Se há uma era de ouro em nosso tempo, talvez seja a dos ensaios científicos. Desde nomes como Carl Sagan e Stephen Jay Gould, no final dos anos 70, até Stephen Hawking e Jared Diamond, mais recentemente, o mercado editorial tem lançado cada vez mais livros de alta qualidade que ao mesmo tempo divulgam e fazem avançar a ciência. É um equívoco pensar que os grandes escritores de ciência sejam meros democratizadores de ideias alheias; não raro eles são grandes cientistas que levam para a escrita o máximo possível da riqueza de seu pensamento, abrindo mão apenas de detalhes técnicos, simplificando sem banalizar. Tal é o caso agora de Miguel Nicolelis, cujo Muito Além do Nosso Eu (Companhia das Letras) resume suas pesquisas e conceitos mais caros e originais. E põe mais um brasileiro, ao lado de Marcelo Gleiser e Fernando Reinach, nessa tendência tão saudável da atualidade.
Galileu foi ótimo prosador, Newton também escreveu muito, Darwin era um estilista, Einstein explicou sua própria revolução mental, Bertrand Russell mergulhou em matemática e filosofia com sua elegância de lorde, Richard Feynman foi igualmente um prodígio de clareza verbal. Mas nunca antes vimos tal quantidade de livros bons de ciência que não são didáticos, embora ensinem tanto; e você pode discordar de Richard Dawkins, Oliver Sacks, Daniel Dennett ou Antonio Damasio, só que não pode dizer que escrevem mal. Não por acaso tantos desses prosadores científicos em destaque são neurologistas, como Nicolelis, e/ou ligados aos vastos conhecimentos que a chamada Teoria da Evolução legou à biologia moderna, passando por nomes como Thomas Huxley e Ernst Mayr, autores de ensaios antológicos sobre o tema. Com as tecnologias de registro de sons e imagens cerebrais, a disciplina deu saltos impressionantes.
O livro de Nicolelis deixa isso tudo muito evidente. Mesclando o relato autobiográfico de suas pesquisas com a explicação dos trabalhos que as antecederam, permite ao leitor que saia do livro tendo aprendido muito e muito a pensar. Talvez se possa dizer que essa neurociência contemporânea tem aumentado não apenas o conhecimento do funcionamento cerebral, mas também os paradoxos a seu respeito. Por um lado, os escaneamentos das atividades neuronais mostram que muitas coisas antes tidas como ambientais ou culturais, como o ciúme e a competitividade, são antes de mais nada inclinações biológicas; autores como Steven Pinker têm insistido muito em mostrar que a natureza humana está longe de ser um papel em branco que a vida social preenche. Ao mesmo tempo, descobertas diversas também reforçam o papel da empatia, como no caso dos neurônios espelhos analisado por V.S. Ramachandran: somos muito mais dependentes uns dos outros do que gostaríamos de pensar, e o cérebro é um sistema muito aberto e maleável aos eventos externos.
Nicolelis faz parte do segundo grupo. Com seu trabalho sobre a interface entre cérebro e máquina, no qual mostra como extensões robóticas são incorporadas pelos circuitos neuronais como se fizessem parte do organismo, ele se alinha aos que veem o órgão não como um computador que meramente processa inputs do ambiente, mas que transforma sua própria estrutura em função deles. Nicolelis chega a falar do amor em termos neurofisiológicos, ao notar que nossas simulações cerebrais incorporam o ser amado como uma continuidade de nós mesmos, uma projeção de nosso corpo que transforma nossa autoimagem mental. Essa plasticidade “pode explicar por que é tão doloroso enfrentar o final de uma relação amorosa ou a morte de um ente querido. Basicamente, eu proponho que essa dor tão terrível e dilacerante emerge porque, do ponto de vista de nosso sempre meticuloso escultor cerebral, essa perda representa na verdade uma renúncia irrevogável de uma parte integral de nosso eu.” Sim, Chico Buarque sabia: “Oh pedaço de mim, oh metade arrancada de mim”.
