2018 seria viável?
Chico de Oliveira - É viável, mas terá problemas, porque se o governo Dilma se configurar como um governo fracassado, ele terá problemas.

IHU On-Line - Diante da crise atual, qual seria o significado do PT na presidência por mais quatro anos, com o retorno do ex-presidente Lula em 2018, por exemplo? 
Chico de Oliveira - É que o outro lado é muito ruim, os tucanos são ruins de candidatos e não têm o que dizer ao povo. O que Aécio dizia? Nada. Ele não tem mensagem. O PSDB está cheio de políticos sem mandato.

IHU On-Line - E o que o PT ainda tem a dizer ao povo?
Chico de Oliveira - Ainda tem o que dizer, mas isso não significa que vamos concordar com o que é dito. O PT tem uma larga base popular e por conta disso poderia encontrar novas mensagens para o povão. A diferença é que os tucanos não têm uma larga base popular. Contudo, na prática os programas se parecem muito, não têm grandes diferenças. Mas quem sabe na hora certa o PT ainda encontre uma mensagem. Mas isso não dá para prever.

IHU On-Line - Na sua avaliação há uma crise do governo Dilma ou crise política mais ampla? A crise é uma surpresa?
Chico de Oliveira - Não é uma surpresa — e é bom que a sociedade aprenda. O Lula fez uma indicação fraca e maldosa, porque a Dilma não tem cacife próprio, nem base própria e é dependente dele. Ela está pagando o preço de ser uma candidata fraca e dependente do Lula. Com isso, nós deveríamos aprender para nunca mais repetirmos esse estilo mexicano de que um candidato que está na presidência aponta seu sucessor. Isso não dá certo no Brasil e não devemos deixar o Lula ou qualquer outro repetir essa situação.

IHU On-Line - Além da crise do governo Dilma, evidencia uma crise política mais ampla?   
Chico de Oliveira - Não tem uma crise política de modo geral. Tem uma crise devido ao fato de que a Dilma é uma presidente fraca. Mas também não se trata de uma crise mortal. Crise forte foi a do Collor. Estas são as crises de um governo que não consegue arrumar uma estratégia.

IHU On-Line - Alguns dizem que a crise do governo é a crise do lulismo. Concorda?
Chico de Oliveira - É também, mas não se deve apostar muito numa derivação direta, porque o lulismo ainda tem força, porque entre os que aparecem hoje como possíveis candidatos, Lula ainda é o que tem mais força, embora esteja desgastado.

IHU On-Line - Ao invés da Dilma, o PT deveria ter lançado outro candidato à presidência?
Chico de Oliveira - Mas o PT não tem outro candidato. O problema do lulismo é que é uma candidatura de um homem só.
A Dilma não é propriamente um desastre e a crise da Petrobras não é uma responsabilidade apenas dela diretamente. A Petrobras é uma empresa brasileira e mundial, e corrupção e petróleo sempre foram sinônimos; a corrupção da Petrobras demorou a aparecer. A Dilma também está pegando efeitos da crise da Petrobras, com a qual ela tem algo a ver, mas não diretamente.

IHU On-Line - Quais as implicações políticas de o PT ser um partido de um homem só?  
Chico de Oliveira - O PT já não existe mais, assim como o PSDB também não. O PT não existe justamente porque é um partido de um homem só: tudo começa e termina no Lula. Um partido assim não tem condições de ficar muito tempo na política nacional. Nós tivemos medo, por algum momento, de que o PT fosse uma espécie de Partido Revolucionário Institucional - PRI mexicano, mas não é, porque o PRI mexicano controlou a política por 80 anos. Mas no Brasil não tem nada parecido no sentido de haver algum presidente que tivesse feito um sucessor. Vargas não fez sucessor porque se suicidou, Juscelino não fez sucessor, e Jânio, depois de três meses, renunciou. O Brasil não tem um sistema político, tem um sistema de personalidades, as quais têm força por um período. Por isso não é bom que Lula continue indicando presidentes.

IHU On-Line - Concorda que há um pacto entre PT e PSDB, com Levy na Fazenda?
Chico de Oliveira - Não existe pacto nenhum, isso é coisa da imprensa. O fato é que eles não são diferentes em programas a propor. Como não são diferentes, chamam uma personalidade, como Levy, que ninguém sabe de onde veio, para chefiar o governo.

IHU On-Line - Como desenvolver políticas sociais daqui para frente, com a crise econômica e a crise do governo Dilma?
Chico de Oliveira - Não vai se mexer em nada fundamental em relação às políticas públicas e vão fazer ajustes como Dilma está dizendo. Nenhum governo hoje é maluco de tirar as políticas sociais da pauta e dos investimentos do governo. Os governos hoje subsistem por causa das políticas sociais; não há mais uma diferença de política monetária como antes havia e dividia os partidos, como no governo Juscelino, que teve uma política de desenvolvimento boa, mas não teve política monetária. Mas não existe mais esse tipo de divergência. De modo que o que resta para os governos nacionais são as políticas sociais.
O governo tentou avançar, porque Dilma quer se desmarcar do Lula e ter alguma coisa em que ela possa avançar e marcar seu governo. Mas ela terá dificuldades para se manter. Os tucanos também precisam aprender a lição para ver se colocam um candidato mais contundente; Aécio é muito educado.

IHU On-Line - Ele foi um candidato errado para o PSDB?
Chico de Oliveira - Sim, ele é muito educado, tem a herança de Tancredo. Eu não sou tucano e nem sei em quem eu voto hoje, mas o candidato forte do PSDB é o Serra.

IHU On-Line - Que também não teve sucesso ao concorrer à presidência.
Chico de Oliveira - Não teve, mas contra uma Dilma fraca, quem sabe ele tenha sucesso na próxima eleição. Ele tem muito conhecimento em economia, é duro, e usa esse conhecimento até para enganar os bobos.

IHU On-Line - Como o senhor vê as críticas ao fato de que as políticas sociais foram desenvolvidas para sustentar a economia e o mercado financeiro?
Chico de Oliveira - As políticas sociais injetam poder na economia, principalmente se forem políticas sociais com um foco nas classes mais pobres da sociedade. Isso tem um efeito econômico não desprezível, de modo que se as políticas sociais têm efeito na economia, isso é bom, não é ruim.

IHU On-Line - Mas diante de uma crise de baixo crescimento, há um impacto direto nas políticas e nas pessoas assistidas por essas políticas.
Chico de Oliveira - Sim, há um impacto, mas não se trata de uma crise catastrófica. É uma crise cíclica, porque a economia capitalista move-se em ciclos e isso é normal. Enquanto um empresário está tomando decisões, outros podem não estar. Governos e empresários tentam tomar decisões que vão numa mesma direção e isso gera crescimento para o país, mas quando afrouxam as decisões, o ciclo baixa, mas isso não é uma tragédia.

IHU On-Line - Como o senhor viu as manifestações dos dias 13 e 15 de março?
Chico de Oliveira - Não acompanhei tanto, mas posso dizer que até me surpreendi pelo vigor delas. Louvo as manifestações porque provam que a sociedade não está parada, pode reagir, e tomara que isso se repita. Os partidos logo querem capturar esses movimentos e, ao fazer isso, eles geralmente estrangulam os movimentos. Tomara que novas manifestações empurrem os políticos contra a parede.

IHU On-Line - As manifestações foram legítimas? Alguns as criticam, dizendo que foram de direita. Isso corresponde à realidade?
Chico de Oliveira - Não sei se isso corresponde à realidade e se a manifestação foi manipulada pela direita. A direita faz seus movimentos também. A direita tem força e em períodos como esse, de um governo fraco, ela cresce. Não gosto dessas manifestações, mas elas são legítimas e são parte da política.

IHU On-Line - Essas manifestações podem resultar em alguma mudança política?
Chico de Oliveira - Não, porque as manifestações são sempre manifestações e a política efetiva corre por outros trilhos. Claro que a política muda um pouco por causa dos protestos, mas ela não se guia por eles. A política é muito mais previsível do que pensamos. Alguém dizia que a política é como as nuvens. Mas essa frase é falsa. A política é mais previsível do que a maior parte das atividades. Talvez a gente não saiba ler muito bem, mas veja, você não vê o Renan Calheiros nem à direita nem à esquerda, porque o Senado é uma casa importante e ali a opinião pessoal de cada senador vale muito pouco. Eles estão tentando entender o movimento das ruas, o movimento da política para não fazerem besteira. Na Câmara é ainda mais complicado porque tem mais de 500 deputados. Então, não há nada de imprevisível na política.

