Yuval Harari fez uma provocação interessante em seu último livro, sugerindo que as massas se tornaram um dado menor e dispensável, nas democracias. "É muito mais difícil, diz ele, lutar contra a irrelevância do que contra a exploração."
A irrelevância, para Harari, é um subproduto do avanço tecnológico. Da economia globalizada que torna rapidamente obsoletos setores tradicionais da economia e suas ocupações. É possível que vá aí algum romantismo. A política foi, desde sempre, um jogo de elites. De qualquer modo, o diagnóstico faz sentido: perdeu-se um ator clássico da democracia, associado às estruturas sindicais e partidos da tradição social-democrata.
O ponto que parece escapar a Harari é o surgimento de um fenômeno relativamente novo na democracia, a saber: a nuvem digital. A massa difusa, fluida e dissonante de vozes, no espaço digital, que se põe como um espelho do que chamamos costumeiramente de sociedade.
O problema é que se trata de um espelho distorcido. O The Hidden Tribes Project identificou com precisão o fenômeno. Uma pesquisa realizada com simpatizantes do Partido Democrata mostrou que 53% se definiam como politicamente moderados ou conservadores, contra apenas 29% dos simpatizantes ativos na internet. Entre este último grupo, 28% haviam participado de algum tipo de protesto, no ano passado, contra apenas 7% dos democratas em geral. A pesquisa indica que o nível de consenso e moderação, na base da sociedade, é significativamente maior do que habitualmente sugerem os argumentos em torno da "democracia polarizada".
É um erro elementar confundir o que se passa no ambiente tóxico das mídias sociais com o sentimento mais amplo e difuso da sociedade. Isto levou, por exemplo, a campanha de Hillary Clinton, em 2016, a uma ênfase exagerada nos temas identitários, na crítica formulada por Mark Lilla. A minoria barulhenta dá o tom. A maioria silenciosa, em algum momento, cobra sua fatura.
Em boa medida, a habilidade para expressar sentimentos e demandas deste espectro mais amplo da sociedade, que a pesquisa apropriadamente chama de maioria escondida, pode explicar o sucesso de líderes populistas em nossa época.
Há, efetivamente, um novo ator na democracia: a minoria volátil e barulhenta que protagoniza o debate público nos meios digitais. Trata-se de um ecossistema marcado pela imediaticidade, a reação instintiva e sem filtros, e pela baixa empatia, como bem identificou a neurocientista britânica Susan Greenfield. O debate feito à distância, longe do rosto e do sentimento real das pessoas, em que a agressão e o argumento ad hominem surgem como padrão.
De tudo isso, o que mais me impressiona (ou diverte) é a lógica do ruído, da informação irrelevante, que se tornou um elemento central da política. Dias atrás andávamos entretidos com o bate boca entre "olavistas" e militares. Um tipo novo de debate, capaz de ganhar manchetes em bons jornais sem que ninguém saiba exatamente explicar do que se trata.
Anthony Giddens acertou na mosca ao dizer que, no mundo digital, "as grandes comunidades têm as mesmas características de pequenas comunidades. Há emoções, fofocas, os bullies de vilarejo".
Talvez seja isto: a incorporação em grande estilo da política à lógica do pequeno entretenimento.
O ponto é que se trata de um erro elementar imaginar que o ambiente tóxico das redes sociais possa traduzir uma leitura adequada sobre o país. Ativistas digitais compõem, segundo pesquisas conduzidas pela Bites, um percentual aproximado de 15% do eleitorado, no caso brasileiro. Trata-se da minoria ativa da sociedade. Nem todos, por óbvio, são militantes insensatos e hooligans digitais. Mas sua presença ali é desproporcional em relação ao conjunto da sociedade.
Erra feio, mas muito feio, quem tentar compreender o que se passa com o Brasil a partir do humor das redes sociais. Algo na linha da observação recente do ministro Luís Roberto Barroso, quando disse se preocupar quando uma Suprema Corte toma reiteradas decisões na contramão do sentimento da sociedade. Sentimento de quem, exatamente?
O que é perigoso para um ministro do Supremo é perigoso para qualquer um. A confusão elementar entre o que se passa na sociedade e o que faz barulho, todos os dias, na nuvem digital pode atenuar o tédio e confirmar nossas certezas. O risco é o sujeito perceber, de repente, que ele mesmo foi tragado pela nuvem e passou a se mover com seus piores trejeitos.
(*) Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento.
Folha de S. Paulo/16 de maio de 2019
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