O Brasil está dividido, mal-humorado e turbulento. O governo tem a ala dos militares, a ala da economia e a ala dos ideológicos. O Legislativo ensaia uma guerra contra o Judiciário, que, por sua vez, ameaça o Executivo. O Supremo Tribunal Federal (STF) e o Ministério Público (Procuradoria-Geral da República) entram em confronto aberto e medem forças à luz do dia. Nas ruas, simpatizante de um lado aplica mata-leão em manifestante do lado oposto. A base de apoio do governo não se entende nem a respeito das prioridades da pauta de votação na Câmara dos Deputados.
Existe também uma nítida divisão quanto ao que se percebe do desempenho do governo. Existem dois Brasis: um, que é veiculado nos grande meios de comunicação (ainda que com nuances), de cunho marcadamente contrário a Bolsonaro e ao governo; o outro, da opinião contundente e aparentemente majoritária espalhada nas redes sociais, que endeusa o presidente da República, aplaude com entusiasmo as ações governamentais e os arroubos presidenciais no Twitter.
No plano mais raivoso-ilustrado, as visões antagônicas se digladiam. A turma capitaneada por Olavo de Carvalho, alguns ministros da República incluídos, enxerga a esquerda como frequentadora de uma espécie de submundo das ideias. O que esquerdistas dizem não vale e nunca valeu nada. O subalterno ideário marxista e seus princípios não deveriam frequentar nem os livros de história do pensamento político moderno, pois não teriam atingido o status de pensamento, muito menos mereceriam o epíteto de moderno.
A esquerda, por sua vez, não economiza adjetivos. Seus inimigos são tachados de fascistas para cima. Um bando de insensíveis, sem nenhuma preocupação social, neoliberais a serviço do que existe de mais abjeto no imperialismo capitalista. São indivíduos racistas, que não aceitam a diversidade sociocultural-sexual e nas horas vagas se deliciam tecendo loas ao regime militar e lembrando nostalgicamente as façanhas dos torturadores da época. São sombrios semeadores de trevas. Nesse clima, tentar entender os argumentos do outro se transforma na mais absoluta perda de tempo.
Temos também a divisão entre a velha política e a nova política. A velha política é representada pelos partidos e políticos tradicionais, que debatem, mas nada resolvem, um time de desajustados que só pensam em se corromper. Embora amplamente majoritários e ocupando cargos de comando, não merecem o pão que os alimenta. O ideal seria que fossem exterminados, já que provocam ojeriza na sociedade e infectam a vida pública.
A nova política, essa, sim, promoverá o avanço institucional de que o Brasil precisa. Parlamentares novos, desintoxicados dos vícios do cambalacho e desinteressados de cargos, seriam a locomotiva das mudanças que o Brasil anseia e necessita. Para que o diálogo, a busca de articulação política, a formação de maiorias via partidos? Como num sonho, a agregação ocorreria de forma natural e os 25% de inexperientes e algo folclóricos deputados eleitos pela primeira vez dariam uma lição de moral e de eficiência num Congresso que chafurda no lamaçal do “toma lá dá cá”.
No âmbito dos partidos, a divisão chegou ao paroxismo. A fragmentação partidária nunca foi tão grande. Foi-se o tempo em que poucos partidos garantiam a maioria e a governabilidade. Hoje, para aprovar uma emenda constitucional, se excluirmos as agremiações oposicionistas, seriam necessários 11 partidos para alcançar os 308 votos – isso se os deputados votassem em bloco. Esses 11 partidos somaram 312 deputados nas eleições do ano passado, ou seja, 28 parlamentares por partido na média. Dá para intuir a dificuldade para organizar opiniões e vontades nessa verdadeira Torre de Babel...
O governo ajuda a turbinar a barafunda com seus ministros-bomba. A turma do barulho – formada por Ernesto Araújo, Damares Alves e Vélez Rodríguez (que recentemente deixou o governo) – não mede esforços para revirar os traumas mais recônditos da sociedade. Isso atiça a reação da esquerda, que de acuada e desmoralizada começa a exercer um protagonismo desproporcional ao respeito que angaria na sociedade. E dá-lhe pancadaria!
Na ausência de articulação política, o Congresso cria sua própria agenda. Ameaça limitar o número de medidas provisórias que podem ser editadas pelo governo, votar contra matérias de interesse do Executivo, atrasar a reforma da Previdência, enfim, dificultar ao máximo o andamento das coisas. Da Virgínia (EUA), Olavo de Carvalho dispara seu fuzil AR-15 de aleivosias contra os militares, o que provoca reação de Bolsonaro, que, por sua vez, vê com desconfiança a movimentação de seu vice, general Mourão. Ninguém se entende.
Por tudo isso, não surpreende a pesquisa do Instituto Ipsos divulgada pelo Estado em 14/4. O levantamento mostra uma grande polarização política no País. Para 32% dos brasileiros, não vale a pena conversar com quem tem uma visão diferente. Esse índice fica acima da média de 27 países incluídos no estudo. Apenas dois países superaram o Brasil: a Índia (35%) e a África do Sul (33%). Na verdade, estão todos empatados em primeiro lugar se levarmos em conta a margem de erro da sondagem.
A sociedade brasileira está dividida em relação ao governo, ao presidente da República, à aprovação da reforma da Previdência e a uma série inesgotável de assuntos. E a intensidade das opiniões é fortíssima. Não é que um indivíduo tenha uma opinião sobre um assunto – e acabou. Não. Ele está disposto a defendê-la com todo o vigor e sem aceitar contestação. A opinião, nesse sentido, confunde-se com crença, fanatismo, dogma.
O Brasil precisa aprovar reformas complexas e isso só se concretizará com a construção de consensos. Com essa hipertensão social e predisposição quase atlética para o confronto, não vai ser fácil.
(*) Cientista político pela USP, é Consultor da Fundação Espaço Democrático
O Estado de S.Paulo/26 de abril de 2019
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