IHU On-Line - Nessa previsibilidade da política, o que vislumbra para a política brasileira nos próximos anos?
Chico de Oliveira - Nada de mais. Como se observa também em outros países desenvolvidos, nenhum partido entra no governo e muda a política. Isso não existe mais e é coisa do passado, porque as estruturas capitalistas vão se consolidando muito. E são essas estruturas que governam. O bom governante está prestando atenção aí. Obviamente não é exatamente isso que traz benefício ao povo, mas é isso que move a política. 

IHU On-Line - Depois das manifestações, a proposta do governo Dilma foi sugerir uma reforma política. O que acha disso?
Chico de Oliveira - É uma bobagem. Reforma política se faz todos os dias. Dilma enviou Rossetto para falar depois das manifestações porque é um ministro expressivo. Dilma está tentando retomar a popularidade com o Rossetto, até porque ele é gaúcho e os gaúchos sempre tiveram espaço importante na política brasileira nos últimos 50 anos.

IHU On-Line - Ainda há um partido de esquerda no Brasil que possa ter algum papel político?
Chico de Oliveira - Não. E isso é uma tragédia dos países que vão alcançando certos níveis de desenvolvimento econômico, porque as políticas radicais perdem espaço. Veja que a Europa tem tensões políticas fortes, mas nos EUA os democratas e republicanos são cada vez mais parecidos, portanto, pela política não se fazem mais grandes modificações. De modo que o Brasil também já atingiu um certo grau de desenvolvimento, e agora interesses econômicos são muito poderosos e são eles que monitoram o governo o tempo todo. Quando há qualquer sinal de iniciativas que são contra esses interesses, se faz com que a presidência corrija os rumos. Em síntese, a política virou algo muito medíocre. 

(*) Francisco de Oliveira formou-se em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia da Universidade do Recife, atual Universidade Federal de Pernambuco – UFPE. É professor aposentado do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo – USP.

(Por Patricia Fachin)

quinta-feira, 26 de março de 2015

Lá vem um táxi vazio (Murillo de Aragão)

Murillo de Aragão


Para quem não gosta do PT e de Lula, Dilma Rousseff deveria ser um ídolo. Afinal, sob suas competentes mãos, estão sendo destruídos, simultaneamente, o “lulismo”, o “petismo” e as possibilidades de Lula se eleger em 2018. Daí, ironicamente, alguns dizerem: deixem a mulher trabalhar! Nada resistirá ao furacão de incompetência política do atual governo.

Sob a orientação esclarecida de Dilma, o Planalto destruiu a credibilidade fiscal e a credibilidade econômica; e ainda abandonou a prática do diálogo político e social. Mataram o lulismo e não o substituíram por nada. Antes, a destruição estava limitada ao governo. A popularidade da presidente resistia. Mas, agora, com a avaliação no chão e um apoio significativo para o impeachment, a situação mudou muito. De quebra, acabou o predomínio do Executivo no debate político.

Os repórteres Daniel Carvalho e Pedro Venceslau, do Estadão, acertaram em cheio ao afirmar que a crise que levou Dilma Rousseff a atingir o pior índice de popularidade para um presidente da República brasileira inverteu uma das principais características do presidencialismo nacional: o poder sobre a agenda política do país. Até então, cabia ao Executivo impor os temas de debate, argumentam eles.

Esse comportamento gerava reclamações de parlamentares, que se tornavam reféns do Palácio do Planalto. Agora, o jogo virou. Graças ao fortalecimento do Legislativo, é o Congresso que exerce o protagonismo. É na pauta em gestação no Congresso, encabeçada pelo PMDB, que se constata o fortalecimento do Legislativo, no que já é chamado no meio político, segundo os repórteres, de “parlamentarismo branco” e “presidencialismo congressual”.

Um bom exemplo: enquanto o governo se concentra na aprovação das medidas do ajuste fiscal, os parlamentares querem aprovar, em segundo turno, a PEC da Bengala, que eleva de 70 para 75 anos a idade para a aposentadoria compulsória dos ministros dos tribunais superiores e do Tribunal de Contas da União. Com a aprovação da PEC, Dilma deixará de indicar cinco ministros do Supremo.

Como disse Raymundo Costa, do Valor Econômico, a crise também afeta a imagem de Lula. A qualquer momento, quando começarem a fazer pesquisas eleitorais com seu nome, o estrago será comprovado. Outro fato inacreditável dos tempos atuais é a incompetência política do governo; tão grande que não deixa espaço para a oposição. Nada do que a oposição tentar fazer será grandioso o suficiente para se comparar aos erros do governo. Com uma gestão como essa, para que oposição? Como diria Churchill, lá vem um táxi vazio e dele desce o governo

26/03/2015 

O nome da crise não é Aloizio Mercadante (Carlos Melo)




A Aloízio Mercadante tem se atribuído a origem de todos os males do governo. É injusto. O ministro pode estar no olho do furação, mas não é ele o centro da crise.

Boi-de-piranha: a expressão é conhecida. Para salvar a boiada que atravessa o rio, dá-se às piranhas um boi em sacrifício; vorazes elas se jogam alucinadas às carnes desprotegidas do animal, deixando que incólume a Comitiva siga em frente. Em benefício de todos, um foi o escolhido. Um boi entre tantos. É certo que esse boi não era santo.

O boi-de-piranha do momento atende pelo nome de Aloízio Mercadante, que também, é certo, não é santo. O ministro-chefe da Casa Civil tornou-se o centro das críticas ao governo, o anti-herói apontado como o responsável por todos ou quase todos os erros de seu grupo; sua influência – negativa – sobre a presidente da República seria a origem do desastre e do caos que demarcam este mandato, que é verdade, vêm de longe, de escolhas de anos quando Mercadante não tinha influência alguma para se notabilizar tanto assim.

Antes fosse simples assim: procurar o incômodo e, descoberto, retirar um único espinho do pé para aliviar todo o corpo que sofre. Nada, no entanto, é mais enganoso. Mercadante não tem toda essa expressão que lhe atribuir, embora, é possível, até goste de sua fama. Senador por São Paulo, líder de sua bancada, não conseguiu conduzi-la ao enfrentamento com José Sarney — então em desgraça, na presidência de mais um escândalo do Senado. Foi quando bufou, bufou, bufou… Ameaçou e, por fim, renunciou à renúncia irrevogável que prometera e anunciara na véspera. Ficou batendo palmas, sozinho.

Candidato ao governo do Estado, primeiro atrapalhou-se com aloprados; para depois ser derrotado duas vezes, sem apelação. Mesmo no PT não conseguiu se notabilizar como uma liderança que a turma segue. Não teve protagonismo e mesmo Lula nunca lhe permitir chegar a esse ponto. Na verdade, perdera o brilho de estrela que um dia, sim, teve no PT e na CUT.

Sem mandato, foi feito ministro da Ciência e Tecnologia não por pressão de ninguém a não ser si mesmo e por certa dívida pela candidatura de poucas esperanças. Foi ao governo mais por consolação. E, no ministério, cresceu; aproximou-se da presidente que, aos poucos, foi resgatado do limbo – pelas mãos não do Partido, nem da sociedade, mas pelas graças de Dilma. Com a saída de Fernando Haddad para a disputa paulistana, a presidente deu-lhe orçamento e visibilidade, na Educação. Parece terem-se afeiçoado um pelo outro, pois são personalidades muito parecidas.

Presidente isolada, cismada com Lula e com o PT, Dilma encontrou em Mercadante um personagem que, em direção contrária, tinha contra si a cisma de Lula e do PT. Personagens solitários, tiveram uma aproximação de reflexos, como nos espelhos. A desconfiança de um e o ressentimento de outro foram, por assim dizer, as afinidades eletivas que os uniu numa aproximação não de choques, mas de complementos. Dilma encontrou no ministro a quem pudesse dar ouvidos, pois aquela voz parecia, e muito, com a sua própria voz; o ministro teve na presidente quem o ouvisse. Transformou-se num conselheiro dos conselhos que se quer ouvir.

As circunstâncias amarraram com laços bem firmes uma relação de fidelidade. E hoje Dilma reluta em “rifar” o companheiro que mais que auxílio tem lhe dado apoio. Sabe que o ministro não é o responsável por todos seus males. Sabe, intimamente, que, no mínimo, tem que compartilhar as cargas e as culpas com ele.

Pois, contudo, contudo, contudo… não se deve perder de vista que a força do ministro deriva da presidente; a luz própria de Mercadante não é de alta voltagem e acende nas baterias de Dilma. De forma que os pecados do ministro não são apenas seus: no limite, a responsável pelos erros cometidos em profusão e atribuídos a Mercadante chama-se Dilma Rousseff. Esta crise é, sobretudo, sua. E atende por seu nome.

