O problema da ideologia voltou com vigor ao centro dos debates, em especial por força da ascensão, em várias partes do mundo, inclusive no Brasil, de populistas que se dizem combatentes da ideologia de esquerda. Para esses líderes, o esquerdismo, em suas diversas manifestações, teria dominado o pensamento nacional e convertido especialmente a juventude, por meio de lavagem cerebral, em instrumento de seus desígnios deletérios, contrários aos valores tradicionais da família e da religião. Além disso, segundo esses neopopulistas, a esquerda submeteu os países que comandou a interesses estranhos aos da pátria, teleguiados por ideólogos do comunismo internacional, vistos como essencialmente corruptos e imorais.
Conforme esse discurso, toda e qualquer ameaça à paz, à prosperidade e aos bons costumes só pode ser de esquerda – razão pela qual até mesmo o nazismo, símbolo do mal absoluto, foi recentemente classificado como “de esquerda” pelo presidente Jair Bolsonaro, um desses novos líderes populistas.
É ocioso discutir se o nazismo era de “esquerda” ou de “direita”, porque há farta documentação a comprovar que de “esquerda” o nazismo definitivamente não tinha nada. O relevante, no caso, é a facilidade com que o presidente da República e seus seguidores mais radicais desconsideram evidências históricas em favor de suas crenças pessoais, com vista a conferir sentido ao discurso segundo o qual onde está o “mal” só pode estar a esquerda. É uma narrativa duplamente confortável: fornece lógica em meio ao caos de informações e atribui a responsabilidade por todos os males e padecimentos sempre ao “outro” – no caso brasileiro, o “comunista” ou o “petista”; em outras partes do mundo, os imigrantes e os muçulmanos; no passado (e ainda no presente), os judeus.
Esse mecanismo mental, guardadas as distinções geográficas e históricas, está na essência da ideologia que desembocou no nazismo, e talvez seja útil revisitar aquele sistema de pensamento se quisermos ter algumas pistas para entender o momento atual.
O historiador alemão Fritz Stern, o principal estudioso da ideologia germânica que está na origem do nazismo, definiu ideologia política como algo que desperta a “febre da paixão” e o “senso de pertencimento afetivo” em relação ao sistema de ideias a partir do qual seus integrantes leem o mundo (The Politics of Cultural Despair: a Study in the Rise of Germany Ideology, 1961). A verdadeira ideologia, afirma Stern, é “uma força espiritual, um impulso”, que expressa “aquilo pelo que vale a pena viver”. Nesse sentido, o historiador destaca a validade do conceito do filósofo francês Alfred Fouillée sobre as “ideias-força”, aquelas que unem “a imaginação à vontade” e “a visão antecipada das coisas com sua execução”.
Em outras palavras, a ideologia, na sua feição radical, é o elo de comunidades cujos membros acreditam de forma inabalável em sua visão de mundo – de tal maneira que hostilizam violentamente o contraditório, tratado como ameaça a essa visão – e se consideram autorizados pela História a executar o plano que julgam capaz de antecipar o futuro glorioso projetado pela ideologia. Todo aquele que se interpuser no caminho dessa realização é considerado inimigo mortal.
Duas gerações antes da chegada de Adolf Hitler ao poder na Alemanha, em 1933, ideólogos como Paul Lagarde, Julius Langbehn e Moeller van den Bruck investiram na disseminação de ideias-força que rejeitavam profundamente a sociedade moderna e nutriam brutal ressentimento contra a democracia liberal e seus valores mais caros. Não à toa, os três ideólogos citados eram violentamente antissemitas – eles viam os judeus como corpos estranhos ao organismo nacional alemão, como “bacilos” capazes de infectar o espírito germânico, provocando o dissenso e a desunião graças às liberdades proporcionadas pela democracia.
O importante a respeito desses ideólogos não é propriamente sua produção intelectual, carente de qualquer substância concreta, eivada de misticismo e fortemente contrária à razão, e sim sua capacidade de representar as angústias de uma parte significativa da sociedade alemã, vocalizando seu ressentimento em relação à modernidade, à democracia e à atividade política e parlamentar – vista por muitos alemães como capturada por interesses estranhos aos da “comunidade nacional”.
Podemos chamar a ideologia produzida a partir dessa matriz de “ideologia do ressentimento”, base do que viria a ser a “revolução conservadora” que varreria a Europa nas primeiras décadas do século 20, destruindo a democracia e estigmatizando o pensamento liberal e progressista em vários países. Em 1927, o filósofo francês Julien Benda, no livro A Traição dos Intelectuais, alertou que o autoritarismo e o desprezo pelo espírito livre tinham maior poder de sedução sobre as “almas simples” do que as ideias do humanismo e do liberalismo.
Naquele momento, Benda já denunciava a ascensão de um movimento contra os judeus, a democracia e o socialismo, capitaneado por intelectuais interessados no “jogo das paixões políticas”. E advertia: “Nossa era, de fato, é a era da organização intelectual dos ódios políticos”. O historiador Fritz Stern considera então que a “era atual” (ele falava dos anos 1960) estava igualmente marcada pela “organização política dos ódios culturais e dos ressentimentos pessoais”.
Dando um salto no tempo para os dias atuais, observa-se a permanência não de uma ideologia propriamente nazista, mas da ideologia do ressentimento, a mesma que originou o nazismo e parece estar na base de boa parte dos movimentos reacionários posteriores – que nutrem nostalgia pelo passado idealizado e cujos remédios que oferecem para a “decadência moral” das democracias são a violência, a intolerância e a renúncia à razão.
(*) Jornalista, doutor em História pela USP, é autor do livro ‘Nazistas entre nós' (Ed. Contexto)
O Estado de S.Paulo/ 28 de abril de 2019
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