segunda-feira, 4 de julho de 2011

Dos ex-presidentes e de sua sabedoria (Renato Janine Ribeiro)

Geralmente, não é bom ser ex. Quem perde a pessoa amada sofre. Quem deixa um cargo no governo, sobretudo o de presidente, perde. Quero falar hoje dos ex-presidentes. Chequei os norte-americanos. Desde 1900, vinte homens ocuparam a Casa Branca. Deles, apenas dois continuaram fazendo política depois de deixar o cargo, um deles rumando para a esquerda, Theodore Roosevelt, outro se conservando na direita, Herbert Hoover. Hoje, aquele país tem quatro ex-presidentes vivos (no Brasil, agora também são quatro). Mas, deles, apenas um é um excelente ex-presidente, Jimmy Carter, que não foi tão bem sucedido na presidência porém, depois, se revelou uma das lideranças éticas mundiais. Provavelmente, é o melhor ex-presidente daquele país em duzentos anos.

O que quero sustentar é que ser ex-presidente é um estilo, uma vocação. Dizer que alguém foi presidente (no passado) não é o mesmo que dizer que é ex-presidente (no tempo presente). Quem foi presidente pode se aposentar, ir para o Senado (como Sarney, Collor e até agora Itamar), continuar fazendo política - ou tornar-se "ex-presidente", que defino como a pessoa que aprendeu muito na chefia do Estado e utiliza essa sabedoria, sem fins sectários, para ajudar o país, a sociedade ou a humanidade. Vejam que, fora Carter, o melhor ex-presidente dos Estados Unidos é alguém que foi eleito, mas não empossado: Al Gore. Esbulhado de sua vitória eleitoral em 2000 pela fraude na Flórida e por uma Corte Suprema pouco digna, Gore se dedicou à defesa do meio ambiente contra o aquecimento global. Exerce atuação social bem superior à do presidente de quem foi vice, Bill Clinton, que tem uma fundação, sim, mas não é uma liderança moral. E não esqueçamos o maior ex-presidente dos Estados Unidos no século XIX, que foi John Quincy Adams, nosso conhecido porque aparece no filme Amistad como defensor dos escravos, e que - como Carter - foi um presidente não reeleito. O fracasso partidário se converteu em vitória ética.

Temos ex-presidentes que correspondam a esse perfil? Tivemos? Questão interessante e polêmica. Obviamente, não é o caso de Lula, que continua ativíssimo na política, como aliás é seu direito. Já Fernando Henrique Cardoso talvez esteja efetuando a passagem do político para o sábio, o que é o tema desta coluna. Até pouco atrás, ele era um dos líderes do PSDB e, como Lula, fazia política. Parece, porém, estar em transição para o papel de ex-presidente. Curiosamente, o ponto de inflexão pode ter sido seu artigo "O papel da oposição", publicado na revista "Interesse Nacional", em que propunha uma agenda para o PSDB. Continuava, pois, centrando suas ideias no partido que ajudou a fundar e que levou ao Planalto. Mas o "paper", que gerou a esperada torrente de críticas do PT, produziu silêncio quase ensurdecedor no PSDB. Contudo, FHC continuou na linha do artigo. Já defendera a descriminalização da maconha, e hoje a defende no cinema.

Parar de prender quem fuma maconha é consistente com seu artigo, porque nos dois casos FHC está interessado nos jovens. O ponto principal do "paper" é que jovens, com as redes sociais, seriam o destinatário por excelência de um partido, como o PSDB, que não tem como competir com o PT pelo voto dos pobres. Defender a liberação de uma droga leve, de escassos danos à saúde, muito usada pelos mais moços, vai nessa direção. Enquanto isso, porém, as lideranças de seu partido - que na eleição passada fizeram um triste carnaval em torno do aborto, absurdo esse que Ruth Cardoso e seu marido jamais endossariam - mantêm um discurso vetusto e moralista sobre a maconha. Permito-me exagerar: não dá para defender as redes sociais e ao mesmo tempo ser contra o uso da droga leve. Não estou dizendo que os frequentadores do Facebook, entre os quais me incluo, sejam maconheiros - mas apenas que a liberação de uma droga aparentemente pouco danosa para a saúde, e cuja proibição favorece a organização do crime e a corrupção da polícia, vai na lógica mais ou menos libertária das redes sociais. Em suma, se queremos os jovens, não podemos ser moralistas. Ser moralista parece estar sendo o erro ou o destino do PSDB. Sucede, pois, que, querendo ou não, FHC está sendo levado a ser maior que seu partido. Nada disso ainda está definido, mas é uma forte hipótese.

Tanto é uma hipótese que não apenas presidentes podem perder a popularidade, mas ex-presidentes também podem perder a reputação. Acreditei, por vários anos, que José Sarney exercia bem a ex-presidência (até afirmei: pena que, para ser tão bom ex-presidente, antes teve de ser presidente, cargo no qual foi apenas mediano). Usou sua experiência para acalmar as paixões e ajudar a buscar soluções. Presidente do Senado em 1995, limpou sua pauta - e deixou saudades, até porque foi sucedido por Antonio Carlos Magalhães. Contudo, em 2009, talvez para conseguir que sua família voltasse a governar o Maranhão, desafiou e derrotou pela presidência da Casa Alta o senador Tião Viana, nome apresentado em conjunto pelo PT e PSDB - e a partir daí a imagem de Sarney decaiu muito, junto à opinião pública. Sucessivas denúncias reduziram o patrimônio simbólico que ele construíra depois da presidência da República. O caso é interessante, porque Sarney, que dificilmente seria considerado um dos melhores presidentes do Brasil, perdeu a chance de ser lembrado como um notável ex-presidente. Isso confirma que a ex-presidência não é um fato dado e acabado mas, como a própria presidência, requer um cuidado constante. Não é apenas o presidente que precisa constantemente preservar sua imagem - também, o ex-presidente.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.

FONTE: VALOR ECONÔMICO

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