Livro sobre papel do Legislativo mostra que projetos de parlamentares são mais alterados ou vetados do que os do governo e enfrentam mais obstáculos para serem votados
por Fábio Góis | 29/12/2011
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Em 6 de dezembro, o líder do DEM no Senado, Demóstenes Torres (GO), esbravejou em plenário e chegou a chamar de “torpe” o presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP), em uma das últimas sessões deliberativas de 2011. Aos gritos, o parlamentar goiano denunciava a “burla” operada por Sarney, representando a base aliada, a mando do governo federal no propósito de ver aprovados projetos de interesse governista. Crítico contumaz do modelo de medidas provisórias que delega ao presidente da República atribuições típicas do Legislativo, Demóstenes via em Sarney, na ocasião, a personificação das imposições do Executivo sobre o Congresso.
O episódio narrado acima ilustra um dos motes do livro O papel do Congresso Nacional no presidencialismo de coalizão (Konrad-Adenauer-Stiftung, 2011), organizado pelo professor de Ciência Política da USP José Álvaro Moisés a partir de análises de diversos autores sobre a atividade legislativa. Produzido pelo Núcleo de Pesquisa de Políticas Públicas da USP, a obra mostra o resultado de pesquisa realizada entre agosto de 2009 e março de 2010 pelos estudiosos da universidade paulista, tendo como objeto o desempenho do Parlamento nas últimas três legislaturas (período compreendido entre 1995 e 2006).
Com foco na produção e apreciação de projetos – em que pesem as exigências de governabilidade, representação, fiscalização e controle que marcam a relação Executivo-Legislativo –, o grupo de estudo escancarou, entre outros elementos, o que estava por trás do protesto de Demóstenes Torres: a submissão do Congresso ao Palácio do Planalto.
Essa supremacia, aferida pelos pesquisadores tanto nos dois governos de Fernando Henrique Cardoso (1995-2003) quanto no primeiro de Lula (2003-2006), pode ser traduzida em números. Das 2.701 proposições levadas ao plenário da Câmara, entre 1995 e 2006, envolvendo tanto a produção de leis como decisões sobre políticas públicas, 85,5% (2.310) foram originados pelo Executivo e somente 14,5% (391) pelo Legislativo.
De acordo com o livro, nenhuma lei de autoria dos parlamentares foi iniciada e aprovada no período de um mesmo governo, entre 1995 e 2006. Já as propostas do Executivo tiveram impressionante índice de 77,4% de aproveitamento. Em outras palavras, de cada dez propostas enviadas pelo Planalto entre 1996 e 2005, praticamente oito foram aprovadas durante o governo que as elaborou.
A publicação mostra mais: nesse mesmo período, os projetos do Executivo tiveram média de tramitação de 271,4 dias. Já as proposições apresentadas por parlamentares tiveram de esperar, em média, 964,8 dias para serem aprovadas. Ou seja, três vezes mais.
Funções limitadas
“A análise de dados sobre o desempenho do parlamento entre 1995 e 2006, quando o país foi governado por dois presidentes caracterizados por seu protagonismo reformista (nas esferas econômica e social), indica que as condições para a realização das funções específicas do Parlamento são limitadas: o Congresso Nacional tem um índice muito baixo de produção legislativa, os seus projetos são mais alterados ou vetados do que aqueles do Executivo e, além de demorarem tempo excessivo para serem considerados e aprovados – prejudicando a relação entre representantes e representados -, muitas das atuais proposições parlamentares estão bloqueadas, isto é, deixadas fora da pauta de tramitação congressual, enquanto a atuação positiva do Parlamento está voltada principalmente para proposições simbólicas, pouco efetivas em termos de políticas públicas, e praticamente nulas no que se refere às funções de fiscalização e controle do executivo”, diz José Álvaro Moisés na introdução do livro.
Três hipóteses principais foram formuladas pelos pesquisadores sobre o desempenho do Parlamento no contexto do presidencialismo de coalizão. Quais sejam: “a primazia do Executivo implica limites à capacidade de iniciativa do Legislativo no Brasil”, ou seja, a baixa produtividade legislativa de um poder prejudica o outro; “as prerrogativas presidenciais e o processo de tomada de decisões nas duas casas do Congresso Nacional implicam limitação da função de fiscalização e controle desse poder e, dessa forma, do seu papel de representação da sociedade”, o que demonstraria o atrofiamento de atribuições constitucionais do Legislativo; e “os mecanismos de funcionamento do presidencialismo de coalizão induzem à criação de uma dinâmica caracterizada menos pela disputa entre partidos e mais de contraposição entre a coalizão majoritária e a oposição” – em outras palavras, o sistemático esmagamento do papel dos oposicionistas.
Necessidade de aprimoramento
Mas, de acordo com o José Álvaro Moisés, a passividade e as imperfeições do sistema representativo não significam que a democracia no Brasil seja mera peça de ficção. O regime precisa apenas ser aprimorado, diz o cientista político, sob risco de que continue a ser desvirtuado pelo poder excessivo do Executivo. “O problema diz respeito a outros aspectos do funcionamento da democracia, em especial os que se referem à capacidade do sistema político de representar e incluir a enorme diversidade e pluralidade de interesses que constituem sociedades complexas como a brasileira”, destaca o autor, frisando ainda a obediência de parlamentares da chamada coligação governista.
