sábado, 23 de julho de 2011

DENUNCISMO E APOLOGÉTICA COMO O ÓPIO DAS CLASSES INSTRUÍDAS: VARIAÇÕES SOBRE O TEMA DA ÉTICA E DA CORRUPÇÃO E SEUS “EFEITOS NARCOTIZANTES” (José Roberto Bonifácio)

"Tá dominado! Tá Tudo Dominado!" (“Bonde do Tigrão”, Sony Music / Furacão 2000, 2001)

Vivemos como que narcotizados pela sucessão de denuncias, comprovadas ou não, de modo que a corrupção entranhou-se no cotidiano, rotinizou-se, banalizou-se. E ainda assim nada fazemos para combatê-la. O propósito deste texto e precisamente o de captar certos aspectos e nuances da maneira como a sociedade brasileira reage ao tema e o diagnostica, buscando compreender os motivos das mobilizações e comportamentos de setores relevantes do processo político, notadamente os intelectuais, as organizações e as classes sociais.
Conforme o primeiro texto, o R. Azevedo teve um insight assim digamos "olsoniano" ao atacar a questão do Imposto Sindical e se filiou - talvez inadvertidamente - aquela corrente interpretativa que, outrora, dissemos diagnosticar a Era Lula como indutora de um novo processo de "estadonovização" da republica brasileira.
O governo inicialmente cooptou a FIESP/CNI por via de políticas industriais ativas, assim como a CNA por meio de incentivos fiscais e creditícios as exportações de produtos primários, e a FEBRABAN através da manutenção dos fundamentos macroeconômicos. Na coleirinha, há décadas, ele já tinha a CUT/CGT e o MST, alem de uma miríade de movimentos sociais colecionados ao longo da trajetória oposicionista. Por efeito, de concessões ao PCdoB na maquina publica federal, a UNE/UBES foi atraída para sua orbita. Eles ainda atrairam a CNBB, o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (CONIC, a "CNBB" interconfessional), bem como outra miríade de entidades evangélicas pentecostais e neopentecostais, através do Tratado Brasil-Vaticano e da Lei Geral das Religiões aprovada na esteira desta. O peleguismo, que antes se dizia ser patronal e/ou sindical, hoje em dia é também confessional e estudantil.
Há que convir, que no momento em que o lulopetismo coloniza toda esta malha organizacional enraizada e difundida ao longo da sociedade civil, ele não apenas passa a influenciar decisões sobre benefícios coletivos ou benefícios diferenciados dentro destas categorias. Ele esta também capturando para o Estado brasileiro importantes agencias de socialização política das classes sociais relevantes da sociedade, a saber as classes operarias (CUT/CGT) e camponesas (MST), as classes empresariais da industria (FIESP /CNI) e da agropecuária (CNA), e a classes medias que alcançaram seu status e renda por via da educação superior e/ou de profissões liberais (UNE/UBES).
Ate aqui falamos somente das frações de classe organizadas ou que exibem atitudes, valores e comportamentos mais seculares em sua participação política. Nada falamos do avassaladoramente crescente numero daqueles que tem menor disposição para participar de uma “Marcha pela Ética na Política” do que de uma “Marcha para Jesus” (tornada um evento oficial de abrangência nacional, instituído pelo PL n.º 3234/08.)...
Recentemente, visando consumar sua tutela sobre os formadores de opinião, o governo buscou fazer o mesmo com o restante da classe media bem informada, através do PNBL, logo rechaçado pelos chamados “blogueiros progressistas” – que nada mais são do que egressos das classes medias e operarias tradicionais arregimentados naquelas mesmas entidades supramencionadas. O “aparelhamento” destas entidades lhes permite incutir normas, valores e crenças nestas coletividades organizadas, tornando-os infensos a outros apelos. Uma nova concepção de “res publica” e cidadania se afirma, uma com a qual não estamos acostumados e apenas estranhamos como alheia ou perversa.
A ofensiva governista neste campo processa-se, pari passu com a defensiva das oposições, - sendo que muitas vezes as posições e papeis se invertem – tem produzido repercussões significativas nos comportamentos e atitudes que observamos no espaço publico. Tanto os lulopetistas quanto os “demotucanos” – rotulo convenientemente abrangente, contudo nem sempre apropriado para designar o variado conjunto de oponentes a ser enfrentado... – parecem exibir posicionamentos face a corrupção e a malversação de recursos públicos que são muito marcadas e distintas, ainda que simétricas e complementares, como se vera com respeito a divulgação de noticias e denuncias de corrupção na Administração Publica.