A versão de que o ministro teria “sequestrado o governo” — como, se diz, teria afirmado o ex-presidente Lula — não é para ser levada a sério. Diversionista, serve para afastar o foco dos reais problema e questão: as escolhas são feitas pela presidente, no exercício de suas intransferíveis e irrenunciáveis atribuições e responsabilidades. Seria mesmo muita ingenuidade – ou má fé — acreditar que Dilma se deixaria influenciar por quem quer que seja; como se fosse uma adolescente desprotegida, uma donzela em perigo na torre em chamas. A história e o currículo de Dilma não sancionam essa tese. É mais dura na queda do pretendem fazer crer os que buscam retirá-la do foco e do fogo dos conflitos, jogando Mercadante aos tigres.

Como toda a crise o é em alguma medida, a crise presente é também crise de personalidades: atores de cuja psicologia deriva tensões e desacertos que, com outra têmpera, poderiam ser evitados. A personalidade do governo é a personalidade de Dilma Rousseff, apenas adornada e incentivada por Mercadante e tantos outros que a estimulam por adulação ou por, sinceramente, enxergarem a realidade pelas mesmas lentes que a presidente. Reduzir tudo ao ministro-chefe da Casa Civil não é apenas um erro de avaliação. É uma artimanha.

Afastar o ministro da coordenação política ou devolvê-lo aos limites da Educação, não basta. Ele terá proeminência enquanto Dilma escutar apenas o que quer ouvir.

E Mercadante, por temperamento, não se omitirá em dizer. Demitir um auxiliar fiel será tão doloroso para Dilma quanto pode ser necessário e inevitável, como o preço a pagar pela travessia do rio da presente crise: o boi-de-piranha. Mas, outras cheias e rios virão; os bois também acabam.

Fonte: O Estado de São Paulo (25/03/15)



quarta-feira, 25 de março de 2015

A segunda fundação do PT (Demétrio Magnoli)




(Resumo. Com uma história que vai da opção pela esquerda latino-americana em detrimento do modelo social-democrata europeu à reinvenção do capitalismo de Estado brasileiro, o PT chega a uma encruzilhada. Na crise, o discurso ideológico da agremiação se volta para o passado, invocando fantasmas do udenismo e de 1964).


Mais de dois anos antes da primeira eleição presidencial de FHC, que assinalou a segunda derrota de Lula na tentativa de chegar ao Planalto, a revista "Teoria e Debate", publicada pelo PT, estampou na sua edição 18 (mai./jun./jul.92), um artigo sobre Cuba, do então deputado estadual Marcos Rolim.

Nele, o parlamentar petista fazia uma pergunta crucial: "O que, afinal, significa uma 'posição crítica' frente ao regime de Fidel?". E respondia com um diagnóstico, e outra indagação, carregada de ironia: "Quer dizer [...] que, em que pese não estarmos de acordo com isto ou aquilo, somos a favor daquele regime e queremos colaborar com ele para que corrija certos 'defeitos'. Por este caminho, poder-se-ia começar pelo 'detalhe' da liberdade, quem sabe?".

O "detalhe" da liberdade assombrou o PT, desde seu nascimento. Fundado quase junto com o levante do Solidariedade, em 1980, o PT apoiou os grevistas poloneses mas também enviou dirigentes para "escolas de quadros" no Leste Europeu. Alguns deles, inclusive o metalúrgico Djalma Bom, estavam na sede do Partido Comunista da Alemanha Oriental bem na hora da queda do Muro de Berlim, em novembro de 1989.

Na edição 14 da mesma "Teoria e Debate" (abr./mai./jun.91), Eugênio Bucci escrevia que "o PT só não se tornou o último partido comunista do mundo porque isso não passou pela sua base, instintiva, mobilizada e antiburocrática".

Um dos criadores e primeiro editor da revista, Bucci tinha razão sobre o comunismo, mas exprimia apenas uma utopia possível nas linhas seguintes do texto, que definiam o PT como "um partido social-democrata".

De fato, ao contrário, no intervalo entre a queda do Muro de Berlim e a segunda derrota presidencial de Lula, o PT escolheu não ser um partido social-democrata. A opção negativa nunca foi explícita em termos teóricos ou programáticos, mas provocou um dramático estreitamento intelectual.

Rolim desfiliou-se do partido em 2009 e, no ano seguinte, colaborou na formulação de programas de campanha de Marina Silva. Bucci afastou-se do PT depois de 2007, desferindo ácidas críticas ao partido, que se organizam em torno do "detalhe" da liberdade.

Suas trajetórias ilustram uma debandada silenciosa que envolveu incontáveis quadros militantes ligados às origens do petismo. De certo modo, paradoxalmente, o PT converteu-se no "último partido comunista do mundo" enquanto abraçava-se às elites políticas tradicionais e aos maiores conglomerados empresariais do país.

Opção
A social-democracia era muito mais do que uma possibilidade teórica para o PT.

Pierre Mauroy, ex-primeiro-ministro de François Miterrand, presidiu a Internacional Socialista (IS) entre 1992 e 1999. Pouco antes, os conflitos faccionais no PS francês tinham-no aproximado de Lionel Jospin, que viria a ocupar a chefia de governo em 1997. Jospin era oriundo da mesma corrente trotskista que o franco-argentino Luis Favre, futuro marido de Marta Suplicy e, na época, um quadro petista de algum destaque.

Os dois ex-trotskistas acalentavam a ideia de levar o PT para a IS, cuja representação no Brasil era ocupada pelo PDT de Leonel Brizola. A articulação avançou até um ensaio de oferecimento da vice-presidência da IS a Lula, mas não prosperou: à social-democracia "europeia", o PT preferiu a esquerda latino-americana.

O Foro de São Paulo nasceu em 1990, de um acordo entre Lula e Fidel Castro, como uma rede ampla de partidos de esquerda da América Latina, destinada a oferecer suporte político ao regime cubano.

Fidel operava no cenário desesperador do Período Especial, marcado pela desaparição da URSS, levando a ilha ao racionamento e à fome entre 1989 e 1994. Lula enxergava na rede uma plataforma para a difusão internacional de sua própria influência.

Defendida por José Dirceu, a opção pela aliança com Cuba não era compatível com a adesão à IS, ainda mais naqueles anos em que os partidos social-democratas europeus insistiam em condenar a crescente repressão doméstica promovida pela ditadura castrista.

A tradição nacionalista, estatista e populista da esquerda latino-americana não combinava com as origens do PT. Os sindicalistas do ABC contestavam o imposto sindical, base da CLT varguista, e ergueram a bandeira da liberdade sindical para criar a CUT.

A crítica de esquerda ao capitalismo de Estado brasileiro, formulada durante o "milagre econômico" de Médici e Geisel, revelara que as empresas estatais não funcionavam como ferramentas de desenvolvimento social. Contudo, paralelamente à aliança com Cuba, os dirigentes petistas começaram a recuperar os dogmas da esquerda latino-americana.

Como falar de "socialismo", logo depois da queda do Muro de Berlim? Que resposta oferecer às proclamações triunfantes sobre a globalização?

Fernando Collor e seu sucessor, Itamar Franco, esboçavam um programa de privatizações. O inesperado triunfo de FHC em 1994, obtido por meio do Plano Real numa eleição que parecia destinada a transferir a presidência para Lula, empilhava todos os enigmas ideológicos diante do partido.

A resposta petista foi um curioso recuo intelectual rumo a trincheiras cavadas por outros. Dela, surgiu a polaridade PT-PSDB que fixou a geometria da política brasileiro nas últimas duas décadas.

Chaves
Durante os estertores do governo Collor, o deputado Luiz Gushiken, líder sindical bancário que pertencia ao círculo mais próximo de Lula, publicou um artigo premonitório na edição 19 da "Teoria e Debate" (ago./set./out.92)

O programa de privatização, escreveu, "está destruindo o patrimônio público e fará surgir um Estado quase incapaz de influenciar o desenvolvimento econômico".

Como alternativa, num futuro governo petista, ele sugeria a seleção de setores "estratégicos" da economia nos quais concentrar uma "intervenção intensa e localizada" do Estado, capaz de "induzir o crescimento" dos demais setores.

Os fundos de pensão das estatais não eram mencionados no texto. Mas Gushiken já identificara nesses vastos depósitos de poupança uma fonte de capitais para a "intervenção intensa e localizada" que preconizava.

Tais recursos, privados, são geridos paritariamente pelas empresas estatais e pelos funcionários pensionistas. Os sindicatos dirigidos pelo PT deveriam apoderar-se da representação dos trabalhadores na governança corporativa dos fundos. Quando o partido chegasse ao Planalto, obteria o controle absoluto sobre os recursos, podendo direcioná-los para os investimentos estratégicos de um renovado capitalismo de Estado.