“Em vista dessas percepções, não seria de surpreender se deputados e senadores adotassem alguma atitude de inconformismo em face da predominância do Executivo, mas, ao contrário, eles respondem, na maior parte das vezes, de modo positivo às propostas e preferências desse poder, e só muito recentemente esboçaram uma reação cujos resultados, no entanto, ainda não podem ser adequadamente avaliados”, acrescenta o professor USP, no capítulo de introdução intitulado “O desempenho do Congresso Nacional no presidencialismo de coalizão”.
Diante da diminuição do papel dos representantes do povo no Congresso, diz o autor, a dinâmica das mudanças na relação entre Executivo e Legislativo impõe a revisão do conceito de “presidencialismo de coalizão”, cunhado pelo cientista político Sérgio Abranches em 1988, ano da promulgação da Constituição Federal – texto-mor da legislação nacional que manteve os poderes presidenciais definidos pelos militares na Constituição anterior.
“Com efeito, os constituintes de 1987-88 decidiram manter as prerrogativas outorgadas ao presidente da República pelo regime autoritário de 1964-1985 no que tange ao direito de iniciar legislação. A exemplo do antigo decreto-lei, eles institucionalizaram o poder exclusivo do executivo de emitir medidas provisórias capazes de alterar de imediato o status quo; confirmaram a prerrogativa unilateral dos presidentes de introduzir legislação tributária e o orçamento da união; e, no mesmo sentido, ampliaram a sua competência quanto à organização administrativa do Estado, as decisões sobre os efetivos das forças armadas e as medidas de política externa, como tratados internacionais”, diz a introdução do capítulo, que faz ainda uma ressalva para efeitos de interpretação e exposição de propósitos acadêmicos.
“O estudo é exploratório e preliminar, e não tem a pretensão de fazer inferências causais; a análise tem natureza descritiva, mas aponta as relações possíveis entre as estruturas do sistema político e déficits do desempenho do Congresso Nacional”, observa o autor.
Na gaveta
Amparado em vasto arcabouço teórico afeito ao tema e munido de variado leque de referências bibliográficas, o livro usa reportagens especiais do Congresso em Foco para reforçar sua linha de análise. Trata-se da série “Projetos nas Gavetas”, em que este site mostra quem de fato legisla no país. “O governo federal foi autor de 80% das matérias aprovadas no Congresso entre janeiro de 1995 e dezembro de 2009. Em contrapartida, das propostas atualmente à espera de votação, só 3% são do Executivo”, diz trecho da reportagem publicada em 27 de abril de 2010.
No dia seguinte, este site publicou o desdobramento da reportagem com a lista das 2.472 propostas que entupiam à época as gavetas do Parlamento – a maioria referente a economia, trabalho e meio ambiente e, obviamente, capitaneadas pelo governo. “O Congresso em Foco chamou a atenção para o fato de que havia duas propostas na lista que se referiam à licença-maternidade obrigatória de seis meses para as gestantes, uma na Câmara e outra no Senado, ambas de 2007”, diz outro trecho do livro com referência à série de reportagens, com reprodução de tabela em que os projetos mencionados são dispostos segundo tema.
A primeira menção a este site está na página 14, no capítulo acima mencionado. “Um levantamento do site Congresso em Foco sobre 1.038 projetos apresentados entre 1995 e 2009, baseado em trabalho de autoria de Ana Regina Amaral, mostrou que a oposição ficou com menos relatorias nas comissões: 12% contra 51% entregues a membros das coalizões majoritárias, além de 37% sem definição”, registra o autor, em referência à reportagem intitulada “Governo comanda 88% das leis aprovadas”, em que fica evidenciada a mão forte do Planalto quando o assunto é tramitação de leis.
A obra
Com apoio da Fundação Konrad Adenauer e do Instituto de Estudos Avançados da USP, O papel do Congresso é divido em nove capítulos, incluindo a introdução abordada acima, e tem 135 páginas. O livro foi lançado em duas etapas – a primeira, virtual, pôs à disposição da comunidade acadêmica o chamado “E-book”, no início de julho, com aplicativos portáteis que permite ao leitor mais moderno a leitura da íntegra em qualquer lugar do planeta. O segundo lançamento, nos moldes tradicionais, foi realizado em novembro, em um dos plenários do corredor das comissões da Câmara.
Além de José Álvaro Moisés, assinam os demais ensaios, em ordem de disposição dos capítulos, outros 12 pesquisadores: Edison Nunes (“Fragmentação de interesses e morosidade no Parlamento brasileiro”); Maria Cecília Spina Forjaz (“O Congresso Nacional e a política externa”); Leandro Piquet Carneiro, Umberto Guarnier Mignozzetti e Rafael Moreira (“O poder ausente: o CN e a segurança pública no Brasil”); Diogo Augusto Ferrari (“O CN e a apreciação de tratados internacionais entre 1999 e 2006”); Lucas Queija Cadah e Danilo de Pádua Centurione (“As CPI’s acabam em pizza? Uma resposta sobre as comissões parlamentares de inquérito no presidencialismo de coalizão”); Umberto Guarnier Mignozzetti, Rodolpho Talaisys Bernabel e Manoel Galdino (“Faz alguma diferença corrigir as distorções de representação no Brasil? Um estudo sobre a interação entre a arena eleitoral e a arena legislativa no âmbito federal”); e Fabricio Vasselai (“Nomeações ministeriais e importância partidária na democracia de 1946-64: análises comparativas”).
Fonte: Congresso em Foco
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