Numa sociedade democrática, governar é o inverso da lógica da guerra. O bom líder procura reduzir o alcance dos conflitos que são inerentes às democracias, por meio da negociação e da busca de consensos. Quando não for possível vencer, sua liderança crescerá se for capaz de aprender com as derrotas.
Mas muitos governantes seguem outra estratégia, como até agora tem sido o caso do presidente Jair Bolsonaro. Sua opção pelo guerrear constante tem deixado os atores políticos e sociais atônitos. A pergunta que fica é qual será o destino dessa estratégia para o presidente e para o país.
O estilo de governo de Bolsonaro alimenta-se da polarização e do ataque a inimigos padrão. Estes podem ser os petistas, os artistas, a universidade, a mídia e tudo aquilo que representa duas coisas: primeiro, algo diferente e/ou independente do pensamento bolsonarista, e, segundo, grupos, pessoas e ideias que significaram, de algum modo ao longo da história, um obstáculo à trajetória política do capitão-deputado e dos seus seguidores.
A lógica da guerra presente no bolsonarismo-raiz tem como consequência a construção de uma definição muito restrita de aliados e inimigos, que não capta grande parte da sociedade. E foi um enorme e majoritário contingente de atores políticos e sociais que, ao fim e ao cabo, elegeu Bolsonaro.
Bastaria optar por alianças estratégicas e táticas com o mundo para além da dicotomia e assim se produziria um governo com um grau suficiente de coerência e estabilidade para se governar o Brasil.
Só que não tem sido esse o caminho adotado pelo presidente Bolsonaro. O modelo mental que guia o bolsonarismo segue a máxima de que as ações necessárias para a montagem da governabilidade podem atrapalhar o principal objetivo, que é a demarcação rígida do terreno frente ao antagônico, o qual, se necessário, deve ser extirpado do jogo político.
Daí que a guerra contra o inimigo ocupa o principal lugar na estratégia política do presidente e de seus seguidores mais fiéis. Isso reduz a importância da conversa com o Congresso, particularmente com os partidos mais ao centro, pois isso pode tirar a pureza do "movimento renovador da política". Mais do que isso: os bolsonaristas não confiam nos políticos e na política como um exercício de convivência e barganha entre grupos com posições diferentes ou antagônicas.
O resultado disso é a montagem de uma visão antipolítica e messiânica de atuação. Não quer dizer que essa estratégia seja irracional. Sua racionalidade está em contentar basicamente o grupo mais fiel dos seguidores e mantê-los unidos pela busca de ideias que não podem ser negociadas, pois perderiam sua pureza.
O presidente Jair Bolsonaro quer mais do que eleitores: precisa de uma torcida organizada para pressionar o sistema político e para protegê-lo nos momentos de crise e confronto, que serão corriqueiros dentro da lógica de guerra que orienta essa ação política.
Para liderar essa visão de mundo, mais do que um político, precisa-se de um "mito", um herói que não se submete à velha política e cuja revolução está em ir contra as modernidades (o politicamente correto e outras degenerações) e em favor de uma tradição reconstruída a partir de um passado idealizado num formato conservador.
Para tanto, os bolsonaristas reescrevem a história: não houve ditadura, a escravidão deveria ser vista como algo intrínseco à sua época (embora o Brasil tenha sido o último país ocidental a aboli-la) e outras releituras cujo objetivo é mudar a intepretação recente do presente, dominada por aqueles que acreditam na proposta da Constituição de 1988.
É importante ressaltar que Bolsonaro está propondo uma revolução conservadora. O modo revolucionário muitas vezes significa atuar pela desinstitucionalização do Estado e das principais formas de resolução dos conflitos coletivos. Por isso, o propósito do governo não é só fazer emendas constitucionais, mas mudar o sentido da Constituição feita na redemocratização.
Além do mais, o governo procura enfraquecer instituições importantes do país: o patriotismo guiado por um mito substituiria os interesses partidários, as famílias no lugar das escolas, as redes sociais acima da mídia tradicional e a livre ação dos indivíduos, sobretudo no campo das armas mas também em áreas como o "direito dos motoristas", coloca-se contra as leis e o monopólio do poder estatal.
Quando se compreende essa lógica de pensamento, ficam mais claras as razões do olavismo insurgir-se contra os militares. Sendo um dos polos fundadores da visão bolsonarista na década passada, trata-se de uma proposta que atua fundamentalmente em prol da desinstitucionalização do país e pela construção de uma revolução conservadora cujos marcos vão além do governo de plantão.
