Depois de mais de um ano na prisão, Lula veio a público com sangue nos olhos e rancor no coração. Em quase duas horas de entrevista à "Folha" e ao "El País", o ex-presidente destilou toda a raiva curtida na solidão da cela. Em cada resposta está presente seu inconformismo com a Operação Lava-Jato e com o processo que o condenou em três instâncias e o impossibilitou de disputar as últimas eleições. Também está lá uma visão de esquerda e de oposição ao governo Bolsonaro que em nada contribui para sairmos do estado em que nos encontramos.
Mais uma vez não houve autocrítica. Desde o Mensalão, passando pelas revelações da Lava-Jato, do impeachment e da derrota nas eleições de 2018, nunca Lula ou o PT esboçaram qualquer intenção de reconhecer que a corrupção fez parte da sua estratégia de governo, degenerando o presidencialismo brasileiro, de coalizão para cooptação. Ao contrário, Lula tergiversou quando perguntado sobre o relacionamento com as empreiteiras, os empréstimos do BNDES, a Venezuela.
Em vez de reconhecer os erros, Lula se concentrou em enaltecer o passado, valendo-se muitas vezes de fatos distorcidos e malabarismo estatístico. E bem ao estilo populista de esquerda, apontou para os inimigos de sempre: a Lava-Jato (Moro e Dallagnol à frente), a Globo, os bancos e os Estados Unidos.
Sua receita para a grave situação fiscal em que o país se encontra é simplista: "Você quer diminuir a dívida pública no Brasil? Aumenta o crescimento econômico, o PIB, produz mais pão, mais feijão, mais carro, mais carne que você aumenta o PIB e cai a dívida pública". Em relação à proposta de reforma da Previdência de Paulo Guedes, a ordem do chefe, óbvio, é resistir, orientando inclusive o uso das mesmas ferramentas e estratégias de Bolsonaro na guerra digital.
A insistência em negar as evidências do passado recente e a ausência de uma postura propositiva em relação ao futuro, presentes no discurso de Lula, já custaram ao PT a eleição de 2018 e pode significar um longo ciclo de decadência da esquerda brasileira.
Na votação da PEC da Previdência na CCJ na semana passada foi exatamente isso o que se viu. Apesar do justo protesto contra a resistência do governo em apresentar os dados e as simulações que embasaram sua proposta, os principais partidos de oposição (PT, Psol, PCdoB, Rede, PSB, PDT e Pros) deixaram claro que cerrarão fileiras contra o projeto de Guedes e Bolsonaro.
Essa postura de "ser contra por ser do contra" é incoerente com os programas desses mesmos partidos durante a campanha eleitoral.
O PDT de Ciro Gomes e o Rede de Marina Silva apresentaram propostas de reforma da Previdência que continham uma migração para um regime misto que combine elementos de repartição e capitalização, elevação da idade mínima para se aposentar e a eliminação dos privilégios dos servidores públicos - elementos centrais do projeto encaminhado pelo governo.
Guilherme Boulos, do PSOL, apesar de ser contrário à capitalização, defendeu a unificação dos regimes do setor público com o INSS e o estabelecimento de alíquotas progressivas de acordo com a renda do cidadão. Já Fernando Haddad (PT) prometeu "combater, na ponta dos gastos, privilégios previdenciários incompatíveis com a realidade da classe trabalhadora brasileira".
Seria de se esperar, portanto, que os partidos de oposição, com o PT à frente, deveriam ser a favor de medidas presentes na proposta do governo que claramente são voltadas para a redução das desigualdades econômicas provocadas pelo regime previdenciário atual - como a elevação de alíquotas para a elite do funcionalismo público ou a extinção da aposentadoria por contribuição e o aumento da idade mínima, institutos que na prática beneficiam os estratos mais ricos da pirâmide social. Mas não é isto o que aconteceu na CCJ e nem tampouco o que veremos na comissão especial e no plenário.
Os líderes da esquerda brasileira deveriam estudar mais e refletir se essa estratégia é a melhor estratégia. A eleição de Donald Trump nos EUA tem levado a uma safra de estudos com boas autocríticas sobre os erros da esquerda progressista americana. Em "O Progressista de Ontem e o de Amanhã", Mark Lilla, professor da Universidade Columbia, defende que a pior postura da oposição diante deste novo populismo de direita seria a resistência. Extrapolando sua visão para o caso brasileiro, contestar cada movimento de Bolsonaro, como seus adversários vêm fazendo, seria cair na sua armadilha, pois esses populistas alimentam-se do embate verbal (ou digital). A oposição precisa organizar-se institucionalmente para construir uma agenda propositiva para colocar os interesses dos cidadãos à frente da disputa política.
Essa é a mesma visão de Yascha Mounk, professor alemão da Universidade Johns Hopkins, cujo "O Povo contra a Democracia" acaba de chegar nas livrarias. No prefácio escrito especialmente para a edição brasileira, Mounk argumenta que os oponentes dos populistas acabam se perdendo ao se concentrar nas falhas pessoais e políticas de governantes como Trump, Maduro ou Bolsonaro, em vez de construir um leque de propostas construtivas para a população. "Os defensores da democracia liberal precisam provar para seus concidadãos não só que Bolsonaro é ruim para a nação, como também que eles podem fazer um trabalho melhor".
Continuar bradando contra a reforma da Previdência não resolverá a grave situação em que nos encontramos, assim como não contribuirá para reduzir o fosso que separa ricos e miseráveis no país. Se ela é realmente a favor de um país menos desigual, a oposição precisa assumir a responsabilidade de apoiar as boas propostas e colocar na mesa alternativas para aprimorar o que não é bom, ao contrário de ser simplesmente do contra.
Ao contrário do que orienta Lula, a polarização joga a favor dos seus inimigos.
(*) Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de "Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro".
Valor Econômico/29 de abril de 2019
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