"Para o PT, que pretende governar o Brasil no ano que vem, está afastada a hipótese de participar dessa administração federal", escreveu Dirceu, em fevereiro de 1993, na "Teoria e Debate".

No momento do impeachment de Collor, a direção petista decidiu apostar todas as fichas num triunfo eleitoral que seria facilitado pela crise inflacionária em curso. O Plano Real e a dura derrota de 1994 encerraram uma etapa. Sob o comando de Dirceu, o partido se reinventaria para chegar ao poder.

A segunda fundação do PT realizou-se como uma dupla negação. No plano programático, pela rejeição da crítica original à herança varguista da esquerda brasileira.

No plano organizacional, pela edificação de uma máquina político-partidária profissional, em substituição ao "partido da militância".

O "último partido comunista do mundo" não almejava o socialismo, mas a modernização do capitalismo de Estado local. Seu inimigo seria o PSDB, que encarnava o projeto de ruptura com essa tradição e passaria a ser identificado pelo rótulo do "neoliberalismo".

Sépia
O programa econômico, os métodos de administração, as coalizões políticas e as alianças empresariais implementados, não sem oscilações, nos três sucessivos governos lulopetistas foram gestados naquela segunda fundação do PT. A crise atual marca o esgotamento do modelo neovarguista, que implode em câmera lenta.

De partido da ruptura, o PT transformou-se em partido da ordem e, em seguida, no partido da velha ordem.

No espelho da linguagem, a crise aparece como uma declaração histórica anacrônica. Desde que subiu a rampa do Planalto, Lula trocou a referência de classe (os "trabalhadores") pela vaca sagrada do populismo (os "pobres").

A incorporação das centrais sindicais às estruturas da CLT e a cooptação estatal dos "movimentos sociais" foram acompanhadas pela recuperação das figuras de Vargas e Jango Goulart. Na nova narrativa do lulopetismo, Lula emerge como a realização tardia, mas gloriosa, de promessas redentoras interrompidas pela ação da "elite".

O empreendimento historiográfico equivale à montagem de uma galeria de fotografias em sépia.

Na convocatória para o 5º Congresso Nacional do PT, lançada no início de 2013, a defesa dos governos Lula articulava-se ao redor do argumento de que "as denúncias de corrupção sempre foram usadas pelos conservadores para desestabilizar governos populares, como os de Vargas e Goulart".

Diante das repercussões do escândalo na Petrobras, os dirigentes petistas alardeiam um suposto "udenismo" das oposições, enquanto os intelectuais associados ao partido alertam sobre o fantasma da "repetição de 1964". O partido do futuro não para de falar sobre o passado.

Fonte: Folha de São Paulo/Ilustríssima (23/03/15)

terça-feira, 24 de março de 2015

As manifestações de Março de 2015 são o avesso de Junho de 2013 (Giuseppe Cocco/entrevista)


 

“(Junho de 2013)... ecoa nas manifestações dos dias 13 e 15 de março: apesar dessas manifestações serem o junho de 2013 pelo avesso, elas confirmam sua potência e atualidade”, sinaliza Giuseppe Cocco, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. “No dia 13, como já apontamos, vimos exatamente o contrário da multidão: um rebanho uniformizado e manipulado e até pago por uma operação instrumental. No dia 15, a mobilização de uma verdadeira indignação, espontânea e horizontal, mas atravessada por um viés conservador. Paradoxalmente, é o 15 de março que é mais parecido com junho e ao mesmo tempo os setores mais jovens e criativos não se mobilizaram ainda”, complementa.
Na opinião do entrevistado, os efeitos do posicionamento muito duro do PT com relação a Marina, no primeiro turno das eleições de 2014, ainda são sentidos na política atual, conforme podemos evidenciar na falsa dicotomização que movimentou o espectro político à direita. “O preço imediato (e de longo prazo) dessa falsa polarização organizada em torno do suposto ‘menos pior’ foi o deslocamento de todo o eixo eleitoral para a direita. Alguém pode se perguntar qual seria o interesse do governismo de deslocar o eixo político para a direita. A resposta é contudo muito simples: se trata de uma estratégia cínica e irresponsável de tentar desesperadamente manter sua imagem retórica de esquerda. Parece boçal, mas funciona!”, provoca Cocco.

Frente ao cenário nacional, Cocco admite que o “binarismo do poder pode ter derrotado a multidão de junho, mas nunca vai conseguir cooptá-la”. No entanto, ressalta: “O discurso do ódio, a negação do outro, a procura da homogeneidade são o terreno da identidade, do uno, da exclusão. O contrário da multidão, ou seja, das diferentes singularidades que interagem entre elas se mantendo tais. Junho de 2013 nos mostrou que isso não é uma figura utópica, mas uma realidade potente. Ainda não sabemos como essa potência se realiza em instituições adequadas”.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Após as manifestações de 2013, o senhor dizia temer que militantes de esquerda caíssem na armadilha das “bandeiras”, o que entregaria o movimento para a direita. Foi isso que aconteceu? Existem ecos das manifestações na política de hoje?

Giuseppe Cocco - Vamos começar pela parte final da pergunta: o movimento de junho de 2013 ecoa hoje no Brasil e continuará ecoando, como ainda discorremos sobre a revolução parisiense de junho de 1848 e aquela mundial de 1968. Junho ecoa nas ruas do Paraná, nas manifestações do Movimento Passe Livre - MPL e também dos caminhoneiros, nas greves e no movimento dos garis do Rio de Janeiro, na ocupação do Parque Augusta em São Paulo, nas iniciativas do Bloco de Lutas em Porto Alegre. E também ecoa nas manifestações dos dias 13 e 15 de março: apesar dessas manifestações serem o junho de 2013 pelo avesso, elas confirmam sua potência e atualidade. No dia 13, como já apontamos, vimos exatamente o contrário da multidão: um rebanho uniformizado e manipulado e até pago por uma operação instrumental.

No dia 15, a mobilização de uma verdadeira indignação, espontânea e horizontal, mas atravessada por um viés conservador, ou seja por um viés (que não acho que seja tão majoritário como o governismo tenta dizer) que se preocupa mais com a corrupção como desvio da regra do que como funcionamento mesmo de um sistema desigual. Mas que seja dito de maneira clara: a responsabilidade dessa situação é mesmo do governo e do PT e quanto menos teremos determinação de dizer isso, mais as conseqüências nefastas desse desmando se generalização a toda a esquerda. Será que podemos chamar isso de uma multidão? Eliane Brum encontrou uma reposta dizendo que a “multidão (que poderia ter defendido o PT) ficou em casa”, não foram as ruas nem no dia 13, nem do dia 15 . Mas, paradoxalmente, é o 15 de março que é mais parecido com junho e ao mesmo tempo os setores mais jovens e criativos não se mobilizaram ainda. Mas isso não significa que não o façam. Por exemplo, num belo artigo de Alexandre Mendes, podemos ler que os moradores da favela do Morro dos Cabritos em Copacabana participaram massivamente ao panelaço que houve durante a coletiva dos ministros (em 15-03-2015) . Com efeito, a multidão não é uma manifestação em si, mas o fazer-se de uma subjetividade que se mantém múltipla. Como disse o Bruno Cava, hoje é muito mais difícil que em junho de 2013 de “fazer multidão”. Mas é isso que é preciso fazer.

Apesar dos esforços realizados pela esquerda de poder (o PT e seus aliados) para que isso acontecesse, o movimento de junho não foi à direita. Nesse sentido, acho particularmente acertada a pergunta que lembra as polêmicas ligadas a esse episódio “das bandeiras”. Trata-se do que ocorreu nas grandes manifestações do 20 de junho, em particular no Rio de Janeiro, na Avenida Presidente Vargas, quando os portadores de bandeiras partidárias (vermelhas) foram impedidos de participar (no caso do governismo eram da Central Única dos Trabalhadores - CUT e do PT) ou violentamente expulsos (no caso dos pequenos partidos de oposição que tinham formado um “bloco” dentro da manifestação oceânica: PSTU, PSOL e PCB). Naquele momento escrevi exatamente isso (aliás, publicado em uma revista bastante “governista”): "Depois das agressões às bandeiras de partidos, no último dia 20 de junho, toda a esquerda entrou em uma postura reativa: “se as manifestações não gostam de nossas bandeiras, elas são de direita ou são massa manipulada pela direita¹" e sequer por simbologias abstratas produzidas pelo marketing milionário. A luta é material: por 20 centavos, pelo passe livre, contra as remoções, pelo Amarildo . O problema não é do movimento, mas das bandeiras que não correspondem mais à materialidade das lutas ou, pelo contrário, se tornaram os determinantes da dominação e da exploração. No caso do PT e da CUT elas coincidem com as políticas de megaeventos e remoções de pobres, com as megaobras que devastam as reservas indígenas, com o agronegócio que devasta a floresta e, pois, com o Poder. Pior, a CUT mostrou uma cegueira corporativa incrível diante da loucura dos subsídios bilionários que o governo repassou à indústria multinacional do setor automotivo: foi uma verdadeira “bolsa empresário”! No caso da esquerda de “oposição”, as bandeiras apenas apareceram como tentativas de colocar um “chapéu” em cima de um levante que suas micro-organizações sequer tinham previsto em termos de composição social (de classe) e que devia sua potência à sua radical espontaneidade e horizontalidade. Claro, a mobilização do dia 20 de junho, depois da reviravolta da grande mídia que passou da condenação das manifestações ao apoio, estava cheia de ambiguidades e talvez a agressão foi planejada por algum grupo manipulado. O fato é que, quando aconteceu, o sentimento geral da multidão era de hostilidade a toda tentativa de “representar” um movimento que “valia a pena” exatamente por ser irrepresentável.