Para Olavo de Carvalho e seguidores, as Forças Armadas podem ser um dique contra a transformação radical que eles propõem - o que é verdade.
Todo esse projeto bolsonarista sustenta-se numa lógica de guerra, segundo a qual não há compromissos duradouros possíveis com as outras forças políticas e sociais, mesmo que somadas elas representem mais do que a polarização e controlem instituições ou arenas centrais para as decisões públicas.
É verdade que, por vezes, Bolsonaro cede ao modo político mais típico da democracia, que supõe o diálogo, a busca de alianças para se ter maioria e prestar atenção nos alarmes de incêndio acionados pela mídia, pelo mercado ou por movimentos organizados da sociedade. Mas tais momentos ou duram pouco, ou ocorrem juntamente com o maior acirramento político em outras questões. No geral, o presidente tem dobrado suas apostas no modelo de guerra permanente.
Mesmo com todos os fatos ocorridos até agora, espera-se ainda que se acontecer uma crise maior, na reforma da Previdência ou nos desdobramentos das investigações contra o senador Flávio Bolsonaro, o presidente adotará uma postura mais pluralista e realista.
O problema é que isso provavelmente descontentará o bolsonarismo-raiz e toda a ideologia que sustentou a campanha presidencial. Será que Bolsonaro conseguirá cortar esse cordão umbilical e mudar sua natureza política? Para tanto, terá que convencer a sua própria família, especialmente seus filhos, em quem confia mais do que nos partidos ou em qualquer outro balizador político.
A manutenção da lógica da guerra como estratégia básica só pode ter dois resultados: ou a submissão dos outros Poderes e grupos sociais que não sejam bolsonaristas puros à agenda e ao poderio do presidente; ou o enfraquecimento do Governo Bolsonaro. Em relação ao primeiro cenário, há duas possibilidades.
Na primeira, o bolsonarismo torna-se hegemônico porque aumenta a popularidade presidencial. Essa hipótese está se tornando mais distante, seja por conta dos erros seguidos do presidente e sua equipe - como tem ocorrido no MEC, que gera uma crise atrás da outra -, seja pela enorme dificuldade de se tirar o país da crise econômica e social.
Mesmo que a reforma da Previdência seja aprovada até o fim do ano, começa a se perceber que o Brasil vai demorar mais para sair do buraco, e isso afetará o poder de comando de Bolsonaro sobre o sistema político, em especial no ano que vem, quando haverá eleições municipais.
A outra forma de aumentar o poderio de Bolsonaro passaria por um conjunto de ações que concentrem mais o poder no Executivo federal. Lembrando de experiências recentes, como na Hungria, Filipinas ou Venezuela, tal cenário poderia se vincular a medidas de iliberalismo político mais sutil ou até a algumas de cunho autoritário mais explicito.
Creio que esse caminho vem se tornando mais complicado, embora não impossível. Isso se deve não apenas a reação de grupos sociais e instituições democráticas, algo sem dúvida relevante. Essa via ficou mais difícil por causa dos próprios erros de Bolsonaro e seus aliados.
Neste sentido, vale lembrar que o conflito do bolsonarismo com os militares e a adoção de uma política externa obtusa são fatores que podem geram obstáculos para o projeto de reforço do poder do presidente.
A ação política baseada na guerra permanente pode, no entanto, gerar maior enfraquecimento do governo. Na verdade, isso já tem acontecido, com as derrotas no Congresso, a perda de popularidade presidencial, o aumento da animosidade entre os bolsonaristas, o isolamento externo e o crescimento das pressões do mercado.
O que não se sabe é de que maneira e em qual velocidade poderá seguir esse processo. Um governo que opte pelo insulamento num grupo político e social minoritário pode derreter mais lentamente, tornando o presidente Bolsonaro um "lame duck" frente ao sistema político, sem que tenha completado nem metade do seu mandato.
O outro desfecho é alguma forma de saída do poder, situação muito mais imprevisível no atual momento, embora a cada semana se espere um novo tsunami, coisa que tem acontecido regularmente.
De todo modo, qualquer que seja o fim da história, a manutenção da lógica da guerra não prejudica apenas o exercício democrático do poder pelo presidente Jair Bolsonaro. A maior vítima dessa forma radical e insana de se fazer política é a nação, principalmente o povo mais pobre do país.
(*) Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e chefe do Departamento de Administração Pública da FGV-SP
Valor Econômico/17 de maio de 2019
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