Da parte dos oponentes do governo há o que chamaríamos de um “efeito narcotizante” nas denuncias de corrupção. É como se o "Denuncismo" estivesse tornando-se uma espécie de "ópio" para as classes médias e esclarecidas.Ha corrupção sim e sua magnitude e repercussões são avassaladoras; na...o se sabe dizer - ao menos não de maneira precisa... - se maior ou menor do que já se teve, a menos que nos também embarquemos na onda do "nunca antes na Historia deste pais!"
O aludido efeito narcotizante e o de que estamos nos "viciando" em coisas assim, ficamos adormecidos, aturdidos, alucinados, mas ainda assim não abandonamos esta forma de dependência psíquica (não química ou fisiológica, ao menos para a maioria...). Não conseguimos por mais que nos esforcemos. E como se todo um campo neural em nosso cérebro fosse ativado e alimentado por tais percepções e ao mesmo tempo em que ele nos excita ele nos torna impotentes. Mas a oposição, como eu tenho argumentado com outras pessoas aqui, narcotizou-se na pratica do "denuncismo" quase na mesma medida em que os situacionistas viciaram-se na apologética mais visceral.
Enquanto “denuncismo” vem a ser a vulgarização de um direito e um dever legitimo que assiste ao cidadão enquanto eleitor e contribuinte - a pratica da denuncia e da revelação de esquemas criminosos e lesivos ao Erário - que não deseja ver-se espoliado, a segunda não e mais do que uma acomodação dos momentâneos detentores do poder a seu atual status adquirido e um conjunto de desculpas padrão convenientemente mobilizado para dissimular a inevitável erosão do seu prestigio e legitimidade.
Estes últimos, contudo, tem a vantagem obvia de estarem pilotando um projeto político amplamente referendado pelas massas e somente isto. Dai a "razão" que neste momento, a meu entender, assiste a um Jose Dirceu (que não parece enfrentar tanta resistência assim no seio do lulopetismo) ao dizer que os adversários não tem sido propositivos como gostaríamos que fossem. Por outro lado, tem-se ecoando em toda a parte, o surrado mantra “Não foi a corrupção
que aumentou; o governo Lula é que tornou as investigações mais rigorosas e eficazes”. Um clichê ou meia-verdade quase goebbelsiana em seu conteúdo e forma, mas incrivelmente eficaz em suas repercussões na sociedade. Isto e o que chamaremos de comportamento apologético, ou “peleguista” (em suas variantes patronal, sindical, estudantil e confessional, como visto acima), uma das três síndromes que observamos na personalidade dos governistas.
Esta defesa cega e persistente do governo vem a ser uma contraparte do “moralismo” e do “idealismo constitucional” que se manifestam no campo oposto. O primeiro como uma vulgarização e absolutização dos temas éticos e da abordagem moral dos problemas da nação, não no sentido antigo do primado da “Filosofia Moral” sobre outros modos de ver o mundo. O segundo, seu desdobramento, vem a ser a necessidade também irrealista de se regenerar a nação e a republica por meio das normas legais e constitucionais, como se tudo que se passa na vida nacional e republicana pudesse ser subsumido ao “Vade Mecum”... O corolário de ambos é o já aludido e estéril denuncismo, o qual alimenta a apologética como em circulo vicioso.
Muito típico do lulopetismo, por outro lado (ao lado do comportamento apologético ou dissociativo em face de "ligações perigosas"), são o negacionismo, nas variadas formas do fatalismo, do comodismo, do escapismo e do ufanismo. A insistência dos adeptos deste estilo de pensamento em se dissorciarem de fatos e eventos negativos e/ou desabonadores traduz bem aquilo que certo intelectual socialista italiano nos anos 1930, com muita propriedade e conhecimento de causa, chamou de "transformismo". Esta recusa em assumir responsabilidades politicas ineludiveis, esta patologica aversão a riscos,... eis a marca comportamental mais vistosa e perene dos intelectuais lulopetistas, dos grupos organizados e das massas desorganizadas a quem dirigem seu discurso. Em conjunto, tais atitudes fazem a "metamorfose ambulante" do falecido Raul Seixas parecer uma brincadeira infantil e despretensiosa.