Agora, é particularmente interessante lembrar o debate daquele momento porque havia ali algo que ia bem além da questão das bandeiras, uma verdadeira estratégia de mistificação que o “governismo” estava apenas começando a tocar. Peço desculpa de recorrer a mais uma autocitação, mas me parece ainda produtiva. Naquele mesmo artigo eu escrevi também: "A mobilização deve ser, agora, multitudinária, sua polifonia, espontânea e auto-organizada, bem como a ausência de linha, organicidade e liderança; estas são as maiores bandeiras que um militante pode carregar! Insistir em impor a 'Luta das Bandeiras' a um movimento que tem a luta como bandeira foi um erro político até aquele recente 20 de junho. Hoje, pode ser uma grave irresponsabilidade: deixar esse espaço aberto justamente àquela direta, que avança usando apenas o verde e o amarelo". Tudo isso também continua atual, urgente e até dramático: o que até o 20 de junho de 2013 podia parecer um “erro” político era na realidade uma escolha que o PT e o Governo (daqui para frente falarei apenas de “governismo” em geral) tinham feito e iriam aprimorando, aprofundando e potencializando: a determinação firme do “governismo” de desqualificar o movimento de junho e a polêmica das bandeiras foi apenas um pretexto para criar um embate que pudesse funcionar — pela construção de alguma forma de identidade abstrata — como um mecanismo de mistificação política contra o movimento e contra a própria democracia. O episódio das bandeiras foi apenas um primeiro ensaio. O segundo foi o do patriotismo — uma “ideia” fora de época e fora do lugar — da “Copa das Copas” e nos mostrou mais um grau de cinismo governista: ao passo que o “verde e amarelo” era suspeito nas manifestações de junho (e naquelas de março de 2015!), ele se tornava obrigatório para a pátria da chuteira (antecipação vergonhosa da não menos vergonhosa “pátria educadora”): a histórica goleada da seleção pela Alemanha impediu que a operação fosse bem-sucedida, apesar de o movimento contra a copa ter sido bem fraco e submetido a um forte esquema repressivo planejado desde o Planalto (com a colaboração do know how de tudo que existe no mundo em termos de segurança e vigilância). Mas foi nas eleições de outubro de 2014 que a mistificação das “bandeiras” voltou “com tudo” e, depois do “susto” pelo acidente que matou Eduardo Campos, quando Marina parecia arrasadora, foi totalmente — e tristemente — bem-sucedido. O marketing eleitoral do governismo foi implacável, destruindo a própria figura da Marina e não a candidatura, usando as manipulações mais cínicas e as mentiras mais deslavadas (sem que movimento feminista nenhum se comovesse) para impedir uma triangulação que impediria o funcionamento desembestado da demagogia bipolarizadora. É conversando com amigos no exterior que se tem uma dimensão do que foi feito: para quem sequer conhece o Brasil e o fato de que Marina foi companheira do Chico Mendes, militante do Partido Comunista Revolucionário - PCR, fundadora do PT, duas vezes ministra de Lula, ela era uma candidata não apenas de “direita”, mas até de “extrema” direita. Vejam bem, o governismo petista se permite fazer esse tipo de desinformação que deixaria a Pravda stalinista vermelha de vergonha pelo nível de boçalidade e o PT tem hoje um governador (da Bahia) que não apenas manda sua PM matar a esmo, mas também comemora a matança e ainda debocha do governador (tucano!) de São Paulo por não ter a mesma determinação assassina.

Com Marina eliminada, a máquina da mistificação pôde enfim fazer funcionar a pleno regime a “binarização” do debate e chegou ao seu maior sucesso no segundo turno, criando uma verdadeira mobilização social em torno do... nada: uma simbologia de “esquerda” totalmente vazia e logo preenchida por um governo de direita. O preço imediato (e de longo prazo) dessa falsa polarização organizada em torno do suposto “menos pior” foi o deslocamento de todo o eixo eleitoral para a direita. Alguém pode se perguntar qual seria o interesse do governismo de deslocar o eixo político para a direita. A resposta é, contudo, muito simples: trata-se de uma estratégia cínica e irresponsável de tentar desesperadamente manter sua imagem retórica de esquerda. Parece boçal, mas funciona! Ninguém hoje se pergunta mais onde está o tal “legado da Copa”! E no Rio de Janeiro, no meio de cortes e recortes de orçamento, está se preparando mais uma obra no Maracanã (a terceira em menos de 10 anos).

Como sabíamos, tratava-se de uma grosseira mistificação e sequer precisamos esperar muito tempo para saber que Dilma e o PT iriam fazer exatamente aquilo que acusavam o Aécio de querer fazer. O menos pior apareceu imediatamente como sendo o mesmo pior. Apesar da forte presença de setores de classe média (como em junho), a manifestação do 15 — sobretudo em São Paulo — vai muito além disso. E o governismo, acuado e chantageado pelos compromissos que agora desabam na cabeça dele, insiste em transformar a indignação em um desenho golpista e direitista, ajudando a cavar seu túmulo, mas querendo colocar toda a esquerda dentro dele. O vídeo que o Viomundo² publicou mostra que não é bem assim. Dessa vez, o governismo conseguiu fazer valer a chantagem. No 20 de junho de 2013, estávamos todos lá, fazendo multidão! No dia 15, quando valia a pena, deixamos a indignação popular generalizada (que apenas está começando) a um viés liberal.

IHU On-Line - As manifestações daquele período ocorreram em ressonância com outras em nível mundial (Espanha, Grécia, Turquia, Egito, etc.) que tiveram resultados bastante diversos. Como as manifestações do Brasil dialogam com estas experiências internacionais?

Giuseppe Cocco - O Brasil e as manifestações no Brasil dialogaram e continuam dialogando, de várias maneiras, com as primaveras árabes e seus desdobramentos: os positivos e os negativos se inspiraram do levante de Istambul e receberam as balas de chumbo (no dia 24 de junho de 2013) na Maré da repressão egípcia.

Por um lado, cabe lembrar como “junho de 2013” foi um momento de um ciclo global. Pelo outro, as lutas e o movimento no Brasil são atravessados pela diversidade contrastada dos “resultados” dos diferentes levantes.

Contudo, eu acho que não se deve falar em “resultados”, mas em processos e apreender os diferentes levantes do ponto de vista dos níveis de abertura ou fechamento dos processos constituinte e de transformação que eles determinaram (e os determinaram). O “processo” foi totalmente fechado no Egito e parece totalmente aberto na Espanha. No Brasil, estamos numa fase onde a brecha democrática parece ter sido fechada definitivamente. Mas ainda é cedo para tirar uma conclusão definitiva, pois ela foi fechada pela irresponsabilidade do governismo e até pelas incríveis posições governistas da esquerda de oposição.

Lembremos, o levante brasileiro de junho de 2013 ecoou sobretudo o levante de Istambul, da mesma maneira que ele reverberou, quando ainda estava vivo com ocupações de Assembleias e Câmaras (no Rio de Janeiro com manifestações diárias), em Kiev na Ucrânia, com a revolução da praça Maidan . Hoje temos os tanques na Maré e a guerra que a Rússia trava nas regiões fronteiriças da Ucrânia. Aliás, é muito curioso (e emblemático) ver como a revolução de Kiev acaba sendo objeto de uma censura: uma censura ativa por parte de setores da esquerda (muitos deles “governistas”) e algo ainda pior, uma autocensura, todo o mundo ficando constrangido, sem saber direito se é bom falar da Ucrânia e preferindo não mencionar esse belíssimo momento democrático que foi a multidão de Maidan. Se você nasce na Ucrânia, não pode lutar por liberdade, pois assim você seria instrumento do imperialismo.

