sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

300 picaretas e uma pá de cal (Fernando Gabeira)







Num dos meus primeiro mandatos de deputado federal defendi na tribuna da Câmara os Paralamas do Sucesso, acusados de caluniar o Congresso Nacional com a música Luís Inácio (300 picaretas). Os primeiros versos diziam: “Luís Inácio falou, Luís Inácio avisou/ são trezentos picaretas com anel de doutor”.
Defendi-os em nome da liberdade de expressão. Não concordava inteiramente com Lula. Talvez fossem 312 ou 417. Reconheço que 300 é um número redondo, mais fácil de inserir nos versos de uma canção popular. Além do mais, nem todos têm anel de doutor. Mas isso são detalhes. O mais importante é registrar que estávamos na véspera da chegada do PT ao governo federal, início da era do “nunca antes neste país”. E aonde chegamos, agora, uma década depois?
Renan Calheiros deve assumir a presidência do Senado, Henrique Eduardo Alves, a da Câmara e o deputado Eduardo Cunha, a liderança do PMDB. Caso se concretizem, esses eventos representam um marco na História do Congresso. Significa que, para muitas pessoas informadas, o Congresso deixa de existir. É o fim da picada…
Conheço os passos dessa estrada porque transitei nela 16 anos. O mensalão significa o ato inaugural, a escolha do tipo e da natureza de alianças políticas do novo governo. O mensalão significa a compra de votos dos partidos, uma forma de reduzir o Congresso a um balcão de negócios. Em seguida vieram as medidas provisórias (MPs). Governar com elas é roubar do Congresso tempo e energia para seus projetos. A liberação das emendas parlamentares era a principal compensação pelo espaço perdido.
Mas deputados e senadores não cedem o espaço porque são bonzinhos ou temem o governo. As MPs são uma forma simplificada de o governo realizar seu objetivo. Os parlamentares tomaram carona nesse veículo autoritário. E inserem as propostas mais estapafúrdias no texto das MPs. Com isso querem aprovar suas ideias sem o caminho democrático que passa por debates em comissão, audiências públicas, etc.
Na Câmara essas inserções oportunistas são chamadas de jabuti. O nome vem da frase “jabuti não sobe em árvore, alguém o coloca lá”. O nome jabuti pressupõe que há interesses econômicos diretos por trás de cada uma dessas emendas.
A perda de espaço para o governo não é o problema, desde que todos os negócios continuem fluindo, das MPs às emendas ao Orçamento. O espaço não interessa, o que interessa é o dinheiro. Espaço por espaço, o Congresso já abriu uma grande avenida para o Supremo Tribunal Federal julgar casos polêmicos, como aborto e união gay.
Os negócios, como sempre, são o centro de tudo. Negócios, trambiques, maracutaias e, como diziam Os Paralamas em 2003, “é lobby, é conchavo, é propina e jeton”. Uma década depois, vendo o Congresso idêntico à sua caricatura, pergunto quando é que nos vamos dar conta dessa perda, desse membro amputado de nossa anatomia democrática.
A saída da minoria – chamada, com uma ponta de razão, de Exército Brancaleone – foi pressionar por dentro e estabelecer uma tensão entre ala e a opinião pública. Na definição do voto aberto para cassar deputados, vencemos o primeiro turno porque a imprensa e eleitores estavam de olho. Vitória esmagadora, contra apenas três abstenções. Agora até esse caminho está bloqueado. Todos os dispositivos internos foram reforçados e passaram a impedir tais votações. Com a cumplicidade do PT, os piores elementos foram ascendendo aos postos estratégicos e agora o esquema chega ao auge, com a escolha de Calheiros e Alves.
De um lado, interessa-me avaliar como será o futuro do País sem um Congresso que possa realmente ser chamado por esse nome. De outro lado, um olho na saída. Não sei se repetiria hoje a campanha contra Renan, os cartazes com chapéu de cangaceiro e a frase: “Se entrega, Corisco”. Nem se gostaria de ver de novo aqueles bois se deslocando pelos campos alagoanos para as terras de Renan, para comprovar que era dono de muitas cabeças de gado. O ideal, hoje, seria poupar os bois dessa nova viagem inútil. Passar o vídeo, criar uma animação, substituir toneladas de carne de boi por milhões de pixels.
Henrique Alves destinou dinheiro a uma empresa fantasma de um assessor dele. No lugar deserto onde a empresa funcionava havia apenas um bode, chamado Galeguinho. O bode foi dispensado depois de sua estreia. Os bois mereciam o mesmo. “Parabéns, coronéis, vocês venceram”, diz a letra de Luís Inácio. Deixaram-nos monitorando bois de helicóptero e pedindo ao bode que nos levasse ao gerente da empresa.
Luiz Inácio falou, Luiz Inácio avisou. Mas foi o primeiro a passar para o lado deles e a contribuir com algumas novas espécies para a fauna já diversa que encontramos em 2003.
A vitória dos cavaleiros do apocalipse recoloca a urgência de salvar o Congresso dele mesmo. A maneira de potencializar o trabalho da minúscula oposição é a maior transparência possível e uma ajuda da opinião pública. A partir dessa vitória, Calheiros, Alves e seus eleitores no Parlamento dizem apenas à sociedade: somos assim, e daí? Depois do descanso merecido, o bode que é o porteiro da empresa favorecida por Alves deveria ser colocado na porta do Congresso.
É impensável que 300, 312 ou 417 – não importa o número exato – picaretas enfrentem o Brasil sem uma represália dura. O espírito do “eles lá, nós aqui”, de distância enojada, no fundo, é bom para eles, que querem total autonomia para seus negócios. Será preciso mostrar que toda essa farsa é patrocinada pelo dinheiro público. E que sua performance será amplamente divulgada agora e no período eleitoral. O instinto de sobrevivência da instituição não existe. Mas o do político é muito grande. É preciso que ele sinta o desgaste pessoal produzido por suas escolhas.
Muitas pessoas vão trabalhar nisso, cada uma no seu posto, às vezes em manifestações. A eleição direta para presidente foi uma conquista. A perda do Congresso para o ramo dos secos e molhados é uma dolorosa ferida em nossa jovem democracia.
Nós demos um boi para não entrar nessa luta. Daremos um bode para não sair dela.
Artigo publicado no Estado de São Paulo em 01/02/2013

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