sexta-feira, 15 de julho de 2011

A insatisfação cruza o oceano (César Felício)

Em meio às tormentas de Brasília, uma boa notícia da semana passou quase despercebida: a Comissão de Constituição e Justiça do Senado, por doze votos a nove, decidiu mandar para o esquecimento a proposta de se instituir o voto em lista fechada para eleições proporcionais, aquele em que o eleitor escolhe uma sigla e o eleito provém de uma lista preordenada pelas direções partidárias. O líder do governo no Senado, Romero Jucá (PMDB-RR), afirmou que vai apresentar um recurso para a proposta ser examinada pelo plenário da Casa, mas a decisão é um indicativo do ponto de vista que deve prevalecer.

A tese da substituição do sistema de eleição no Brasil é recorrente a cada legislatura, mas ganha força à medida que o quadro de legendas se torna mais complexo: o conjunto de cinco partidos que compunha o Congresso eleito em 1982, do qual o maior controlava 49% da Câmara, transformou-se em uma constelação de 22 siglas, sendo a maior com 17% dos deputados. É uma pulverização que obriga o governo a ter sete partidos na Esplanada.

No mundo inteiro sistemas partidários têm se enfraquecido, mas no Brasil a fraqueza é crônica. Desde a independência: os partidos derivaram de divisões de uma elite que disputa o comando, como no Império e na República Velha, ou foram siglas em um sistema ordenado pelo poder central, voltados para o parlamento e para a ocupação de espaços nos governos.

Antes de dar força, é preciso mudar os partidos políticos

O PT foi e ainda é a exceção mais notável a esta falta de organicidade e por isto, e não apenas pelo carisma de Lula, é a única sigla à qual uma minoria relevante do eleitorado espontaneamente se diz identificada em pesquisas de opinião. Mas mesmo dentro do PT partem um rosário de queixas sobre o desvirtuamento dos processos democráticos internos. Em outras siglas, o caciquismo faz antever uma lista fechada traçada na ponta do bacamarte.

No PR, o senador Alfredo Nascimento (AM) volta à presidência do partido com o poder de assumir todas as funções da Executiva, entre elas a de dissolver diretórios, revogar resoluções, cancelar candidaturas e anular convenções. Só não é possível classificar o recém-demitido ministro dos Transportes de déspota porque o mando no partido é sabidamente concentrado no secretário-geral da sigla, Valdemar da Costa Neto, que não está na presidência formal para melhor trabalhar à sombra.

No PV, que expeliu os 20 milhões de votos da ex-senadora Marina Silva, o estatuto deixa a critério da executiva preencher um quinto dos cargos de gabinete dos parlamentares e determinar quem ocupa e de que maneira o horário gratuito nas campanhas eleitorais. As seções locais só ganham autonomia se conseguirem pelo menos 5% dos votos para deputado. No PTB do ex-deputado Roberto Jefferson, compete ao presidente reunir, quando quiser, o Diretório Nacional e a própria executiva. Obedecem a ele as comissões provisórias que podem ser prorrogadas a qualquer tempo. Em 12 dos 27 Estados o PTB está sendo administrados por estas comissões.

Este domínio das cúpulas não é fenômeno brasileiro e a reação contra ele enfraquece uma das premissas da linha argumentativa de que os sistemas adotados além-mar, como o distrital puro, o misto ou o sistema de lista fechada são em si mais virtuosos. Trata-se de um mito.

As crises de representatividade não respeitam fronteiras e não é a forma de eleger que muda este quadro. A última pesquisa Eurobarômetro, divulgada em fevereiro, mostra que a confiança nos parlamentos na Europa é baixa tanto em países onde a percepção de crise econômica é menor, como no Reino Unido, quanto nos que estão prestes a explodir, como Portugal. Nestes dois países, o índice de apoio ao Congresso é 27%. Os ingleses usam sistema distrital. Os portugueses, lista fechada. Apenas 14% dos portugueses confiavam nos partidos. No Reino Unido, o percentual era 13%. Abstraindo o fato de ser uma pesquisa diferente, em dezembro o Ibope divulgou a sua pesquisa que mede o índice de confiança em instituições no Brasil, apontando um percentual de 38% de apoio para o Congresso e 33% para os partidos.

A Espanha é um caso modelar. Um dos focos da revolta de maio que levou jovens a ocuparem a Puerta Del Sol em Madrid e a Praça Catalunya em Barcelona é a crítica à chamada "partidocracia", ou seja, ao domínio das cúpulas partidárias do Partido Popular e do partido socialista (PSOE) que se revezam no poder há 29 anos. Uma das propostas dos que ocuparam a praça é justamente acabar com a lista fechada e permitir que o eleitor possa escolher seu candidato dentro das listas.

"A lista aberta não debilita a estrutura dos partidos. Pelo contrário, a fortalece, ao obrigar os membros de cada lista a serem capazes de ter seu próprio eleitorado", comentou nada menos que o ex-primeiro- ministro Felipe Gonzalez no mês passado,em entrevista reproduzida na página do jornal "La Voz Libre".

Na outra ponta do espectro partidário, Esperanza Aguirre, a presidente da Comunidade de Madrid, instância equivalente a um governo estadual, apresentou uma proposta formal que redivide a comuna em circunscrições que estimulariam o voto majoritário. "A proposta é que o eleitor possa expressar suas preferências dentro das listas apresentadas pelas formações políticas" resumiu a governante, que é o do PP, o partido da direita na Espanha.

Os protestos de maio não tiraram as pessoas das filas de votação da eleição municipal que ocorreu a seguir.

A abstenção até caiu na Espanha em relação à disputa anterior. Mas são claros os sinais de exaustão contra o sistema eleitoral indutor de partidos políticos fortes, que permitiu aos espanhóis migrarem de maneira relativamente pacífica de uma ditadura que perdurava há 40 anos.Como é impossível a existência de uma democracia representativa sem partidos, talvez o que esteja na hora de mudar, tanto lá como cá, seja o modo como estes partidos se organizam e funcionam.

FONTE: VALOR ECONÔMICO

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