A cultura e a identidade de “esquerda” continuam mantendo um viés stalinista, que, aliás, nos mostra muito bem o que escondia o episódio das bandeiras: se você critica o PT e o governismo, você é com certeza um instrumento do “inimigo”, dos banqueiros, do “imperialismo”... pouco importa que o PT e o governismo estejam faz 13 anos governando com a direita e pela direita, ou seja, com os banqueiros, a demagogia funciona. É exatamente o stalinismo assim como nos contou o grande escritor Vasily Grossman, o maior correspondente de guerra do jornal Estrela Vermelha: ao mesmo tempo que Molotov (pela União das Repúblicas Socialistas Soviéticas URSS de Stalin) negociava um acordo com Ribbentrop (pela Alemanha de Hitler), milhares de comunistas eram assassinados nos expurgos, tendo que confessar serem agentes do inimigo, “quintas colunas”. Por isso, o governismo chegou à exaltação na desqualificação de Maidan, os ucranianos não tem o direito de lutar, por definição eles são de direita e, sendo supostamente antirrussos, são instrumento do “imperialismo” norte-americano. Boaventura Santos, num artigo de comemoração da vitória de Dilma nas eleições, chegou a escrever algo inquietante: defendeu que “o Brasil é hoje o exemplo internacionalmente mais importante e consolidado da possibilidade de regular o capitalismo para garantir um mínimo de justiça social” e isso na medida que, juntamente com China, Índia, e Rússia (!), ele promoveria não apenas um “capitalismo social” mas também “uma nova guerra fria” .

Em seguida, podemos dizer que encontramos no Brasil de hoje vários dos desdobramentos (contraditórios) dos diferentes levantes. Em primeiro lugar, encontramos o fechamento da brecha democrática e a guerra como terreno de restauração do poder: isso que acontece entre a Síria e a Líbia, com o golpe no Egito e a intervenção russa na Ucrânia, mas também com a militarização das favelas do Haiti e do Brasil e a banalização pela esquerda (vide a atuação do PT no governo da Bahia) dos genocídios dos jovens negros e pobres. Estamos diante de um novo tipo de guerra, que se parece com uma guerra civil generalizada dentro da crise das bases biopolíticas da democracia. O que torna esses levantes ainda mais fundamentais para construir a democracia. Em segundo lugar, encontramos a crise em níveis gregos ou venezuelanos, aliás, uma tentação irresponsável do governismo de levar o enfrentamento nesse patamar apenas para poder negociar sua “salvação”. Em terceiro lugar, os movimentos no Brasil estão num grande impasse e olhando com muita atenção para como na Grécia e na Espanha estão nascendo novas experiências no terreno institucional e de novas formas de representação.

IHU On-Line - Como os modelos de Esquerda emergente — Syriza (Grécia) ou Podemos (Espanha) — podem contribuir para a construção de modelos políticos alternativos para o Brasil frente a atual conjuntura? 

Giuseppe Cocco -Syriza e Podemos estão mostrando que os levantes não são efêmeros e que a crítica da representação oriunda do período industrial e moderno não significa renuncia à representação tout court. Pelo contrário, na esteira dessas lutas multiplicam-se as experimentações de todos os tipos, inclusive no terreno institucional e com o surgimento de novas propostas e/ou de novos partidos.

Na Grécia, o Syriza mostra que é possível, sim, um programa reformista de esquerda ganhar as eleições e tentar aplicá-lo. Seu sucesso eleitoral, que tornou reduziu o histórico PASOK uma legenda secundária, é uma pedrada para os partidos de esquerda que se escondem atrás dos constrangimentos macroeconômicos e globais. O PT já é o PASOK, mas ganhou as eleições e o impasse atual é mesmo a consequência disso.

Na Espanha, o Podemos ainda não ganhou, mas já é um terremoto político e eleitoral e mostra que o 15M é base de uma inovação duradoura e radical. Trata-se de mais um desmentido sensacional do discurso que atribuía aos movimentos a volta da direita ao poder (discurso que o governismo fez sistematicamente no momento da campanha eleitoral de 2014).

Então, Syriza e Podemos já são para o Brasil um balão de oxigênio para pensar e fazer política numa perspectiva democrática, para além dos impasses do movimento e do desmoronamento vergonhoso do sistema dos partidos. Acredito que não se trata de modelos, ainda menos de expressões linearmente positivas e puras de uma nova horizontalidade. Por isso, precisamos mapear com cuidado essas experiências, apreender a potência e os limites para fazer outra coisa! Talvez, a força deles é mesmo de não serem modelos. Com certeza, Syriza e Podemos contribuem para acelerar a urgente renovação das forças políticas no Brasil e isso por uma série de razões: por serem uma resposta à política de austeridade imposta pelo Banco Central Europeu (o Syriza), por ter conseguido afirmar a possibilidade de ganhar (Podemos) passando por fora das formas atuais de organização partidária. Isso já tem um impacto no Brasil e mundo afora.

Então, mais do que modelos, trata-se de expressões da vitalidade das lutas, e os limites dessas expressões estão e estarão na capacidade que terão ou não de ser um momento de abertura dessa vitalidade e não de seu fechamento.

Desde já temos condições de indicar pelo menos alguns dos desafios pelos quais tais experiências passam e passarão:

- Syriza depende do nível de apoio que encontrará nos movimentos europeus (no dia 18 de março houve uma mobilização europeia para protestar contra o BCE, em Frankfurt) e do próprio sucesso do Podemos na Espanha; sem isso, dificilmente vai conseguir manter a prova de força com a Troika. Se o movimento europeu não conseguir reforçar a brecha aberta pela vitória do Syriza, podemos prever o pior em dois cenários bastante inquietantes: a homologação do Syriza dentro de acordos impostos que fariam de sua experiência mais um caso da incapacidade da esquerda partidária de lutar por uma saída do neoliberalismo (isto é, o Syriza viraria mais um PASOK); uma virada antieuropeísta na tentativa de balancear as imposições da UE por meio de alianças com Rússia e China. Nos dois casos, a Grécia se tornaria o teatro da ascensão do fascismo neo-soberanista, aquele que gosta do fascismo de Putin, que cultiva o ódio pelos imigrantes na França (Marine Le Pen) e na Itália (Matteo Salvini ).

- Um segundo desafio, que diz respeito sobretudo ao Podemos que se constituiu como uma nova força, é de conseguir articular de maneira virtuosa duas dimensões de sua constituição que são potencialmente contraditórias: por um lado, trata-se da dimensão midiática da figura do Pablo Iglesias, que desempenhou e desempenha um papel fundamental na proposta do Podemos (e que faltou à proposta do Partido X articulada no âmbito do DRY ); pelo outro, a potência social das redes e das ruas oriundas do 15M ao longo desses anos. Juntando-se a Iñigo Errejón e Monedero para fundar o Podemos, Pablo Iglesias conseguiu uma proeza: propor ao 15M uma perspectiva majoritária ocupando ao mesmo tempo a “terra de ninguém” liberada pela crise vertical do sistema representativo oriundo do período industrial. O Podemos ocupou o vazio que em outros países é ocupado por experiências bem mais ambíguas: na Itália foi a Lega Nord e hoje é o 5 Stelle ; na França é o inquietante Front National de Marine Le Pen (filha do Jean Marie Le Pen ). O grande fato do Podemos é que por uma vez são ativistas oriundo da esquerda horizontal, crítica da forma partido (conheço Pablo Iglesias que era da Universidad Nómada espanhola, o conheci em particular numa Universidad del Verano que organizamos com o saudoso professor Joaquin Herrera Flores, da UPO de Sevilla, em Carmona, em 2007) apreenderam o kayros, ou seja, souberam propor uma linguagem adequada no momento oportuno: oferecer uma resposta política radical, mas ao mesmo tempo com a ambição de poder ganhar e, para isso, se libertando das amarras ideológicas do discurso de “esquerda” em todas suas variantes.

- O terceiro desafio é a existência de certo nível de autonomia do político bem representado pelo papel central e vertical de Pablo Iglesias e das duas outras figuras da direção, Inigo Errejon e Juan Carlos Monedero. O sucesso eleitoral do Podemos contém essa ambiguidade. Por um lado, a “autonomia” do político dessa “cúpula” foi um acelerador na definição discursiva e no processo decisório que está na base da própria proposta. Pelo outro se apresenta como um perigo de que o Podemos não consiga realmente inovar na forma de organização e acabe sendo apenas mais um “novo” partido velho.

