Filibuster. No final de 2018 foi ao ar a entrevista de Barack Obama no podcast de David Axelrod, seu ex-conselheiro político e agora diretor do Instituto de Política da Universidade de Chicago. Em certa altura da conversa, o ex-presidente americano é convidado a analisar retrospectivamente seu relacionamento com o Congresso. E ele cita o filibuster, a tática de obstrução em que o partido adversário tenta barrar as discussões, como o principal culpado por não ter conseguido implementar sua ampla agenda de reformas, frustrando muitos de seus quase 70 milhões de eleitores.
De acordo com Obama, em apenas 4 meses dos seus 8 anos de mandato seu partido teve 60% das cadeiras do Senado, percentual regimental que impediria a obstrução dos republicanos. Em praticamente todo o período em que ocupou a Casa Branca, portanto, Obama precisava convencer pelo menos um membro do partido adversário a mudar de lado e votar a favor do governo.
Para complicar as coisas, a política vem se tornando cada vez mais polarizada. Na mesma entrevista Obama aponta o fato de que, do fim da Segunda Guerra até pelo menos os anos 1980, mesmo com a alternância no poder entre democratas e republicanos, os presidentes americanos conseguiam obter apoio nos partidos rivais para os grandes projetos nacionais. Havia parlamentares democratas com visão econômica um pouco mais conservadora, assim como republicanos mais moderados. Isso foi fundamental para o incrível desenvolvimento americano no pós-guerra.
Na visão de Obama, nas últimas décadas esse quadro tem mudado radicalmente com a polarização política da sociedade. Ele sentiu na pele esse efeito, assim como Trump está tendo o mesmo problema com as obstruções dos democratas.
Corta para o Brasil. Desde a década de 1990 consolidou-se na academia brasileira a interpretação de que nosso presidencialismo de coalizão funcionava, a despeito de todos os incentivos contraditórios advindos da combinação de sistema presidencialista com uma Câmara eleita de forma proporcional e em lista aberta, dezenas de partidos e um Senado representando uma federação extremamente desigual.
Apesar dessa receita para o caos, os presidentes conseguiam levar adiante suas agendas de reforma valendo-se dos superpoderes que a Constituição lhes confere: distribuição de cargos para aliados, liberação de verbas orçamentárias e poder de legislar por meio de medidas provisórias. Para facilitar, os líderes partidários no Congresso também detêm prerrogativas para garantir a fidelidade de seus comandados - cabe a eles indicar parlamentares para as comissões, designar relatores e até controlar quem fala no palanque para aparecer na TV e na Voz do Brasil. Assim, bastava ao Presidente da República se acertar com os líderes do Congresso que a mágica acontecia, o caos era evitado e o governo fluía.
Os números dão razão à teoria: em média, no âmbito de cada partido a disciplina se mantém acima de 80% desde os tempos de FHC, garantindo ao governo um apoio de mais de 70% nas votações nominais - suficiente para passar mudanças na Constituição. Mas a vida é real e de viés, como diria o poeta de Santo Amaro. Por trás da teoria e dos números, porém, uma nova ordem surgiu.
As dificuldades enfrentadas por Bolsonaro no Congresso não se devem exclusivamente à sua inacreditável falta de habilidade política. Do outro lado da Praça dos Três Poderes, deputados e senadores têm se fortalecido ao longo do tempo frente ao Poder Executivo. Um importante passo nesse sentido foi a Emenda Constitucional nº 32/2001, que estabeleceu limites à edição de medidas provisórias pelo Presidente da República. Apesar da mudança, contudo, FHC e Lula continuaram abusando desse instituto, conseguindo taxas de sucesso superiores a 80% de aprovação. Com Dilma o percentual caiu para 75% e Temer, com toda sua experiência de liderança no Congresso, só conseguiu 57,8% de conversão de MPs em lei. Bolsonaro ainda não conseguiu passar, nem ao menos na Câmara, nenhuma das 13 medidas provisórias que propôs - e elas começam a expirar em duas semanas.
Em 2015 o Congresso impôs outra restrição ao Executivo. Com a Emenda Constitucional nº 86, emendas orçamentárias de parlamentares passaram a ter execução obrigatória até o limite de 1,2% da receita corrente líquida. Numa das mais acachapantes derrotas de Bolsonaro até agora, a PEC nº 34/2019 está prestes a ampliar o limite em mais 1%, desta vez abarcando as emendas coletivas.
Ao restringir a margem de manobra para o Presidente legislar e ao garantir a execução de suas emendas parlamentares mesmo num quadro de grave crise fiscal, os parlamentares minaram duas das principais fontes de poder do Poder Executivo. Com um Congresso cada vez mais fragmentado, o preço do apoio subiu. E foi aí que o presidencialismo de coalizão se converteu em cooptação; primeiro com o mensalão, depois com o petrolão e um comércio desenfreado de emendas beneficiando grandes doadores de campanha.
Jair Bolsonaro foi eleito acreditando que seria fácil subverter essa ordem. Mas sem ter apresentado um projeto de governo consistente e recusando-se a compartilhar o poder, o capitão mostra-se sem estratégia e perde o comando da tropa. Do outro lado da trincheira, um Congresso cada vez mais poderoso toma as rédeas e lhe impõe seguidas derrotas.
Bolsonaro e seus filhos acreditam que superarão os tsunamis da política intensificando ainda mais a polarização. Agindo assim, eles destroem pontes com setores da sociedade que poderiam oferecer apoio, ainda que eventual, às suas propostas. O mercado já parece estar abandonando o barco. E, sem soluções concretas para os inúmeros problemas brasileiros, boa parte dos 57.797.847 de seus eleitores poderão fazê-lo em breve. O grande desafio é saber quando (e como) vamos parar de afundar.
(*) Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de "Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro".
Valor Econômico/20 de maio de 2019
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