Acho bacana que Nicolelis use passagens mais pessoais e descontraídas em seu texto (até o Palmeiras, time pelo qual torce, aparece mais de uma vez), embora, principalmente no começo, sua escrita escorregue um pouco para o excesso de adjetivos ou chavões. Quando se trata de descrever experimentos e conceitos, porém, o texto se torna mais preciso e fluente. Ele logo vai dizendo qual sua posição: devemos pensar que o mecanismo cerebral ocorre por meio de populações de neurônios, de redes que conectam essas células por ligações químicas e também por frequências de energia, em vez de pensar em neurônios individualizados. É uma visão em 3-D do cérebro, que dá maior ênfase à coordenada do tempo do que as dominantes até aqui. Nicolelis critica a noção dele como um órgão dividido em áreas altamente especializadas. Propõe um cérebro menos linear, mais complexo e relativista, em que propriedades como a consciência emergem das interações entre bilhões de neurônios.
Como Damásio, Nicolelis se volta contra a noção cartesiana do cérebro como um decodificador de sinais exteriores, derrubada por duas décadas de pesquisas que mostraram como ele toma a iniciativa e trabalha com simulações o tempo todo, compondo uma visão da realidade. Aquilo que chamamos de vida mental deriva da “combinação da história evolutiva e individual da vida do cérebro, seu estado dinâmico global a cada momento no tempo e as representações internas que ele mantém do corpo e do mundo”. Este último ponto é particularmente interessante a Nicolelis. Em sua observação, o cérebro de um macaco com um dedo amputado reorganiza os neurônios que representavam esse dedo de modo que sintam estímulos táteis nos adjacentes. Sem o correspondente anatômico, as células se adaptam a novas tarefas. O mesmo acontece com uma prótese robótica que o cérebro humano passa a incorporar no lugar do membro mutilado. Há uma assimilação dos artefatos como extensões do próprio corpo.
Como tantos cientistas brasileiros (os citados Gleiser e Reinach, por exemplo), Nicolelis precisou ir para outro país para desenvolver sua tese em laboratórios adequados, nos quais a computação desse conta de fenômenos que envolvem trilhões de informações (as conexões neuronais, registradas por algoritmos). E narra minuciosamente como percebeu que não se pode isolar um neurônio num determinado espaço, como se tivesse uma única função, e que se deve considerar o tempo como outra variável. Dependendo do momento, em suma, um neurônio pode estar ocupado com uma tarefa distinta da que o ocupava até então, em diferentes sincronias; circuitos de sinais são refeitos a todo instante. O cérebro distribui as tarefas de modo muito mais amplo e plástico que se imaginava; pode até partir de módulos funcionais, mas muitas regiões participam de um mesmo processo mental e em níveis diversos.
Uma confirmação veio há cerca de uma década, quando Nicolelis e seus colegas conseguiram que a atividade cerebral de uma macaca nos EUA movesse dois braços robóticos no Japão, por meio de computadores conectados. Mais tarde, por meio de estímulos visuais fornecidos por micro eletrodos, conseguiram que outra primata movesse um joystick, provando com isso que a função motora não tem uma localização exata e estrita, podendo ser desempenhada em pontos díspares. Daí a ideia central de Nicolelis, à qual em alguns momentos parece dar um tom visionário: é possível construir próteses controladas pela mente, ou seja, estimular o cérebro a assimilar uma máquina como se fosse prolongamento do corpo. Muitas pessoas parecem pensar que isso seria como mover objetos por meio do pensamento, à la Uri Geller, mas na teoria de Nicolelis não há espaços para magia ou misticismo. Trata-se de um experimento tecnológico, ponto.
É óbvio, no entanto, que nenhum leitor sai desse livro sem se sentir fascinado por tais pesquisas, ainda que longe de definitivas, e ao mesmo tempo cético sobre algumas generalizações. Nicolelis diz que o córtex não tem fronteiras e hierarquias nítidas e que deve ser tratado como uma área contínua em constante reinvenção, um “oceano de interações dinâmicas multimodais”. Mas diz que está pronto para aceitar “um certo grau de especialização” e reconhece que ainda há muito trabalho experimental a fazer até que possa afirmar com segurança que “populações de neurônios podem ser recrutadas de acordo com a necessidade funcional ou comportamental”, sugerindo uma possibilidade de autocontrole que vai muito além da verificação de que redes neuronais se readaptam em corpos mutilados ou macacos condicionados. Nicolelis fala em libertar o cérebro do corpo e direcionar o processo evolutivo de nossa espécie… Mas, por enquanto, seu trabalho já expandiu o cérebro ao mostrar sua estrutura polifônica, mesmo que o maestro pareça ter o hábito de ir ao banheiro durante o espetáculo.
Muda esse fundo, comprometeu a leitura.
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