- O quarto desafio é talvez o mais paradoxal e diz respeito ao referencial que inspirou Podemos, a saber, a experiência dos “novos” governos sul-americanos. Bruno Cava já escreveu um artigo magistral sobre as alternativas teóricas e políticas entre a abordagem que o Podemos privilegia (aquela populista inspirada em Ernesto Laclau) e a abordagem que — até hoje pelo menos — me pareceu mais produtiva, aquela de Antonio Negri e Michael Hardt em termos de Multidão (Rio de Janeiro: Record, 2014). As trajetórias do chavismo na Venezuela, aquela neoperonista do Kirchnerismo na Argentina, bem como aquela boliviana de Evo e aquela “lulista” do Brasil são fontes preciosas de inspiração do Podemos e de seus líderes que trabalharam diretamente com Chavez e Evo Morales. Creio que aqui entenderam como se faz para ganhar as eleições e como isso implica em mudanças radicais do regime discursivo oriundo da tradição ideológica da esquerda. Aqui também aprenderam a centralidade do “Estado” do ponto de vista de qualquer proposta de transformação social. Pois bem, aqui também vão ter que urgentemente entender, em primeiro lugar, que tudo isso (o ciclo dos governos progressistas) acabou e, em segundo lugar, que essas experiências que chamávamos de “progressistas” na Venezuela, na Argentina e agora também no Brasil fracassaram. Trata-se de um duplo fracasso: por um lado, da tentativa neodesenvolvimentista que se resolveu num total fiasco econômico e social; pelo outro, da relação com o Estado: ao invés dos governos progressistas se manterem como brechas para que os movimentos estejam dentro e contra o Estado numa dinâmica de radicalização democrática, eles rumaram — em graus diferentes — para um tipo de governabilidade autoritária que faz do controle do Estado seu horizonte fundamental e total. Que Maduro — graças ao apoio das forças armadas — por enquanto controle o Estado (e reprima a sociedade) e o governismo petista seja engolido pelo Estado (entre o Lava Jato e a guerra em que se transformou a coalizão com o PMDB) não muda muita coisa do ponto de vista da democracia.


IHU On-Line - Em 2013, a população saiu às ruas contra um modelo político. Em 2014 foi eleito o Congresso mais conservador desde 1964. Como entender esta contraditória relação?

Giuseppe Cocco - Acho que já respondi acima. Esse resultado é fruto da crise do lulismo, da qual junho foi um sintoma e um determinante. A derrota de junho (pelo governismo) abriu o caminho para que o mal-estar fosse procurar outras formas de representação. Há mais duas reflexões que cabe fazer: para derrotar junho, o governismo lançou mão de uma violenta campanha destinada a dizer que a sociedade é conservadora, que as redes sociais espalham o ódio e que esse ódio é “um ódio pelo PT”. Foi um sem fim de pesquisas, artigos e colunas lamentando “oh quanto o Brasil é conservador” (aliás é um fluxo que continua). Oras, essa campanha tem algo estarrecedor. Num plano geral, é evidente que o Brasil tem o “conservadorismo que merece”! Como poderia ser diferente diante da violência da desigualdade e da guerra civil endêmica que o caracteriza? O que interessa não é a choradeira sobre o óbvio, mas o que está sendo feito e o que estamos fazendo para mudar isso. Mais uma vez, o governismo consegue se fazer passar de vítima como se os 13 anos de governo do PT não tivessem nenhum papel nesse impasse! Como se a retórica da nova classe média tivesse sido imposta desde fora do governo, como se a total ausência de uma política de segurança pública (ou seja, a continuidade do extermínio dos jovens negros e pobres nas favelas) e de qualquer projeto de desconstrução da guerra às drogas (pela legalização e regulamentação) não fosse de responsabilidade do lulismo; como se a política de megaobras e megaeventos sem reforma agrária e de desrespeito dos direitos indígenas não fosse o resultado do colonialismo interno, para não falar enfim do escândalo dos escândalos: a total ausência de um debate institucional sobre a legalização do aborto, cuja ilegalidade tolhe a liberdade e a vida das mulheres, sobretudo das mais pobres.

Há uma segunda dimensão, mais histórica: podemos pensar o período seguinte à revolução de junho de 1848 ou aquele que veio depois do maio de 1968 na França. As vitórias eleitorais da restauração ou dos conservadores são mais um sinal de esgotamento do sistema do que de sua saúde.

IHU On-Line - Alguns pensadores vislumbram nas lutas autônomas, que têm eclodido desde 2013, uma alternativa à polarização política. O que pode emergir destes movimentos?

Giuseppe Cocco - Desses movimentos podem surgir outros movimentos, como está acontecendo com os Garis no Rio de Janeiro, com as diferentes assembleias que estão discutindo Brasil afora os aumentos das tarifas dos transportes, os megaeventos, as reservas indígenas, etc. Não sei quando, mas no Brasil também estão postas as condições para uma nova institucionalidade e até para uma nova forma-partido, como aquela que o Podemos está experimentando na Espanha.

IHU On-Line - Os movimentos sociais do século XXI tendem a recusar lideranças, justamente porque são organizações políticas da Multidão na metrópole. Diante deste cenário, como fazer com que tais movimentos integrem a política nacional? Qual a importância da escolha de um líder nesse modelo?

Giuseppe Cocco - Do ponto de vista do fazer-se da multidão metropolitana, me parece que o terreno de experimentação é mesmo aquele de uma democracia produtiva. Do mesmo jeito que as metrópoles precisam do trabalho de uma multidão de singularidades entre as redes e as ruas, a multidão metropolitana é capaz de autonomia. Suas formas de organização são e deverão ser cada vez mais territoriais e categoriais, organizando círculos de cidadania e até bolsas do trabalho metropolitano. As metrópoles hoje são gigantescas jazidas de produção de valor: de um outro tipo de valor. Por exemplo, uma metrópole sem carros, cheia de trens, bikes e também cheia de árvores de frutos e hortas! Auto-organização e autoprodução são hoje um terreno possível e imediato.

Mas isso vai precisar também de formas de representação e com relação a isso acho que respondi um pouco quando discuti o caso do Podemos, acima. Só insistiria: hoje, a forma de organização da produção e da vida é cada vez mais colaborativa e horizontal. Toda forma de verticalização tende a ser improdutiva e os atalhos neodesenvolvimentistas da América do Sul foram um fiasco exatamente por serem menos colaborativos, apesar das tentativas de distribuição de renda que podem ter acontecido. Hoje é possível uma tecnopolítica que evite a verticalização sem ao mesmo tempo ficar paralisadas num horizontalismo das assembleias, incapaz de decisão. O líder é sempre uma tentação, porque acelera o processo, mas ele sempre carrega uma enorme carga de autonomia do político e, pois, de uma verticalização antidemocrática e improdutiva. Chega um dia que ele apresenta a conta, e é sempre salgada (estamos vendo aquela do lulismo, sendo que o Maduro está apresentando aquela do Chávez).

IHU On-Line - Dentro da ideia da Multidão como superar um comportamento de ódio mútuo gerado a partir da polarização política, típica da sociedade de massa? Quais os riscos do projeto político da Multidão deixar emergir racionalidades/ideologias que possam representar riscos ao avanço democrático e do bem-estar comum das sociedades?

Giuseppe Cocco - O conceito de “multidão” não é aquele de um projeto político, mas a definição ontológica da nova condição do trabalho e da luta (da política) no capitalismo contemporâneo. Política e economia nunca se separam no fazer-se da multidão como nova realidade ontológica do social.

A luta hoje não passa mais por nenhuma ambiguidade em termos de construção do “uno”, de uma identidade exclusiva, seja aquela de povo ou de classe. Dentro e contra a nova condição, a proposta é de apostar numa política da diferença, de um “uno” (uma colaboração) que não passa por nenhuma redução e — continuando a ser múltiplo — não se deixa capturar pelo Estado e sequer pelo Capital. O binarismo do poder pode ter derrotado a multidão de junho, mas nunca vai conseguir cooptá-la. O discurso do ódio, a negação do outro, a procura da homogeneidade são o terreno da identidade, do uno, da exclusão. O contrário da multidão, ou seja, das diferentes singularidades que interagem entre elas se mantendo tais. Junho de 2013 nos mostrou que isso não é uma figura utópica, mas uma realidade potente. Ainda não sabemos como essa potência se realiza em instituições adequadas.

IHU On-Line - De que maneira as políticas públicas atuais estão relacionadas a uma espécie de capitalismo cognitivo de onde a construção da cidadania está diretamente relacionada à ideia de consumo? Até que ponto a financeirização das políticas públicas não acaba convertendo a sociedade a uma economia da exclusão?

