As mudanças de época não chegam ao som de trombetas, avançam nas sombras em processos silenciosos e, com frequência, sem que os atores envolvidos tenham consciência do papel que desempenham para o seu advento, nem sempre desejado por eles. As seitas protestantes, tal como na demonstração clássica de Weber, ao adotarem uma ética de trabalho e um sistema de vida dominado pelo cálculo e pela poupança, estavam movidas pela intenção de render glória a Deus, alheias aos efeitos que seu movimento teria para a emergência do capitalismo moderno.
As reformas neoliberais, nascidas, a partir dos anos 1970, como uma resposta, no diagnóstico da época, à crise de acumulação capitalista, que logo se arvorou na pretensiosa ambição de uma pax mercatoria, na suposição de que uma economia liberada de constrangimentos políticos estaria dotada do condão de autorregulação, não só produziu o resultado da crise sistêmica de 2008, como também veio a erodir fundamentos sobre os quais ainda se assenta, mal equilibrada, a cena do nosso mundo.
Um desses fundamentos residiria no que a reputada filósofa política Nancy Fraser denominou "enquadramento Keynesiano-Westfaliano", pelo qual, em regra, as discussões acerca da justiça concernentes às relações entre os cidadãos deveriam "submeter-se ao debate dentro dos públicos nacionais e contemplar reparações pelos Estados nacionais" (revista Lua Nova, São Paulo, 77, 2009). A globalização, nesse argumento datado de 2005, teria resultado em que temas cruciais - como reivindicações por redistribuição de recursos econômicos, meio ambiente, aids, terrorismo internacional, tráfico de drogas, assim como os referidos aos meios de comunicação de massas - não mais estariam contidos apenas em órbitas nacionais, transpassando-as e se tornando objeto de uma jurisdição internacional.
O que dizer, então, da Grécia, de Portugal, da Irlanda, até da Espanha e da Itália, para mencionar alguns casos, cujos cidadãos, nos dias de hoje, não têm como recorrer a suas instituições nacionais, salvo às ruas e praças, para reagir às políticas draconianas que os afetam, desprovidos também de voz nos fóruns de deliberação tecnocrática que tomam decisões sobre seus destinos? Por ora, o que se pode dizer é que o enquadramento Keynesiano-Westfaliano tende, com o processo de globalização, ao derruimento, mas está fora do horizonte qualquer expectativa de uma jurisdição internacional democrática sobre a economia-mundo, como ilustra o caso europeu, em que a destituição do político está dando lugar à administração tecnocrática sob comando do capital financeiro.
Esses sinais de mudança de época, embora, ao menos na aparência, ausentes da agenda explícita da política brasileira, trabalham em surdina e ao lado de outros fatores especificamente nacionais, sobretudo dos que dizem respeito à consolidação das instituições democráticas, pelo já evidente desalinhamento do governo Dilma do de seu antecessor, em que pese a sua retórica de se apresentar como fiel continuadora das suas linhas de ação.
Nos dois mandatos de Lula, em especial no segundo, quando a agenda keynesiana se tornou forte referência na orientação macroeconômica governamental, reforçou-se o papel do Estado como instrumento de indução e de planejamento da economia, ao tempo em que se retomavam as aspirações de grandeza nacional do regime militar - o tema westfaliano -, e inesperadamente, para um governo petista, foram restaurados, com a distribuição de recursos do chamado imposto sindical às centrais sindicais, os cediços nexos corporativos entre o Estado e os sindicatos, não à toa com um Ministério do Trabalho sob controle do PDT, onde ainda ressoavam fortes os ecos da era Vargas.
O governo Dilma iniciou-se diante do aprofundamento da crise econômica internacional de 2008, a que ela, economista de formação, de resto, inteiramente refratária a veleidades carismáticas, procura responder, entre outros recursos macroeconômicos, com um ajuste fiscal que, embora moderado, sinaliza inequivocamente uma racionalização da administração pública e da máquina estatal. Desse movimento resultará, de modo imprevisto, um não pequeno abalo nas linhas mestras do presidencialismo de coalizão do seu antecessor, em que seis ministros - Nelson Jobim não entra nessa conta - seriam defenestrados por completa inadequação ao script racionalizador, em que Lula era, como se sabe, um estranho no ninho.
Desse processo de faxina ética, no jargão da mídia, resultou a mobilização desse novo poderoso elenco de instituições que atuam como contrapesos do Poder Executivo na democracia brasileira pós-1988, entre os quais os Tribunais de Contas, o Ministério Público e até a recente Comissão de Ética Pública da Presidência da República, que foi, na verdade, de onde veio o golpe letal que conduziu ao pedido de exoneração do ministro Lupi, pondo sob ameaça a ampla base de sustentação sindical, obra-prima de Lula, dos governos do PT. Efeito correlato anuncia-se com a provável mutação, em janeiro, do presidencialismo de coalizão, que deve tornar-se mais próximo de um modelo programático, reduzindo o poder discricionário dos partidos aliados na administração dos ministérios que lhes cabiam na partilha dos postos governamentais, ao contrário da prática imperante no governo Lula.
Outras mutações nos chegam da jurisdição internacional de certos bens e valores, como a que se exerce sobre os direitos humanos - incluídas aí as liberdades civis e públicas -, que levaram o governo Dilma a uma deriva claramente antiwestfaliana em seu posicionamento, entre outras, sobre questões afetas à Primavera Árabe e ao meio ambiente, notoriamente influente na tramitação da votação no Congresso do novo Código Florestal. O repertório que serviu a um intérprete não cabe mais no outro, e o respeitável público parece que começa a dar-se conta disso.
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