Assim como este apego visceral a uma apologética pessoal e partidária, obscurece sua visão, o comportamento negacionista, desdobramento do primeiro, explicita-se reiteradamente no debate publico, seja na mídia ou no Congresso Nacional. Muitos acomodam-se ao status-quo, outros crêem que sempre foi deste jeito e sempre teremos que conviver com o fantasma da corrupção em nossas instituições publicas, dadas as peculiaridades da nossa “cultura ibérica”. O comportamento gêmeo deste vem a ser a baixa propensidade ao risco, que se traduz em hesitação ou procrastinação de medidas e ações políticas no sentido de mitigar o problema, ressarcir o Erário e punir os envolvidos.
Ainda a respeito da tentativa de fazer um diagnostico “moralista” da política brasileira, o texto de Lamounier é claro, lúcido e preciso. Do mesmo modo como não há consenso sobre valores que possam fundamentar um padrão ético compartilhado por todos, não há porque nem como supor que tal consenso vá fazer a sociedade brasileira despertar de seu adormecimento e tampouco de uma hora para outra. Em suas palavras:
"Não há consenso fácil. É preciso tornear os valores e objetivos: defini-los de maneira precisa, dimensioná-los; eles têm que ser coerentes e realistas, uma vez que todo consenso é difícil. Consensos formados em nível abstratos são praticamente inúteis, pois ninguém saberá ao certo com o que concordou. Um objetivos específico e já em vias de amadurecimento na opinião pública seria, por exemplo, reduzir drasticamente o número de cargos de confiança na administração federal." (Bolívar Lamounier.
Corrupção: os porquês de nossa aparente passividade, e as saídas (III), 19.07.2011 - 21h00)
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O imaginário político da maior parte da sociedade brasileira – da classe média escolarizada inclusive – abriga um número considerável de crenças francamente fantasiosas. A todo momento, encontramos alguém que acredita seriamente na hipótese de um “estalo” coletivo, uma súbita iluminação ética, ou um súbito esforço coletivo para “acabar com a corrupção”. Ora, isso não vai acontecer, ponto final.
As pessoas e os diferentes grupos sociais obviamente não têm os mesmos interesses; estes freqüentemente não são sequer compatíveis. Mas, atenção, a ética política não pressupõe um consenso entre todos, nem deve ter a aspiração a construí-lo como premissa. Temos de atuar dentro, não fora do mundo; a ética política é intra-, não extra-mundana. A quem quiser sair do mundo, eu só posso sugerir que vire eremita." (Bolívar Lamounier. Corrupção: os porquês de nossa aparente passividade, e as saídas (III), 19.07.2011 - 21h00)
A revalorização da política como esfera legitima é o que se acha em pauta na discussão e na pratica da ética e dos valores. Ela há muito foi abandonada por seus verdadeiros e legítimos interessados e estes não se limitam aos grupos organizados (as elites) e aos grupos desorganizados (as massas), quase todos hoje magnetizados pelo lulopetismo. As classes medias, as tradicionais e as emergentes, devem reocupar o seu lugar como pivot do processo político. E ela não o conseguira através da exibição destas reações estereotipadas aos problemas que se afiguram.
Da parte das outras classes sociais, sobretudo aquelas onde o apelo do lulopetismo alcançou maior amplitude e profundidade, como se viu, o desafio se afigura ainda maior, dado que tendo se tornado parcialmente infensas ao estilo de pensamento “demotucano” pelo efeito “narcotizante” do enquadramento nas instituições sociais acima citadas, terão também se tornado incapazes de distinguir entre o que é e o não que é uma maneira republicana de gerir o pais e a nação.
Em suma: tanto em um quanto no outro caso, substitui-se automaticamente, por meio de um conjunto de reações estereotipadas, uma causa de interesse mais abrangente por um discurso de origem circunscrita, mas que almeja atingir tal amplitude. Ou, inversamente, coloca-se um causa de abrangência circunscrita por um interesse mais geral. O fundamento moral da política, seu conteúdo ético substantivo, fica assim profunda e permanentemente vulnerabilizado.
A mensagem do texto do Lamounier, enfim, é clara: Vamos segurar a onda nesse nosso "idealismo constitucional" que já se tornou atávico. Vamos trazer nossa ética para este mundo, vamos secularizá-la. Não nos deixemos tomar pelo “moralismo”! Haja vista o fim que levou a "Lei da Ficha Limpa"...

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