Giuseppe Cocco - O capitalismo nunca organizou a exclusão a não ser para melhor incluir, ou seja, explorar. Só que o faz segundo modalidades diferentes ao longo da história, em função da resistência que ele encontra, por um lado, por parte das populações que ainda não foram incorporadas (incluídas) e, pelo outro, do próprio trabalho assalariado. É também preciso ver que o capitalismo se caracteriza pelas crises e é preciso fazer a distinção entre os mecanismos de inclusão e exclusão estruturais de um determinado regime de acumulação com relação ao que determina o ciclo de uma crise. Hoje em dia estamos num capitalismo que se organiza pela inclusão dos excluídos como tais e ao mesmo tempo esse capitalismo está em crise. O que isso significa? Que o capitalismo cognitivo se caracteriza por mobilizar o trabalho por fora da relação salarial, diretamente nas redes de reprodução e que os transportes não são mais apenas esteiras de circulação, mas linhas de produção. Da mesma maneira o consumo se torna produtivo. Assim o trabalhador empregado se torna cada vez mais um empregável que trabalha: com um estatuto precário, numa crescente fragmentação: os pobres passam a ser explorados como pobres e a relação de crédito e débito substitui e qualifica aquela de assalariamento, fazendo das finanças o modo de governança do capitalismo cognitivo. Junho nos mostrou que ao mesmo tempo as lutas passam a acontecer nas metrópoles: nos transportes ou nos rolezinhos, com os professores e os garis. Estamos em uma sociedade de inclusão, mas de uma inclusão por modulação da precariedade. Ao mesmo tempo, esse capitalismo está numa crise estrutural desde 2007 e 2008 no nível global com relação à qual não se vislumbram formas de regulação. As tentativas no eixo Syriza-Podemos poderão ser inovadoras desse ponto de vista.

Enfim, queria dizer que o desafio que temos é romper a chantagem governista e voltar a fazer multidão dentro da justa indignação, reabrindo a brecha democrática. Não há outras escolhas e não sei quando e como o evento dessa retomada vai acontecer. Embora seja muito difícil, há vários sinais que precisamos lembrar: o panelaço no Morro dos Cabritos em Copacabana, no dia 15; no mesmo dia, a manifestação em memória de Claudia, a mulher negra assassinada e arrastada faz um ano pela PM do Rio, a greve autônoma dos garis que se articulam também com os “círculos de cidadania”.

Assim, concluiria lembrando o que escrevi em junho de 2013 e que continua atual: "A questão é inventar uma nova antropofagia política, um novo 'pau-Brasil', como Oswald de Andrade soube fazer nos anos 1920". Precisamos, pois, ir para a terceira margem do rio.

Notas do Entrevistado:

1.- Giuseppe Cocco, “Ser de esquerda é ter a coragem de mergulhar no levante da multidão”, Revista Brasileiros,http://brasileiros.com.br/2013/06/ser-de-esquerda-e-ter-a-coragem-de-mergulhar-no-levante-da-multidao

2.- Para assistir o vídeo acesse http://www.viomundo.com.br/politica/caio-castor-protesto-contra-dilma-na-paulista-foi-muito-alem-da-classe-media.html

(*)  Giuseppe Cocco é graduado em Ciência Política pela Université de Paris VIII e pela Università degli Studi di Padova. É mestre em Ciência, Tecnologia e Sociedade pelo Conservatoire National des Arts et Métiers e em História Social pela Université de Paris I (Panthéon-Sorbonne). É doutor em História Social pela Université de Paris I (Panthéon-Sorbonne). Atualmente é professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e editor das revistas Global Brasil, Lugar Comum e Multitudes. O último livro publicado é KorpoBraz: por uma Política dos Corpos (Mauad, 2014).

Por Patricia Fachin e Ricardo Machado

segunda-feira, 23 de março de 2015

Sujeito multidão (José de Souza Martins)





Fervilham as interpretações das manifestações da sexta-feira 13 e, sobretudo, da do dia 15, domingo. A primeira, manifestação de corporações sindicais de filiação ideológica e partidária explícita. A segunda, surpreendentemente, com certa característica de manifestação política de famílias, um fato novo na quadra histórica iniciada com a redemocratização do País. Para o estudioso do comportamento coletivo, a diferença e o conflito político e ideológico entre as duas manifestações não está na disputa em relação à legitimidade do mandato da atual presidente da República, como temeram os próprios membros do governo. O conflito se expressou na guerra de conceitos.

Sobretudo, do método de elaboração dos conceitos que procuram dar sentido ao embate entre os que estão do lado do governo e os que estão do “outro lado”. As partes confrontando-se na curiosa tentativa de adivinhar quem eram os manifestantes.

A multidão não precisa ter a identidade adivinhada. Ela não é o eleitor da última eleição, não é o branco da desqualificação proposta pela facção do governo, descabida numa sociedade que historicamente se reconhece como mestiça de múltiplas mestiçagens. A multidão é a multidão, identidade temporária e provisória que esgota sua significação e sua função na fração de tempo em que se manifesta nas ruas e no modo como se expressa. É um sujeito que se dissolve no fim da festa.

Pela frequência e pelas peculiaridades de suas demandas, vai ficando claro que a multidão é novo sujeito da sociedade brasileira. Novo sujeito do processo político em conflito com os velhos sujeitos, os da política como ação de estereótipos, os do cidadão aprisionado na camisa de força de conceitos rígidos forjados ainda na cultura da luta de classes. Mas multidão não é classe nem é raça. A multidão desconstrói o regime político dualista das facções antagônicas que a tendência antirrepublicana inaugurada em 2003 impôs ao País como ideologia dos pobres contra os ricos, dos negros contra os brancos, das elites contra o povo. São meias verdades de um pensamento partidário fundado num senso comum pseudossociológico que explica e justifica o que convém e descarta o que não convém.

As multidões que se manifestaram entre nós nos últimos tempos nem sequer são uma única e mesma multidão, embora se possa encontrar nelas o substrato unificador do descontentamento e de uma consciência social de impaciência com os abusos do poder, o mais motivador dos quais é o da corrupção. Mas também o da mentira. Cobranças dessas manifestações recentes, evidenciadas em cartazes rabiscados sobre a mesa da cozinha, cobram o que foi prometido e questionam o que foi omitido como simples técnica para enganar o eleitorado e obter o poder. Nesse sentido, as multidões foram às ruas para questionar não apenas a corrupção e a mentira, mas para questionar, também, a ambição de poder pelo poder, o propósito do poder sem a contrapartida do dever. Em suma, a multidão foi às ruas para questionar pacificamente, republicanamente, a traição aos princípios e valores da República e do republicanismo. Curiosamente, a demanda das multidões do dia 15 foi uma demanda claramente parlamentarista contra a decadente República presidencialista e hereditária.

A premissa de um dos ministros que impugnaram as manifestações populares logo após seu encerramento é a de que quem vota no partido do governo tem que ter com ele uma fidelidade de membro do próprio governo, embora nele não esteja, mais a de cúmplice que a de cidadão.

Concepção baseada no pressuposto de que a sociedade seria uma organização de duas bandas em que as pessoas são prisioneiras de uma banda ou de outra, e a própria sociedade dominada por um movimento pendular que reitera o mesmo. Essa é uma concepção pré-moderna e puramente teatral da realidade social e política. Por trás dessas ideias está a doutrina da luta de classes, na sua versão pré-marxista, ainda distante da interpretação propriamente dialética e sociológica das duas últimas décadas do século 19.

Os malabarismos explicativos para as manifestações de rua destes dias dizem muito mais respeito à inatualidade de um pensamento supostamente de esquerda que se extraviou nos descaminhos da vulgarização interpretativa. E, também, na desatenção ao fato de que a sociedade contemporânea e pós-utópica se tornou uma sociedade complexa e fragmentária. Os sujeitos concebidos anacronicamente como robôs da totalidade pétrea do dualismo interpretativo são mera e retrógrada ficção. Ninguém é o todo da classe social a que supostamente pertence porque, no fim das contas, ninguém pertence a nada. A classe só é substantiva em momentos muito singulares da história social e política. Esta já não é, propriamente, uma sociedade de sujeitos, mas de sujeitos alienados que vivem o tempo todo as incertezas da condição de objeto. Quando a sociedade entra em crise, como a nossa, agora, a própria crise os desperta para a lucidez desalienadora que se viu nas ruas do País.

(José de Souza Martins é sociólogo, professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP e autor, entre outros, De linchamentos - a justiça popular no Brasil (Contexto))

Fonte: O Estado de São Paulo/Aliás (22/03/15)